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Artigo
O realismo da especulação
Por Alfredo Suppia
10/07/2014

Laboratório militar ultra-avançado pesquisa microorganismo super-letal. Jornalista investiga caso de acidente em usina nuclear. Hacker invade o sistema de defesa dos EUA e deflagra uma crise. Empresa privada assume a segurança pública em metrópole americana. Noticiário ou ficção científica? As situações acima remetem a quatro filmes americanos de ficção científica: Síndrome de Andrômeda (The Andromeda Strain, 1971), de Robert Wise, A síndrome da China (The China Syndrome, 1979), de James Bridges, Jogos de guerra (War Games, 1983), de John Badham, e Robocop (1987), de Paul Verhoeven. É difícil precisar quanto da noção de ciência e tecnologia que temos não foi adquirida de filmes como estes, representativos de um gênero que já abordou, de forma visionária, temas tão diversos e complexos quanto a astronáutica, a inteligência artificial ou a clonagem.

Filmes de ficção científica têm não apenas divulgado temas da agenda contemporânea para o grande público (muitas vezes de forma equivocada ou irresponsável, é verdade), mas também aguçado o interesse de aspirantes à cientista. Cinema e literatura também já foram mencionados como fonte de inspiração para cientistas estabelecidos.

“Prototipia diegética” . Brian Stableford, autor de "The marriage of science and fiction" (Encyclopedia of Science Fiction, editada por Robert Holdstock. London: Octopus, 1978), assinala que o primeiro "manifesto" de uma literatura baseada em ideias científicas foi escrito pelo crítico e poeta britânico William Wilson, o qual defendia, já em 1851, uma ficção que fosse veículo de popularização da ciência. Uma segunda tentativa nesse sentido foi feita em 1895 pelo romancista americano Edgar Fawcett, para quem "a ficção imaginativa deveria descobrir novas fontes e nova disciplina nos territórios abertos pela teoria científica". Ambas as propostas passaram despercebidas.

Hugo Gernsback, engenheiro e editor americano de origem luxemburguesa, criador da revista Amazing Stories em 1926 – e a quem se atribui a paternidade do termo science fiction –, foi escritor tanto de ficção quanto de divulgação científica. Pioneiro do rádio e da televisão, foi dos primeiros a enunciar o princípio do radar, em 1911, e grande responsável pela divulgação da ficção científica nos EUA.

Sob o legado de Gernsback estão Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, escritores com formação científica. Clarke, formado em física e matemática, é autor, entre outras obras, do roteiro de 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), juntamente com o diretor Stanley Kubrick. Escreveu competentes livros de não-ficção ou divulgação científica, como Profiles of the future (1962), e ficou famoso por antever tecnologias como o satélite artificial e a rede de comunicações mundial. Asimov, doutor em bioquímica e professor da Universidade de Boston, foi autor não só de uma grande variedade de romances e contos de ficção – como I, robot (1950) ou a série Foundation (1951) – mas também de livros de divulgação científica como Inside the atom (1956) ou A short history of biology (1964), entre vários outros. Pela inventividade e qualidade literária, as obras ficcionais tanto de Clarke quanto de Asimov não só refletem a paixão de ambos pela ciência como também incorporam a vocação didática desses autores.

Em seu livro The cybernetic imagination of science fiction film (Cambridge: The MIT Press, 1980), Patrícia Warwick diz que "invenção e imaginação interagem, cada uma refletindo as novas possibilidades da outra". A autora observa que Isaac Asimov escreveu sua primeira história de robôs, “Robbie”, sob a influência da visita a um robô em exposição na Feira Mundial de Nova York, em 1939. Em contrapartida, Joseph Engelberger, o construtor do primeiro robô industrial, o Unimate (1958), confessou a influência que teve da obra I, robot quando ainda era adolescente. Atualmente, a indústria robótica japonesa não nega sua afinidade com o universo ficcional de Asimov, criador das Três Leis da Robótica. Ficção e ciência se confundem.

Um livro totalmente dedicado a uma reflexão instigante sobre as trocas criativas entre o cinema e a ciência é Lab coats in Hollywood: science, scientists, and cinema (Cambridge: MIT Press, 2013), de David Kirby. Cientista de formação, Kirby defende que o cinema de ficção científica teve e continua tendo papel relevante em termos de divulgação científica, sensibilização da opinião pública para temas controversos da ciência, visibilidade de determinadas teorias em detrimento de outras, imagem pública da ciência e até mesmo obtenção de financiamentos por meio da propaganda de pesquisas. Em sua argumentação, Kirby lapida o conceito de “protótipo diegético”. No limite, graças à “capacidade de testemunho virtual do cinema” (virtual witnessing capacity, nos termos de Kirby), filmes de ficção científica – por exemplo, sobre aventura espacial, inteligência artificial ou clonagem – oferecem, por meio de narrativas ficcionais, protótipos para especulações acerca de temas controversos ou prematuros na agenda científica contemporânea. Para a configuração de tal “protótipo diegético”, não apenas o cuidado com a verossimilhança narrativa, mas sobretudo um nível razoável de respaldo científico deve entrar em jogo na produção cinematográfica, visando a um determinado tipo de realismo da representação.

Nesse sentido, realismo e cinema de ficção científica talvez não sejam termos tão excludentes entre si quanto possam parecer à primeira vista. O cinema de ficção científica também recorre a diferentes estratégias narrativas realistas em sua criação de um “protótipo diegético”, e o argumento de Kirby pode ser elucidativo de um tipo de realismo em particular, verificável numa notável parcela dos filmes de ficção científica. Para além de uma preocupação com a verossimilhança, tão cara ao cinema de extração clássica, tal variedade de realismo baseia-se em consultoria científica apurada para construção de universos ficcionais absolutamente especulativos. Exemplos de filmes com essa característica podem ser encontrados na vertente da “aventura espacial”, subgênero bastante popular da ficção científica.

Corrida espacial. No âmbito de um cinema de ficção científica realista, amparado em ampla pesquisa e detalhamento técnico, beirando o documentário e com a assessoria de pessoal altamente especializado, destaca-se um diretor pioneiro em especial: Fritz Lang. Com efeito, Lang dirigiu filmes fundadores do gênero, como Metropolis (1927) e A mulher na Lua (Frau im Mond, 1929).

A mulher na Lua ilustra com propriedade uma certa concepção languiana de ficção científica realista. Nesse filme, Hermann Oberth e Willy Ley, especialistas em astronáutica, prestaram valiosa consultoria científica. Exemplo da preocupação de Fritz Lang com o realismo, o filme, conforme apontado pela crítica, antevê situações típicas da exploração espacial, como o ambiente de “gravidade zero” e o procedimento da contagem regressiva, a despeito de seus equívocos científicos, como a necessidade dramática de uma atmosfera no satélite terrestre – Lang não confiava na interpretação dos atores por trás de máscaras ou capacetes espaciais. A mulher na Lua também apresenta a ideia de um foguete com estágios, similar aos que veríamos décadas depois com a corrida espacial, e foi tão realista em determinados aspectos que o governo nazista proibiu sua exibição durante algum tempo, temendo a divulgação de segredos científico-militares relativos aos foguetes alemães. Em seu livro Fritz Lang: the nature of the beast (New York: St. Martins Press, 1997), Patrick McGilligan lembra que, por conta de A mulher na Lua, Lang foi convidado de honra em 1968 de um Space-Science Seminar realizado num centro governamental de pesquisa em Huntsville, Alabama, EUA.

A influência do estilo de A mulher na Lua pode ser evidenciada numa produção americana do início do boom do cinema de ficção científica. Baseado no romance Rocket ship Galileo (1947), de Robert Heinlein, Destination Moon (1950), de Irving Pichel, é outro exemplo de filme baseado no esmero e atenção aos detalhes científicos. Não bastasse a pedagogia inerente ao cinema americano de extração clássica, em Destination Moon toda a aventura é narrada de forma particularmente didática, como um bom filme educativo e semi-documentário – embora hoje seu otimismo possa soar um tanto quanto depressivo. A Terra vista do espaço em Destination Moon é azul e envolta em nuvens, e a superfície lunar também é apresentada com razoável fidelidade, fruto provavelmente da “consultoria técnica em arte astronômica” prestada por Chesley Bonestell. O próprio Robert Heinlein trabalhou como consultor técnico no filme de Pichel, um dos que melhor lidava com temas como vácuo e força da gravidade até então.

Planeta Bur (1962), de Pavel Klushantsev, representou por sua vez a engenhosa investida soviética na ficção de exploração espacial com razoável apuro técnico. O filme teria contado com o apoio de uma equipe de consultores científicos. Vale a pena lembrar que Klushantsev foi o diretor de importantes filmes educativos ou de propaganda científica soviética. Em películas como Road to the stars (1957), Luna (1965) ou Planeta Bur (1961), o diretor já utilizava técnicas de filmagem divulgadas como pioneiras tempos depois, em 2001: Uma odisséia no espaço.

Mais contemporaneamente, filmes como Deep impact (1998), de Mimi Leder, ou Armageddon (1998), de Michael Bay, continuam ilustrando o papel da consultoria científica em filmes-catástrofe ou de exploração espacial, conforme detalhado por David Kirby em Lab coats. Kirby considera Deep impact um caso de sucesso em termos de consultoria científica, com bom ponto de equilíbrio entre as demandas narrativo-dramáticas e o respaldo técnico-científico da astronomia – ao contrário de Armageddon, uma superprodução que teria subestimado a pertinência da consultoria especializada.

Outro exemplo de sucesso em termos de consultoria e repercussão pública, segundo Kirby, é o filme Contato (Contact, 1997), de Robert Zemeckis, adaptação das ideias de Carl Sagan que teria favorecido a manutenção do programa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), financiado pelo governo dos EUA. Twister (1995), de Jan de Bont, filme-catástrofe sobre tornados, também teria contribuído, segundo Kirby, para maior apoio da opinião pública em relação à pesquisa meteorológica financiada pelo governo americano, especificamente o trabalho do National Severe Storms Laboratory (NSSL), agência que prestou consultoria ao roteiro do filme de Bont. Dante’s peak (1997), de Roger Donaldson, sobre super-erupção vulcânica, também contou com assessoria do U.S. Geological Survey (USGS), instituição que, por sua vez, foi beneficiada pela visibilidade do filme. Ciente do potencial de repercussão do cinema, a Nasa, agência espacial americana, veio a apoiar e até mesmo vincular seu nome a determinadas produções, como no caso de aventuras de exploração do planeta Marte – vide o caso de Missão Marte (Mission to Mars, 2000), de Brian de Palma.

Clonagem. Meninos do Brasil (1978), dirigido por Franklin J. Schaffner, com base no livro de Ira Levin, trata de um projeto secreto conduzido pelo médico nazista Josef Mengele na América do Sul, e que tem por objetivo criar um clone de Adolf Hitler. A despeito das simplificações geográficas e históricas, o filme chama a atenção pelo didatismo científico. A certa altura, o diálogo entre um médico e um caçador de nazistas abre uma trincheira documentária no universo ficcional, sendo inteiramente dedicado à explicação, em linguagem acessível, da técnica da clonagem. O médico ilustra seu discurso projetando para seu interlocutor (e, por extensão, para nós, os espectadores) um filme científico, com imagens documentárias de procedimentos ligados à clonagem.

Outro filme que levanta questões interessantes sobre a clonagem é Jurassic Park (1993). Dirigido por Steven Spielberg com base no romance de Michael Crichton, o filme é sobre um parque temático que abriga dinossauros recriados a partir de material genético contido no corpo de uma mosca preservada em âmbar. Em Lab coats, Kirby dedica várias páginas à consultoria científica em Jurassic Park, explicando como o filme beneficiou uma hipótese científica controversa a respeito dos dinossauros – a teoria de Jack Horner, segundo a qual as aves modernas teriam mais em comum com os extintos dinossauros do que os répteis que conhecemos hoje. Horner, consultor científico de Jurassic Park, rejeitou qualquer elemento do script e da produção que não encorajasse a conexão pássaros-dinossauros. Resultados dramáticos da opção pela hipótese Horner podem ser constatados na agilidade dos dinossauros do filme, em especial a da espécie chamada de velociraptor.

Gattaca (1997), escrito e dirigido por Andrew Niccol, retoma a clonagem humana, apostando no livre-arbítrio e no acaso como fatores de resistência a um futuro dominado pela genética. De forma similar ao livro Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, o filme de Niccol descreve uma sociedade do futuro próximo na qual bebês que nascem em clínicas de aprimoramento genético são destinados a carreiras de elite. Em contrapartida, indivíduos nascidos naturalmente - e, portanto, sujeitos ao acaso genético – são destinados a funções subalternas. A maioria das tecnologias apresentadas em Gattaca nos é familiar, mas a força do filme vem de sua especulação sociológica, aliada a apropriações muito sensatas do conhecimento genético corrente.

Realismos. Todos os filmes citados até agora são ilustrativos de um suposto “realismo autenticatório” verificável numa determinada parcela do cinema de ficção científica, uma estratégia narrativa amplamente baseada na extrapolação de dados provenientes de consultoria científica altamente especializada. Obviamente, outras variedades de estratégia realista podem ser observadas no cinema de ficção científica mundial de diversos períodos. Por exemplo, o realismo autenticatório de inspiração documentária, presente nos filmes mencionados acima, pode derivar num realismo autenticatório de emulação documentária, como no cinema de Peter Watkins, diretor de The war game (1965), ou na obra de Neill Blomkamp, como em Alive in Joburg (2005) ou District 9 (2009). Outro tipo de realismo cinematográfico observável no cinema de ficção científica remete ao pensamento do crítico francês André Bazin. Exemplos do realismo baziniano presente no cinema de ficção científica poderiam ser encontrados na obra de Alfonso Cuarón, como em Filhos da esperança (Children of men, 2006). Ainda outra matiz de estratégia realista pode ser observada no cinema dito “de arte” e no cinema independente, na obra de cineastas como Andrej Zulawski ou Piotr Szulkin, e em filmes como A outra Terra (Another Earth, 2011), de Mike Cahill. Finalmente, um certo “realismo do sul”, algo próximo do realismo crítico e do pensamento de Gyorgy Lukács, pode ser investigado em filmes como Parada 88: o limite de alerta (1978), de José de Anchieta, Hombre mirando al Sudeste (1986), de Eliseo Subiela, La sonámbula (1998), de Fernando Spiner, e Sleep dealer (2008), de Alex Rivera. Sob essa perspectiva, uma eventual taxonomia do realismo no cinema de ficção científica ainda se faz por construir.

Alfredo Suppia é professor de cinema do Departamento de Cinema (Decine) e do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).