O século XX assistiu ao nascimento da expressão “cultura de massas”. Segundo Ortiz (1995), o termo “massa” surge e ganha impulso nos Estados Unidos com os meios de comunicação eletrônicos (rádio e televisão) e com o florescimento de Hollywood. A partir de 1940 as expressões “meios de massa”, “comunicação de massa” e “cultura de massa” passam a ser utilizadas correntemente.
Apesar de os conceitos se alterarem, massa se associa à homogeneização cultural, e a massificação se dá pela comunicação entre as classes. Os meios de comunicação passam a ter “o poder de conectar as partes dispersas no todo”, se apresentando como estratégicos para exercer o controle social enquanto mecanismo de persuasão, anteriormente exercido por força, violência e religião. Aliada ao conformismo e ao status quo, a cultura de massa atribui status às causas, instituições, movimentos sociais e pessoas, conferindo prestígio e legitimando a autoridade de indivíduos e grupos.
No pós-guerra, o espaço mundial deixa de ser uma metáfora e passa a se consolidar como realidade. “Dentro desse contexto, o papel dos meios de comunicação é fundamental; sejam os 'antigos' sistemas (televisão e cinema), sejam as novas tecnologias (informática) que impulsionam o desenvolvimento de uma cultura mundializada” (Ortiz, 1995). Essa cultura-mundo é desprovida de território específico e não se apresenta como substituição às culturas nacionais e locais: o que se alterou foi a relação entre elas. A ânsia de tornar-se uma "nação moderna" leva os países em desenvolvimento a uma busca desenfreada de incorporação aos padrões mundiais, o que obriga a marginalizar e instrumentalizar os "setores inertes" (classes populares e populações tradicionais). Tornar-se nação, no sentido moderno, passa pelo estabelecimento de mercados nacionais ajustados às exigências do mercado internacional, e a cultura de massas auxilia a criação de uma ideia de "cultura nacional”, difundida pela mídia.
Dentro deste contexto de cultura e comunicação, as noções de popular e tradicional também mudam. Para Ortiz, a alteração básica no conceito de tradição traz duas possibilidades: “uma, a ‘tradicional’, que se associa à cultura popular. Outra, mais recente, que começamos a conhecer, que é a tradição legada pela modernidade. Nesse sentido, a relação entre a tradicional e a moderna tradição redefine os termos, inclusive o conceito que tínhamos de popular, que agora não mais possui o mesmo significado. A indústria cultural é um exemplo claro disso, à medida que incorpora parte da cultura popular (em termos mercadológicos), transformando-a” (Ortiz, 1995).
Essas novas relações demonstram o surgimento de novos interlocutores – grupos que, até há pouco, eram excluídos das políticas públicas (não só culturais, mas também sociais e econômicas) e passaram a ser considerados pelo Estado potenciais produtores de cultura. De marginalizados passaram a ser “parceiros”, tendo seus saberes e produções culturais reconhecidos em diversos projetos, e incluídos nas políticas públicas.
Esse potencial não está plenamente manifestado e os grupos periféricos ainda lutam para verem seus saberes e produções culturais reconhecidos e incluídos, mas a democratização digital, mesmo que incipiente, aponta caminhos significativos. Porém, a exclusão histórica de segmentos da sociedade acarretou, entre outras coisas, a desigualdade no acesso aos bens (culturais, de consumo, educacionais), e é significativa para avaliarmos o desenvolvimento dos projetos que têm como espinha dorsal a comunicação intercultural. Atualmente uma multiplicidade de projetos se desenvolve em áreas da produção audiovisual abrangendo desde a cultura erudita e as novas tecnologias digitais até as tecnologias patrimoniais e o saber tradicional e popular.
Esse processo relativamente novo está alterando o mapa das relações socioculturais, alterações essas que exigem reflexão constante e o estabelecimento de novas mediações. E estabelecendo essa mediação entre as instituições – família, escola, igreja, Estado – a mídia se apresenta como o espaço privilegiado para os diálogos.
Estabelecer relações mediadas pelas novas tecnologias digitais entre setores da cultura erudita, acadêmica, culturas tradicionais e populares significa aceitar novos interlocutores. Atuar nas interfaces entre comunicação, educação e novas tecnologias digitais depende da percepção de que o respeito à diversidade sociocultural é base fundamental para a criação de diálogos. Existem inúmeras formas de representação e concepção de mundo, que constantemente se interpenetram e proporcionam interação que ultrapassa as barreiras sociais, temporais e geográficas.
A análise do uso do audiovisual como instrumento de integração, aprendizagem, comunicação e expressão vem se caracterizando como um dos aspectos das relações comunicacionais, tanto no ensino informal quanto no formal. No que se refere à área “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, o MEC expressa que “a produção contemporânea é essencialmente simbólica e o convívio social requer o domínio das linguagens como instrumentos de comunicação e negociação dos sentidos”.
Para a construção da linguagem audiovisual temos que ter em mente que ela é composta por outras três linguagens – verbal, sonora e visual – que, em conjunto, tornam-se uma mensagem específica. A leitura dessa linguagem pressupõe o conhecimento dos seus elementos, seus códigos e processo de construção.
Em um resgate histórico de Sardelich (2006), a expressão “leitura de imagens” começou a circular na área de comunicação e artes no final da década de 1970, com a explosão dos sistemas audiovisuais. A autora dá ênfase para a área da semiótica para as leituras de imagens, na medida em que a imagem passa a ser compreendida como signo que incorpora diversos códigos. Sua leitura requer o conhecimento e a compreensão desses códigos.
A necessidade de alfabetizar para a leitura da imagem foi evidenciada na obra de Donis Dondis (1991), em que cita o conceito de alfabetismo visual e a possibilidade de ensinar a ver e ler a obra de arte. Para ele, o “modo visual constitui todo um corpo de dados que, como a linguagem, podem ser usados para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística”.
Dondis ressalta a importância da imagem e do visual como linguagem, já que boa parte da comunicação está, hoje, nas mãos de uma geração condicionada por fotografia, cinema, televisão, câmera e computador. “O alfabetismo visual tem sido e sempre será uma extensão da capacidade exclusiva que o homem tem de criar mensagens. A reprodução da informação visual natural deve ser acessível a todos. Deve ser ensinada e pode ser aprendida, mas é preciso observar que nela não há um sistema estrutural arbitrário e externo, semelhante ao da linguagem” (Dondis, 1991).
Projetos socioculturais e a educação
Alfabetizar por meio da imagem é objetivo cada vez mais presente em muitos projetos socioculturais. O projetoBem-te-vi, concebido e coordenado pela professora Ariane Porto desde 2005 consiste na criação de espaços de produção audiovisual em locais públicos como escolas, casas de culturas e centros comunitários. Nesses núcleos, ou melhor, ninhos, os projetos são produzidos – ou “chocados”. Por meio de oficinas de animação, ficção e documentário as crianças e adolescentes realizam todo o processo de produção do audiovisual – roteiro, produção, direção, finalização. Os curtas produzidos nos ninhos são difundidos em espaços públicos: televisões comunitárias e educativas, festivais e mostras especializadas. O Bem-te-vi é um espaço permanente no qual as crianças e jovens são protagonistas da construção de sua identidade e de seu desenvolvimento cultural, mediante o conhecimento e a apropriação, não só da linguagem audiovisual, mas também das novas tecnologias da informação e comunicação.
Outro exemplo é o projeto Tecnologias e Mídias Interativas (Time),desenvolvido pela professora Vera Toledoem escolas, no qual os alunos fotografam, filmam e produzem HQs que narram uma releitura das clássicas histórias da literatura infantil. O projeto revelou-se uma aprendizagem fascinante imagética e de linguagens para todos. As histórias lidas em classe eram ressignificadas, reescritas e lidas/veiculadas depois sob a forma de rádio-novela.
Os dois projetos, assim como outros da mesma natureza, validam a aprendizagem da leitura, potencializam o letramento e até as diferentes formas linguísticas de descrever a realidade ou a ficção. As crianças/alunos participaram efetivamente dos programas: uns produziram novelas, outros leituras coletivas de pequenos poemas, piadas, receitas culinárias, adivinhações, leram notícias ou propagandas e, nesse intermezzo, corpo e alma dedicados a uma causa maior – a veiculação de sua melhor produção. Gradualmente a “dificuldade” se esvai e dá lugar à autoconfiança, à alegria da superação. E assim, formam-se linhas de fuga contrárias à coerção, aos estigmas das dificuldades de aprendizagem, ou à prisão das não-aprendizagens.
Ariane Porto Costa Rimoli é pós-doutora em comunicação e artes, docente do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes (Unicamp), produtora cultural e cineasta.
Vera Regina Toledo Camargo é doutora em comunicação e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor-Unicamp).
Referências
Dondis, Donis. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Manguel, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 Ortiz, Renato. Mundialização da cultura. São Paulo: Braziliense, 1994. Ortiz, Renato. “Modernidade e cultura”, in: Sujeito, o lado oculto do receptor. Org. Mauro Wilton de Sousa. São Paulo: Brasiliense, 1995. Sardelich, Maria Emilia. “Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa”.Cadernos de Pesquisa, v.36, n.128 (maio/agosto 2006). Setton, Maria da Graça. Mídia e educação. S
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