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O retorno ao realismo na candidez da fotografia endógena
Por Fernando Tacca
10/03/2006

A principal questão do referencialismo fotográfico detém-se na definição do conceito de intencionalidade. Uma das diferenças entre as abordagens semiológicas e semioticistas é exatamente a questão da intencionalidade do signo. Enquanto a semiologia estruturalista credita ao signo uma função social, a semiótica peirceana aborda o signo como uma função lógica. Assim, o signo na semiótica peirceana existiria por si só, independente até mesmo de sua função social.

Roland Barthes é um dos autores mais conhecidos da semiologia francesa, ligado ao estruturalismo de origem saussuriana, e que mais se envolveu nas discussões sobre a fotografia, produzindo textos que se tornaram clássicos. Seu primeiro texto sobre fotografia foi publicado em 1962 no número inicial da revista Communications. Nesse artigo Barthes identifica a fotografia como um analogon do real em que sua estrutura se caracterizaria por ser puramente denotativa. Barthes aborda principalmente a fotografia de imprensa, ou seja, a co-presença sempre de duas estruturas diferentes: texto e imagem. Para Barthes, a fragilidade conotativa da fotografia, que seria uma "mensagem sem código", e seu estatuto particular permitiria uma dominação do texto sobre a mensagem final devido ao código conotativo da estrutura lingüística.

Barthes reconhece seis processos de conotação na mensagem fotográfica, mas todos além do código fotográfico propriamente dito, como trucagem, sintaxe, fotogenia, etc. Uma das críticas mais ferozes a esse texto, por situar a análise barthesiana no plano do análogo ou do "real literal", vem de Raul Beceyro, que vê na proposta de Barthes uma saída para não se defrontar com a imagem em si mesma ao procurar conotações fora dos elementos propriamente constitutivos do código fotográfico, ou seja, enquadramento, ângulo de tomada, profundidade de campo, foco, etc. A imagem fotográfica para Beceyro, produz conotação “nela mesma”, “somente nela mesma” e Barthes procura conotações tomando como referência fatores externos à própria estrutura da fotografia. (Beceyro:1980)


No melhor exemplo, Beceyro faz uma análise da foto Libertação de Chartres (Robert Capa, 1944) e propõe uma aproximação da imagem. Ele começa sua análise descrevendo a foto em um tempo indeterminado e ocorrido no plano do "possivelmente": ele deduz que a foto foi tirada no mesmo dia em que as tropas aliadas ocuparam a cidade de Chartres, na França, e a libertaram dos nazistas. A mulher de cabeça raspada com a criança nos braços indica que ela colaborou com os nazistas e o filho é a prova da colaboração; o personagem preocupado é o pai; os habitantes festejam. Para o autor há três olhares possíveis de leitura.

1a leitura - feita pelos espectadores do fato real, próprios atores da cena fotografada. Os personagens estão contentes e vestem-se como se fossem para uma festa. Qual seria a razão da alegria? A libertação? Não é muito claro. O motivo da alegria é a detenção da mulher. Ela simboliza para eles a ocupação do exército nazista e é um símbolo frágil e vulnerável ao alcance de todos, um heroísmo ao alcance de todos. Três personagens não participam dessa alegria insana ou embriaguez coletiva: a mulher com o filho, o pai e o fotógrafo.

2a leitura - realizada pelo fotógrafo. Para Capa, não há nenhum exército alemão nem ato de heroísmo aqui, só tragédia. O fotógrafo não partilha o ponto de câmara escolhido com nenhum habitante, todos estão à sua frente configurando um enfrentamento, ou seja, são pontos de vista antagônicos. O ponto de câmara e o momento foram escolhas deliberadas do fotógrafo. O gesto da mulher olhando para seu filho seria perdido um instante antes ou depois.

3a. leitura - feitas pelos espectadores da foto. Podemos indicar que a leitura de qualquer foto é uma leitura "cultural". Franceses lêem esta foto diferentemente de outros povos, pelas próprias circunstâncias históricas.

O interessante e cativante dessa análise é a sua proposta de uma inversão da noção de resistência: ela não está onde se poderia supor, pois na foto quem resiste é a colaboradora. Ela simboliza a resistência não só dos franceses. É ela a protagonista de uma resistência, é ela que maternalmente tenta sobreviver. A construção sígnica da fotografia passa, portanto pelas escolhas valorativas do sujeito enunciador da imagem, o fotógrafo. Ao levantar essas quatro leituras possíveis, Beceyro coloca-nos diante do problema da polissemia cultural na leitura das imagens técnicas. Elas não têm uma leitura consensual para todas as culturas, assim como as imagens não técnicas, desmistificando desse modo o mito de pureza representativa dessas imagens.

Philippe Dubois é o autor contemporâneo que aprofundou a análise da fotografia pelo viés semioticista. Apesar da premissa da existência de uma significação per si, para ele a fotografia é entendida como uma imagem associada a um ato inseparável de sua enunciação e de sua recepção. Dessa forma, o fotógrafo, o dispositivo técnico, a cena e seus atores e, por fim, o espectador, fazem parte do processo de significação. Ao abordar e fazer um itinerário histórico da questão do realismo fotográfico, Dubois encontra posições contrárias que vão emitir valores e conceitos contraditórios. Nos seus primórdios, com sua ênfase no fascínio da representação realística da realidade, a imagem técnica funda um discurso que perdura até os dias de hoje, de localizá-la no âmbito da analogia. Com um discurso da imagem técnica existindo como um espelho, em que a realidade se projeta mecânica e quimicamente, essa abordagem define-a como uma visão automática da realidade e portanto, objetiva, quase natural, especular. E é essa quase naturalidade das imagens técnicas que vai permear o imaginário da humanidade durante todo o século passado até os dias de hoje. Com a entrada da manipulação eletrônica, mesmo que ainda fora do alcance da maioria, a consciência da interferência sobre a realidade e no produto final cresceu, mas podemos afirmar que ainda hoje a visão positivista das imagens técnicas continua dominadora. A “neutralidade” do registro fotográfico implicaria de forma automática em valor etnográfico, sem uma crítica efetiva ao instrumento e sua natureza reprodutiva de um modelo datado no século XIX.

O discurso opositivo procura nas dimensões do ideológico a noção de transformação do real pela codificação técnica, cultural, estética; outros procuram na psicologia da percepção uma teoria da imagem que se opõe ao tratamento da fotografia como mimeses. As intencionalidades passariam, portanto, pelas condições técnicas de produção da imagem e pela fisiologia do olhar humano, no caso, da psicologia da percepção e no encontro de uma convenção parcial da realidade que produz uma interpretação imagética da mesma, sendo dessa forma, um discurso ideológico. A imagem não seria espelhada, pois os próprios raios seriam desviados pelas lentes em processo de refração, ou seja, uma imagem alterada dentro de sua própria formação. A ilusão especular seria ideológica ao alimentar o imaginário do realismo fotográfico.

Entretanto, Dubois encontrará nessas correntes aproximações conceituais para dialogar e construir um caminho teórico próprio a partir dos princípios da semiótica de C.Pierce e principalmente no conceito de referência em Barthes. Apesar de Barthes, de a câmara clara ser um interlocutor privilegiado de Dubois, ele o tratará como um autor perigoso pela sua forte concepção generalizante e absoluta do referencialismo ou como ele diz: “Barthes está longe de ter escapado a esse culto - a essa loucura - da referência pela referência” (Dubois: 1986:47).

A superação do obstáculo epistemológico forjado na concepção de mímeses será dada por intermédio de uma nova aproximação teórica do realismo das imagens técnicas em terreno preparado por Charles Pierce. Será na teoria pierceana que Dubois encontrará o conceito de indicialidade existente na própria conexão física da marca luminosa com a realidade.

Assim, além da visão mecanicista na representação analógica e do recorte ideológico na representação renascentista, Dubois propõe uma nova abordagem da construção do realismo das imagens técnicas em que o ponto central é o conceito de tempo, um tempo reduzido a frações de segundos, mas suficiente para registrar uma marca luminosa, contigüidade física da realidade. Conceito de tempo construído culturalmente, mas que escapa da intervenção humana já que é a condição primeira dessa imagem instantânea.

Dubois baseia-se nas três categorias básicas peircianas cujas qualidades são: o índice como representação por contigüidade física com seu referente; o ícone como representação por semelhança; o símbolo como representação por convenção geral. Essa abordagem identifica as imagens técnicas com as qualidades indiciais da singularidade, da designação e do testemunho. A singularidade, como prova da unicidade do referente em que a contigüidade referencial é a própria projeção metonímica; o testemunho, porque por sua gênese, a fotografia necessariamente testemunha, certifica embora às vezes não signifique e a designação, qualidade de indicar a singuralidade única do referente. Assim, a primeira condição existencial das imagens fotossensíveis é ser inicialmente na sua gênese um índice, podendo assemelhar-se e tornar-se um ícone, para finalmente adquirir sentido e ser um símbolo.

Pensando o “fotográfico”, Dubois classifica-o epistemicamente como uma categoria do pensamento cuja singuralidade é exatamente essa relação sígnica com o espaço e o tempo, o real e o sujeito, com o ser e o fazer. É uma imagem-ato cuja tomada ou ato de produção só adquire sentido na sua recepção e difusão. Sem cair na mesma subjetividade de Barthes sobre o punctum, reafirma que a “pulsão fotográfica” é a relação originária com a situação referencial que faz da fotografia um índice com um "poder irracional", irracionalidade que guiou Barthes em toda A Câmara Clara , uma obsessão pela referência.

Entretanto, a grande transformação na produção, veiculação e recepção das imagens fotográficas hoje é a forte necessidade testemunhal para além do photoshop, são os sujeitos endógenos ao fato, muitas vezes com câmeras miniaturizadas em aparelhos digitais multifuncionais, que reforçam estereótipos do fotógrafo presente na cena e nos fazem crer com mais veemência na existência do fato, como ressaltou Susan Sontag (2003), sobre as imagens de tortura nas prisões no Iraque. Aqui, voltamos à fotografia do século XIX, quando os revolucionários da Comuna de Paris foram perseguidos e mortos através de suas próprias memórias fotográficas: as imagens tiradas em regozijo durante o levante tornaram-se prova do “crime”. Ainda nesse contexto, se consumir é condição de existência e de pertencimento na sociedade de consumo, a presença individual ou coletiva na web é necessidade dessa sociedade e produz visibilidades fotográficas nunca antes alcançadas por nenhum outro meio de comunicação. Nesse sentido, proporciona que uma grande diversidade de grupos sociais possa hoje expor uma auto-imagem e um auto-retrato para o “outro” internáutico e com ele manter interatividades, participando do espetáculo do fluxo visual da contemporaneidade.

Fernando de Tacca é fotógrafo, professor livre docente em história da fotografia e antropologia da imagem no Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação (Unicamp). Contemplado com a bolsa vitae de Fotografia/2002, é autor do livro: A imagética da comissão Rondon, Papirus, Campinas, 2001. Assumiu a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Buenos Aires em 2004, indicado pela Unicamp. Atualmente é coordenador do Núcleo de Pesquisa “Fotografia: Cultura e Comunicação”, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação Intercom. É editor da Revista Eletrônica Studium: http://www.studium.iar.unicamp.br

BIBLIOGRAFIA

Barthes, Roland. A câmara clara, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

Barthes, Roland. A mensagem fotográfica”, in Teoria da comunicação de massa, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978.

Beceyro, Raul. Ensayos sobre Fotografia; arte y libros, Cidade do México, 1980.

Dubois, Philippe El acto fotografico; Paidós, Barcelona, 1986.

Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta - Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Hucitec, São Paulo,1985.

Freund, Gisele. La fotografia como documentacion Social, Gustavo Gili, Barcelona, 1976.

Goldberg, Vicki. The power of photography; Abbville Press, Nova York, 1991

Machado, Arlindo. A ilusão especular, Brasiliense, São Paulo, 1984.

Machado, Arlindo “Máquinas de vigiar”, in Revista USP, no.7, Dôssie Tecnologias, 1990.

Sontag, Susan. Ensaios sobre fotografia, Editora Arbor, Rio de Janeiro, 1981.

Susan Sontag. Diante da dor dos outros, Companhia da Letras, São Paulo, 2003.

Tacca, Fernando de. “Fotografia e olhar totalitário”, Revista Imagens no.05, Editora da Unicamp,1995.