O primeiro dia de um obeso numa
academia de ginástica é sempre um evento. O meu, por exemplo, foi assim: meu
marido precisou ficar meia hora dentro do carro, em frente à academia, me
convencendo a entrar. Eu pensei, só tem gostosona lá dentro, o que é que eu vou
fazer nesse lugar?
No filme Tudo Sobre Minha Mãe, o cineasta
espanhol Pedro Almodóvar, ilustra bem a idéia do sujeito que deseja mudar sua
aparência para ficar cada vez mais único, de acordo com o que queria parecer.
Assim, o personagem do filme, um transexual chamado Agrado, que já havia
realizado inúmeras intervenções plásticas, dizia: Uma pessoa pode se dizer mais
autêntica quanto mais se aproxima de como sonhou ser.
Mas com o que sonha grande parte das mulheres em
nossos tempos? A gordura acabou com minha vida, dizia uma entrevistada,
em uma matéria da Folha de S. Paulo. Cadernos de saúde, academias de
ginástica, lojinhas de produtos naturais e cirurgias plásticas cada vez mais
numerosas, parecem nos dizer que a moda do corpo magro, esbelto, sarado e
cuidado chegou para ficar.
Mais
ainda –, ai de quem desses parâmetros se afastar!!! Em recentes pesquisas que
vimos realizando e cujas falas reproduziremos ao longo deste trabalho, pudemos
observar, não apenas o caráter impositivo de uma estética que nada tem a ver
com o biotipo brasileiro, como o profundo preconceito que as mulheres feias
(leia-se gordas) sofrem.
The letter – Botero 1989
Sem caráter, sem força de vontade e vistas como
desleixadas, a anatomia feminina deixou de ser um destino para ser uma questão
de disciplina: se não conseguimos agenciar nossos corpos, como seremos capazes
de agenciar nossas vidas ou nossos empregos? Recente pesquisa feita pelo New
York Times aponta para uma enorme diferença salarial (quando são
contratadas!) entre mulheres bonitas e feias.
A moralização do
corpo feminino, como aponta Baudrillard em seu livro A sociedade de
consumo, nos leva a encarar a ditadura da beleza, da magreza e da saúde
como se fosse algo da ordem de uma escolha pessoal. Deixam-se de lado todos os
mecanismos de regulação social presentes em nossa sociedade, que transformam o
corpo, cada vez mais, em uma prisão ou em um inimigo a ser constantemente
domado.
Malhado, como se malha o ferro, não é sem razão que
tal expressão é utilizada nas academias de ginástica, na tentativa de adquirir
a estética desejada. Tais técnicas, apreendidas, inicialmente, como uma
disciplina, com o passar do tempo são incorporadas ao cotidiano do sujeito e
sem que o mesmo perceba, acaba por reproduzi-las, sem que haja uma dimensão
crítica ou reflexiva sobre essas atividades/comportamentos: a Pastoral do suor de que nos fala Jean-Jacques Courtine.
Se
a contemporaneidade pode ser definida exatamente pela sua liquidez, como aponta
ZygmuntBaumann em vários de seus escritos, ou pela sua evanescência – tudo que
é sólido desmancha no ar, o culto ao corpo, demanda do sujeito exatamente o
inverso – permanência e imutabilidade.
Como
sabemos, a regulação social dos padrões estéticos sofreu variações históricas
em torno dos ideais de beleza de algumas décadas atrás, até à atualidade, no
qual seu imperativo exige a perfeição das formas conseguida por meio de
inúmeras intervenções corporais e cujo exemplo mais representativo são as
modelos e atrizes.
Todo
esse percurso histórico deixa bastante clara a ênfase que vem sendo dada, cada
vez mais, às práticas de culto ao corpo, bem como às técnicas de
aperfeiçoamento da imagem corporal. As interferências, transformações e todos
os métodos de disciplinização do corpo, acompanhados da moralização da beleza,
buscam esse caráter de permanência do belo corporal.
Trata-se dessa forma, de comer com
a disciplina imposta pela nutricionista e, num segundo momento, anular os
efeitos da ingestão, através de rigorosos exercícios físicos. Carregado de um
sentimento de culpa infalível, fruto das advertências de ambos profissionais,
nas quais comer não deve ser, senão, o ato de alimentar-se, destitui-se, dessa
forma, a alimentação de toda a sua dimensão de prazer, fazendo com que o
sujeito acredite que deva alimentar-se do olhar que equivale à aprovação social
e que, por conseqüência, legitima e estimula tais práticas na obtenção desse
corpo.
O que é ser bela? Acho que a sociedade nos
cobra e nos sufoca demais com isso. Gostaria de dar menos valor à aparência,
mas não consigo, pois vivo num mundo onde os valores estão em segundo plano e o
físico em primeiro. Se eu quiser conquistar algo aqui neste mundo, sem dúvida
nenhuma, a minha aparência influenciará 90%. É triste, mas é a mais pura
verdade, pois comprovei isso na pele – precisei me livrar de todo o meu recheio.
As
técnicas de reversão do processo de envelhecimento nos remetem ao tão sonhado
projeto evolucionista do corpo. Atingida a sua maturidade, o corpo estaria
livre de todas as enfermidades e intempéries – , o corpo anseia por não mais
fenecer. A tentativa pós-moderna parece ser a subversão da condição humana de
mortal.
Não se trata, certamente, de negar os avanços da
ciência e, sim, de estar atento à dimensão de controle e regulação de nossos
corpos. Como jocosamente aponta Ximenes Braga no jornal O Globo: Mundo
afora, o estado quer controlar cada vez mais o que as pessoas fazem consigo
mesmas, e impedir crianças de engordar é mais um degrau de ridículo nesse
Zeitgeist. Qual o próximo passo? A criminalização da aspirina, do sushi
e do steak tartar?
Mas
retornemos à nossa afirmação acerca do preconceito contra a gordura – estando
aí incluído até a gravidez.
Historicamente,
à mulher é associado o binômio beleza e fertilidade, estando o último aspecto
referido a tudo que difere a sua anatomia da masculina, ou seja, aquilo que em
suas entranhas é produzido. Entretanto, a cultura atual parece demonstrar que
nem mesmo a gravidez justifica as marcas de envelhecimento deixadas pela
natureza, logo, os traços remanescentes do processo da maternidade devem ser
extirpados do corpo feminino.
Ressignificados e afastados do ideal de juventude,
esses traços são interpretados pela cultura como feios e, portanto, devem ser
eliminados, reiterando mais uma vez a máxima de que só é feio quem quer. Nesse
sentido, vale lembrar a propaganda da linha de cosméticos Helena Rubinstein: Nos
tempos atuais, é imperdoável que a gravidez faça com que a mulher perca a sua
silhueta… A mulher deve ter um belo corpo para mostrar após os filhos estarem
criados.
O fenômeno observado,
tal qual descrito, parece indicar um corpo análogo ao corpo andrógino referido
por Baudrillard, no qual houve o apagamento dos signos de diferença. Não é à
toa, que a maioria de nossas entrevistadas associa a necessidade da cirurgia à
gravidez e aos processos ulteriores de maternagem, como a amamentação, e
justificam seu desejo de anulação dessas marcas dizendo tratar-se de um excesso
desnecessário. Ironicamente, a amamentação é o exemplo prototípico de um excesso
interno do corpo feminino que produz a satisfação do bebê.
Depois da gravidez mudou tudo... os peitos
desabaram. Já ouviu falar nas termas de Caracalla?
Não adianta, porque quando você engravida as marcas
estão lá mesmo – então por que não consertar?
De
que corpo, então, estão falando essas mulheres? Será um corpo sem marcas ou
inscrições: um corpo em branco? Quem ou o que contaria então a sua história?
Será ousado pensar tratar-se da valorização de um corpo oco? Como um corpo
virtual, que só possui duas dimensões, aquelas que os olhos alcançam. Ou ainda,
como o corpo publicitário: para sempre diante do seu olhar!
Freqüentemente associado ao corpo que “atrai”, a
cirurgia é buscada como uma forma de se manter atraente aos olhos do outro.
Permanecer jovem, seduzir, manter o interesse do companheiro são justificativas
muitas vezes empregadas. Não é de se espantar que muitas vezes ninguém possa
tocar esse corpo. Ele está/existe apenas para a visão, ou seja, para ser
admirado – os seios Pão de Açúcar nas palavras de uma entrevistada.
Helmut Newton – calendar january 2001
Frases
que são proferidas com o intuito de estimular ou mesmo reforçar positivamente
as pessoas gordas a persistirem com dietas e/ou rotina de exercícios, ilustram
bem a idéia do corpo magro como um ideal a ser atingido, bem como a
representação social do gordo como um imperfeito que deve ser reeducado, de
forma eficiente à moralização do bom comportamento. Neste sentido, nada espelha
melhor a moral do culto ao corpo do que a disciplina, a perseverança e a
obstinação.
Vejamos alguns exemplos ouvidos em academias: vai
gordinha que você chega lá ou, no caso de demonstração de cansaço, o
seu corpo é um reflexo do seu comportamento – se for paradona, preguiçosa do
tipo que só gosta de comer e dormir, fatalmente será gorda, caidaça e toda
flácida. (fala de um personal trainer).
Finalmente, um dos relatos que melhor afirma
a idéia da exclusão social infligida às mulheres gordas - a negação da sexualidade:
Um
amigo meu uma vez me disse: se quiser ser desejada emagreça, pois é óbvio que
ninguém vai olhar para gordinha “cocota” e sim para a saradona “cascuda”.
Parece que a fala do amigo diz à nossa entrevistada
que ela é menos mulher por ser gorda, logo, feia. Ser gorda lança-a na condição
de apenas amiga dos homens, ou seja, só as magras podem exercer sua
feminilidade plenamente, pois conseguem despertar o desejo dos “carinhas”. Feiúra
é índice de menos-ser.
Contudo,
não se trata, como alguns colegas apontam, de reduzir a busca por um corpo
ideal, a uma falha, uma falta, um defeito, uma patologia ou um processo de
alienação. Trata-se, a nosso ver, de poder pensar por quais processos
discursivos e de socialização estas e outras práticas fortemente instituídas e
difundidas colaboraram para anular as resistências ao que nelas existe de
opressão.
É
preciso pensar na forma pela qual os agentes interiorizam/incorporam o discurso
dominante e na sua conseqüente reprodução no seio da sociedade. É importante
notar que os mecanismos que regem a dinâmica das relações, tais como sujeição e
dominação, obediência e imposição, não devem ser encarados como algo que vem de
cima para baixo, e sim como um processo dialético, horizontal, encenado por
todos os membros de uma sociedade, assimilado como uma tática inerente ao jogo,
e que permeia todos os âmbitos e espaços indo da família à escola, dos locais
de trabalho às instituições públicas, retornando ao convívio social.
Por
isso, torna-se fundamental refletir acerca da sociedade de imagens na qual
vivemos. O corpo, ao entrar em cena, e ocupar agora um espaço que dá ao
indivíduo a visibilidade necessária aos poderes disciplinares, torna-se o
principal alvo das estratégias de controle. Por essa mesma razão ele deve ser
pensado e visto como uma possibilidade de resistência.
Este
mundo é feito para os magros, jovens, brancos, caucasianos e sem nenhum tipo de
deficiência física. Quem não pertencer a um desses grupos, com certeza ficará à
margem sofrendo inúmeros preconceitos.
Joana V. Novaes é doutora em psicologia
clínica. Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório
Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – Lipis da PUC-Rio. E-mail joananovaes@terra.com.br.
Junia de Vilhena é doutora em psicologia
clínica, é psicanalista, professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio;
coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social –
Lipis da PUC-Rio e pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental. E-mail vilhena@psi.puc-rio.br
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