* Este artigo foi originalmente publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física, periódico da Sociedade Brasileira de Física, e gentilmente cedido por Sergio da Silva para ser adaptado para esta edição da revista ComCiência.
Em que sentido terremotos, incêndios florestais, extinções de espécies e crashes de bolsas de valores são eventos similares? Como um evento tumultuoso como o crash da Bolsa de Nova Iorque de 1987 chegou sem aviso? Todos esses eventos podem ser grandes flutuações que surgem universalmente em sistemas que se encontram fora do equilíbrio em um estado crítico. A organização desses sistemas não depende da natureza precisa das coisas envolvidas, mas somente da maneira como as influências se propagam de um lugar a outro. Aqui, eventos raros surgem a partir do mero acúmulo e posterior liberação de estresse.
Assim como é tentador buscar grandes causas por trás de terríveis terremotos ou extinções em massa, é também tentador buscar grandes pessoas por trás dos grandes eventos históricos. Entretanto, é possível que a única causa geral para tais eventos seja a organização interna de um estado crítico, que faz com que eventos raros sejam não apenas possíveis mas inevitáveis. Os fundamentos de um estado crítico refletem-se em leis estatísticas simples: leis de potência, que não possuem escala característica, revelando a ausência de um “tamanho” esperado para o próximo evento.
Nas últimas décadas do século XX, parte da comunidade dos físicos passou a se interessar pela dinâmica de sistemas ditos complexos, cujas partes interagem de forma não-linear. Uma das propriedades marcantes de tais sistemas é a presença de leis de escala ou leis de potência. Estas são observadas em diversos contextos, da biologia até o comportamento de bolsas de valores. A tentativa de se construir um esquema teórico geral para esses fenômenos deu origem a novos ramos da física, como a teoria do caos e a física dos sistemas complexos. Conceitos como criticalidade auto-organizada, auto-similaridade, fractais e leis de potência passaram a fazer parte da física contemporânea. Aqui poderíamos ter utilizado o termo física moderna, mas o evitamos porque tal denominação refere-se em geral à mecânica quântica e à teoria da relatividade.
Terremotos
A ideia de acúmulo e posterior liberação de estresse pode ser ilustrada com os abalos sísmicos. Se a crosta terrestre estiver em estado crítico, torna-se praticamente impossível prever quando ocorrerá um terremoto e, além disso, quão destrutivo ele será. A previsão de terremotos vem sendo feita há pelo menos 100 anos com sucesso limitado. As placas continentais podem se movimentar lentamente. Isso não necessariamente acarreta a reorganização da crosta, já que os atritos mantêm as placas em seus lugares. Mas os pequenos movimentos colocam as placas sob estresse. Quando esse estresse ultrapassa certo valor, o chão se move e se reorganiza de modo súbito e violento.
Os terremotos distribuem-se em função da energia liberada, de acordo com a lei de potência conhecida como lei de Gutenberg-Richter, segundo a qual dobrando a energia de um terremoto, ele se torna quatro vezes menos frequente. A distribuição dos terremotos é fractal, logo invariante na escala. O que provoca pequenos terremotos é o mesmo que provoca grandes terremotos, se os considerarmos um fenômeno crítico.
Extinção de espécies
Essa mesma noção de fenômeno crítico pode ser aplicada à extinção de espécies. A vida na Terra sofre de esporádicos e catastróficos episódios de colapso. Houve pelo menos cinco grandes extinções de espécies na história terrestre. Muitos biólogos não acreditam que apenas a seleção natural seja capaz de provocar extinções, devendo existir fatores exógenos em ação. No entanto, é possível que extinções em massa possam resultar da própria dinâmica da evolução, como um fenômeno crítico.
Uma lei de potência foi, de fato, observada na análise de fósseis. Curiosamente, ela é idêntica à lei de potência da distribuição de terremotos: dobrando o tamanho da extinção (medida pelo número de famílias extintas), ela torna-se quatro vezes mais difícil de ocorrer. Talvez não seja necessário que ocorram choques exógenos, como a conhecida tese do meteoro que caiu no México e provocou a extinção dos dinossauros. Talvez pequenos eventos endógenos (similares à queda do grão de areia “especial” que provoca a avalanche) expliquem as extinções em massa.
Quedas nas bolsas de valores
Um ramo da teoria dos sistemas complexos que vem recebendo cada vez mais atenção nos últimos anos é a econofísica que, como o nome sugere, procura compreender o comportamento de mercados financeiros e de outros aspectos da economia. Um dos trabalhos pioneiros nessa área foi o estudo do índice da bolsa norte-americana Standard & Poors 500 por Rosario Mantegna e Gene Stanley. Entretanto, as origens históricas da econofísica podem ser remetidas aos anos de 1960, com os trabalhos do matemático Benoit Mandelbrot. Poderíamos até mesmo voltar mais no tempo e dizer que a tese de doutorado sobre especulação financeira de Bachelier, em 1900, já é um precursor da econofísica.
Se os mercados financeiros forem também criticamente organizados, crashes em bolsas de valores não seriam anomalias, mas eventos ordinários (embora raros). Quando oferta e demanda se encontram em mercados eficientes, o preço expressa o valor compatível com os “fundamentos” estruturais da economia. Na ausência de grandes choques de demanda e oferta, teremos que esperar apenas a ocorrência de pequenas flutuações para ajustar excessos de demanda e oferta. Grandes variações de preços seriam altamente improváveis. Em outras palavras, as variações do preço teriam que se comportar de acordo com uma distribuição gaussiana. Seriam um random walk, na linguagem da física estatística.
Não houve nenhum grande choque justificando bruscas alterações nos fundamentos em 19 de outubro de 1987. Mas este foi o dia de um crash financeiro quase duas vezes mais severo do que o colapso de 1929. O índice Dow Jones caiu 22% nesse dia, que ficou conhecido como Black Monday.
É impensável atribuir ao evento uma súbita alteração nos fundamentos da economia que levou, em poucas horas, a uma queda de mais de 20% nos retornos das ações. Embora haja explicações a posteriori que apontam para alterações dos fundamentos, estas são pouco convincentes, dada a magnitude do crash. Há ainda a explicação pitoresca de que o crash foi provocado por erros em programas de computador, que venderam ações ininterruptamente assim que os preços começaram a cair. Quando Mandelbrot descobriu que não havia distribuição gaussiana nem escala típica nas variações do preço do algodão, isso possibilitou encararmos grandes flutuações de preço como resultado de um arranjo “natural” no funcionamento dos mercados. Ou seja, estes podem oscilar ferozmente de tempos em tempos mesmo que nada de excepcional ocorra nos fundamentos da economia.
As funções de distribuição mais adequadas para a análise do problema não podem então decair exponencialmente, como a gaussiana. Eles devem decair seguindo uma lei de potência, caracterizando ausência de escala. As distribuições usadas por Mandelbrot foram as distribuições de Lévy. Cada vez mais leis de potência são descobertas, em mercados financeiros, pelos econofísicos. Para enumerar apenas algumas, as flutuações no índice S&P 500 mostraram ser dezesseis vezes menos frequentes cada vez que dobramos seu valor. Leis de escala neste índice também foram observadas por Mantegna e Stanley. Uma lei de potência similar vale para os preços de ações de companhias individuais. Leis de potência foram observadas na Bolsa de Milão e, por nós, na Bolsa de São Paulo, bem como em taxas de câmbio. Leis de potência foram ainda observadas na volatilidade dos mercados, sugerindo a inexistência de um tamanho típico para os “pânicos financeiros”.
A Lei de Pareto é uma lei de potência clássica. Graças a isto, algumas vezes as distribuições de Lévy são chamadas de Pareto-Lévy. Bouchaud e Mezard revisitaram a Lei de Pareto para observar que, se levarmos em conta o número de pessoas nos Estados Unidos que possuem 1 bilhão de dólares, encontraremos que um número quatro vezes maior de pessoas possuirá meio bilhão, e um número quatro vezes maior que esse possuirá um quarto de bilhão, e assim por diante.
As leis de potência podem conviver pacificamente com a teoria financeira vigente. De fato, os econofísicos propõem uma certa conciliação. Uma vez que não descartam a hipótese de mercados eficientes, eles apenas reduzem a sua significância a um caso limite.
Os economistas da área de finanças internacionais estão entre aqueles que têm mais chance de tratar os mercados financeiros como um sistema crítico. Afinal, como Krugman observa, a maioria dos economistas de hoje acha que os mercados internacionais estão mais para a irracionalidade e instabilidade, descritas por Keynes, do que para o modelo de mercados eficientes de finanças. Aliás, o próprio Krugman já tentou aplicar os conceitos de criticalidade na economia.
Resta-nos observar que se a macroeconomia for um sistema criticamente organizado, um certo choque não pode ser culpado por desestabilizá-la. A maneira como a economia e suas instituições estão desenhadas para responder aos choques seria o fator mais importante.
Iram Gleria é professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Alagoas. Raul Matsushita é professor do Departamento de Estatística da Universidade de Brasília. Sergio da Silva é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina.
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