O Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano1 distingue, no verbete dedicado a determinismo, dois significados: “1º: ação condicionante ou necessitante de uma causa ou de um grupo de causas; 2º: a doutrina que reconhece a universalidade do princípio causal e portanto admite também a determinação necessária das ações humanas a partir de seus motivos. No primeiro sentido, fala-se, por exemplo, de “determinação das leis”, “determinações sociais”, etc., para indicar conexões de natureza causal ou condicional. No segundo sentido, fala-se da disputa entre determinismo e indeterminismo, entre quem admite e quem nega a necessitação causal no mundo em geral e, em particular, no homem.” Neste sentido, “a palavra determinismo foi utilizada para designar o reconhecimento e o alcance universal da necessidade causal, que constitui uma ordem racional, mas não finalista, e portanto não se presta a ser designada pelo velho nome de destino.
Ao lado de outros determinismos que fizeram e fazem escola no mundo ocidental, entre eles o determinismo biológico, reforçado pelas teorias evolucionistas, depois de Darwin, e o determinismo econômico lançado por Marx e enfatizado pelas teorias ligadas ao marxismo, gostaria, nesta segunda acepção da palavra, de propor que se visse também a cultura pela ótica da causalidade universal de uma outra ordem racional, agora de natureza simbólica, tomando para tanto, como referência, a própria lógica, a semiótica, ou semiologia, e a antropologia.
II
Blanché, no livro Structures intellectuelles2, propõe-se o problema da organização dos conceitos a partir da teoria clássica da oposição das proposições.
Toma, para isso, como base, o quadrado lógico de Apuleio no qual são representadas as quatro espécies de proposição que se opõe pela quantidade (universais x particulares), nas duas metades do eixo horizontal; pela qualidade (afirmativas x negativas), nas duas metades do eixo vertical; e por ambas, quantidade e qualidade, ao mesmo tempo (universais afirmativas x particulares negativas e universais negativas x particulares afirmativas), nas duas diagonais que cortam o quadrado.
Tomando, segundo a tradição de uso, as letras A e I de AfIrmo para indicar as proposições afirmativas e E e O de Nego para as negativas, universais e particulares, respectivamente, tem-se, então, o quadrado de proposições opostas e cuja oposição se dá segundo as relações assim representadas:
Se considerarmos para A a proposição Todo homem é mortal, teremos para E Todo homem não é mortal ou Nenhum homem é mortal, para I Algum homem é mortal e para O Algum homem não é mortal.
As universais A/E se opõem como contrárias, isto é, não podem ser verdadeiras (V) ao mesmo tempo e podem ser falsas (F) ao mesmo tempo, o que permite a regra de inferência que diz que se uma das duas é verdadeira, pode-se concluir a falsidade da outra.
As particulares I/O opõem-se como subcontrárias, o que significa que não podem ser ambas falsas ao mesmo tempo, podendo, ao mesmo tempo, ser verdadeiras. Daí a regra de inferência: se uma é falsa, a outra é verdadeira.
Cada uma das duas particulares I/O se opõe à universal de mesma qualidade como sua subalterna: I x A, O x E.
A verdade da universal subalternante acarreta, implica a verdade da sua particular subalternada; a falsidade da particular subalternada pressupõe a falsidade de sua universal subalternante. Daí as regras de inferência: a) se a universal subalternante é verdadeira, a particular subalternada é verdadeira; b) se a particular subalternada é falsa, a universal subalternante é falsa.
As proposições universais afirmativas A e as proposições particulares negativas O são contraditórias entre si, da mesma forma que também o são as universais negativas E e as particulares afirmativas I.
A regra no caso é: se uma é verdadeira, a outra é falsa; se uma é falsa, a outra é verdadeira.
Assim, dadas duas proposições p e q, se são contraditórias formam alternativa (pwq), se contrárias, incompatibilidade (p/q), se subcontrárias, disjunção (pvq) e se subalternas, implicação (p→q).
Considerando-se a possibilidade do duplo uso da negação, dada uma proposição que enuncia uma atribuição pode-se ou negar universalmente a atribuição, afirmando universalmente a sua contrária ou negar a universalidade da atribuição, afirmando a particularidade da sua contraditória.
Desse modo, conforme seja posposta ou preposta a negação (omnis, omnis non, non omnis, non omnis non) pode-se, pela sua posição relativa no enunciado estabelecer as quatro diferentes proposições do quadrado lógico e as quatro modalidades enunciativas que as caracterizam.
Assim dada a proposição p, a afirmação de p equivale a afirmar a universalidade de p, isto é, universalmente p, ou seja, a verdade universal de p.
A negação de p, pelo acima dito pode ser ~p que, com o modalizador, será lida universalmente não p, ou seja, a verdade universal de não p, ou ainda a falsidade universal de p.
A outra possibilidade da negação de p é a que restringe a universalidade de sua afirmação tomando uma forma suspensiva, mais fraca e não supressiva, mais forte, como no primeiro caso, o que com o modalizador corresponde a não universalmente p.
Como a contrária de p, que é ~p, tem também a sua contraditória, então universalmente não p tem como contraditória não universalmente não p, com a dupla negação, o que permite chegar a quarta proposição do quadrado lógico.
Dentro do simbolismo lógico-formal, substituindo-se a palavra universalmente por uma letra K que represente o conceito modal da necessidade, obter-se-iam as quatro modalidades lógicas a partir de uma delas: K = necessariamente, K~ = necessariamente não, ~K~ = não necessariamente não e ~K = não necessariamente.
A partir do quadrado lógico das proposições opostas, Robert Blanché apresenta o seu hexágono lógico com a introdução de duas novas proposições: uma universal, U (tudo ou nada, todos ou nenhum) formada pela disjunção ou soma lógica das duas universais (AUE) e uma particular, Y (alguns sim e alguns não), formada pela conjunção ou produto lógico das duas particulares (I.O) do quadrado.
Tem-se agora, conforme mostra a figura, uma estrela - * - das contraditórias, um triângulo - - das contrárias, um triângulo pontilhado - - das subcontrárias e uma cinta - - das subalternas.
O que há de comum, além de serem ternários, entre sistemas de valores tão distintos na vida social, quanto os que se verificam nos conjuntos abaixo?
Verde |
Amarelo |
Vermelho |
Obrigatório |
Indiferente |
Proibido |
Moral |
Amoral |
Imoral |
Bom |
Indiferente |
Mau |
Aceitação |
Indecisão |
Recusa |
Amor |
Apatia |
Temor |
Ousado |
Equilibrado |
Covarde |
Pródigo |
Equilibrado |
Avarento |
Excitação |
Equilíbrio |
Depressão |
Bom |
Inócuo |
Nocivo |
Por que em diferentes culturas o sistema simbólico dos sinais de trânsito é o mesmo e é entendido da mesma maneira pelos cidadãos de países e línguas tão diversas?
A resposta aparentemente mais acertada a esta pergunta é que se tratam de convenções adotadas internacionalmente que passam a funcionar como paradigmas ou modelos de comportamento sociais que são, pelo hábito do uso, internacionalizados.
Como, então, explicar que, embora diversas, enquanto sistemas diferentes de valores a que pertencem, as tríades acima apresentadas têm algo em comum que lhes é constitutivo, e que é definidor de um modelo de organização universal? E que este modelo não decorre de nenhuma convenção, mas antes é o seu motivador e a própria razão de sua possibilidade lógica e intelectual?
Tomemos o caso dos sinais de trânsito e perguntemos o que cada uma das três cores que o compõem significa.
Sabemos que o verde = siga, o vermelho = pare (não siga) e o amarelo = nem siga, nem pare (traduzido por Atenção!).
A estrutura lógica, intelectual ou cognitiva que sustenta essas oposições é a mesma que subjaz às outras seqüências ternárias acima listadas e o princípio de organização dessas oposições é o que se representa no triângulo com a base invertida, que no hexágono lógico de Blanché desenha as relações contrárias entre as proposições A, E, Y, o que daria para as cores dos sinais de trânsito a seguinte figura:
Se aplicarmos ao vértice inferior do triângulo o termo médio de cada uma de nossas seqüências ternárias e aos vértices superiores, em ordem, cada um dos outros dois termos, a configuração das oposições será sempre a mesma e universal e, conseqüentemente, da mesma forma a organização dos conceitos e dos sistemas de conhecimento que eles possibilitam.
Em países como o Brasil, que buscam, muitas vezes a duras penas, constituir-se como democracias sólidas e permanentes, não é demais pensar que esse triângulo de oposições pode também ajudar a compreender melhor o extremo em que se trava o debate dessas aspirações políticas:
O que é democrático é o que não é nem autoritário nem permissivo, embora contenha elementos necessários de autoridade e de condescendência, num equilíbrio dinâmico entre as tensões dos direitos e das obrigações.
III
Greimas, no artigo “Les jeux des contraintes sémiotiques” escrito em colaboração com François Rastier e publicado como um dos textos que integram o livro Du sens, já aqui citado, propõe que, ao menos para efeito de compreensão, quer dizer, metodologicamente, é possível “imaginar que o espírito humano para chegar à construção dos objetos culturais (literários, míticos, picturais, etc.), parte de elementos simples e segue um percurso complexo, encontrando em seu caminho tanto as restrições que ele deve sofrer quanto as escolhas que lhe é permitido realizar.”3
Segundo Greimas esse percurso vai da imanência à manifestação passando por três etapas principais, nas quais se vêem claramente a inspiração, sobretudo nas duas primeiras, da lingüística transformacional gerativa fundada por Noam Chomsky a partir do livro Syntactic structures, de 1957. 4
As estruturas superficiais correspondem à gramática semiótica que organiza em formas discursivas os conteúdos suscetíveis de manifestações e as estruturas de manifestações são particulares a línguas específicas ou a materiais também específicos, sendo, assim, responsáveis pela produção e organização dos significantes.
As estruturas profundas, cujo estatuto lógico define as próprias condições de existência dos objetos semióticos constituem o ponto focal do artigo em questão.
Ao tratar da estrutura elementar da significação, Greimas toma como referência para a apresentação da estrutura de seu modelo constitucional o hexágono lógico de Robert Blanché, confirmando essa influência não só pela menção explícita de seu nome e do livro Structures intellectuelles, como também pela forma que dá à estrutura dos sistemas semióticos totalmente inspirada nas relações de oposições ali apresentadas, discutidas e analisadas.5
Greimas cuja extensa obra tratou de diversos objetos semióticos, da língua à literatura, da poética às palavras cruzadas e destas às máximas e provérbios, entre outros, dedicou também especial atenção à narrativa mítica confessando freqüentes vezes sua admiração intelectual pelos estudos do mito de Georges Dumézil e pelos trabalhos de Claude Lévi-Strauss na mesma área.6
Para Lévi-Strauss a antropologia deve buscar as propriedades fundamentais que subjazem à imensa variedade dos produtos culturais, já que, se eles são produzidos por cérebros humanos, deve então haver entre eles, mesmo os das mais diferentes culturas, elementos comuns que eles compartilham num nível mais profundo, quer dizer numa estrutura lógica profunda que, escondida sob a superfície da variação e da diferença, a gera, prediz e explica sua transformação. São os universais que, como Chomsky, Lévi-Strauss vai também buscar nos estudos de Roman Jakobson, ligado à escola de Praga e com quem ele conviveu nos anos 1940 na Nova Escola de Pesquisa Social em Nova Iorque.
Mais precisamente é nos estudos de fonologia de Jakobson e Halle7 baseados nas propriedades acústicas dos sons lingüísticos e nos traços distintivos binários estabelecidos como propriedades constitutivas da estrutura fonêmica universal da geração das línguas que Lévi-Strauss vai buscar a referência de seu modelo lógico, feito também de oposições binárias triangulares, para a análise e a explicação da imensa variedade das narrativas míticas na variação imensa de culturas variadas: Mitológicas.
Assim, o triângulo culinário
no qual se representam as oposições binárias transformado/natural e cultura/natureza e que tem para Lévi-Strauss um papel fundamental na caracterização da estrutura profunda da cultura humana, baseia-se totalmente no triângulo vocálico e no triângulo das consoantes de Jakobson, ambos gerados a partir de um sistema comum a todos os fonemas e que supõe a distinção entre vogal e consoante e se desenvolve sobre a dupla oposição entre os traços compacto/difuso e grave e agudo, conforme mostra a figura abaixo:
E para o triângulo culinário de Lévi-Strauss:
Em outras palavras, como observa Edmund Leach, o que busca Lévi-Strauss é estabelecer os rudimentos de uma álgebra semântica, já que o comportamento cultural, segundo sua hipótese, capaz de transmitir informações, deve supor um código que, possuindo uma estrutura algébrica, subjaz à ocorrência das mensagens culturais, possibilitando sua expressão.8
O código nesse caso corresponde, nos termos de Saussure ao eixo paradigmático, e as mensagens culturais expressas, ao eixo sintagmático, ecoando, desse modo, a distinção básica entre língua e fala. Em Barthes9, a mesma oposição aparece no binômio sistema/sintagma que corresponde, por sua vez, em Jakobson e Halle à oposição entre metáfora, cujo fundamento é a semelhança, e metonímia, cuja base de reconhecimento é a contigüidade. Lévi-Strauss também faz uso dessas distinções que aparecem ainda, como vimos, em Greimas, todas elas remetendo, direta ou indiretamente, no caso dos triângulos, às estruturas intelectuais desenhadas para essas figuras por Robert Blanché no livro já acima indicado.
A busca da estrutura algébrica do código da cultura humana em Lévi-Strauss é, pois, semiológica, da mesma maneira que em Barthes, em Greimas e em Jakobson e caracteriza uma atitude epistemológica que, do ponto de vista da racionalidade cognitiva, se insere dentro do paradigma intelectual a que se pode dar o nome genérico de determinismo.
* Este artigo é, com algumas modificações, parte do artigo “Semiótica e semiologia”, publicado em Orlandi, E. P. & Lagazzi-Rodrigues, S. (orgs.), Discurso e textualidade. Campinas: Pontes Editores, 2006, pp. 105-141.
1 Abbagnano, N., Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 245. 2 Blanché, R., Les structures intellectuelles. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1969. 3 Greimas, A.J. Du sens. Paris : Editions du Seuil, 1970, p. 1354 Chomsky, N. Syntactic structures, Haia & Paris: Mouton, 1957. 5 Greimas, A.J. ob. cit., p. 137 6 Ver, por exemplo, o artigo “La mythologie comparée” publicado no livro Du Sens, pp.117-134 e dedicado a Georges Dumézil e o artigo “Elementos para uma teoria da interpretação da narrativa mítica” publicado em homenagem a Lévi-Strauss em Análise estrutural da narrativa – seleção de ensaios da revista Communications, Rio de Janeiro: Vozes, 1971. pp. 59-108. 7 Jokobson, R.; Halle, M., Fundamentals of language. Haia: Mouton, 1956. 8 Leach, E., As idéias de Lévi-Strauss, São Paulo: Cultrix, 1977, p. 36 9 Barthes, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1988.
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