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Reportagem
Arena aérea para tensão política
Por Carolina Cantarino
10/02/2007

Tensão entre civis e militares permanece no Brasil pós-ditadura

O acidente com o avião da Gol, que vitimou 154 pessoas no ano passado, trouxe à tona uma série de deficiências da aviação brasileira. O ministro da Defesa Waldir Pires atribuiu o "apagão" aéreo a problemas de gestão da manutenção da aeronáutica e se dispôs a negociar com os controladores de vôo – depois de estes terem adotado uma "operação padrão". A intervenção do ministro desagradou o comando da aeronáutica. O comandante-chefe acusou o ministro de incentivar a anarquia e a indisciplina ao negociar com os "grevistas".

A crise colocou o debate sobre a militarização da atividade, pois mesmo após o fim da ditadura, os militares continuam no controle do tráfego aéreo civil e privado. A fiscalização das condições de vôo e navegação das aeronaves civis também cabe ao comando da aeronáutica, assim como a investigação de acidentes. O sistema de radares foi montado durante a ditadura militar (1964-1989) e, desde então, também vem sendo controlado pelos militares.

O relatório, entregue no último dia 30 pelo Grupo de Trabalho Interministerial, propõe que o controle do tráfego de aviões comerciais e particulares seja feito por um órgão civil e não pela aeronáutica. O grupo de trabalho foi criado pelo Ministério da Defesa e reúne a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Infraero, representantes do governo, de empresas aéreas e trabalhadores do setor. O relatório foi entregue à Casa Civil e o governo deve se pronunciar sobre o assunto somente depois da reforma ministerial (e da troca do comando da aeronáutica).

O documento propõe a transferência do controle de alguns vôos Já faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um hoje monitorados pelos sistemas de radares Cindacta 1 e 2 á faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um para outros centros menos sobrecarregados. Além da revisão do plano de carreira e dos salários dos controladores de vôo, os redatores do relatório propõem também a criação de um órgão civil, subordinado ao Ministério da Defesa, para controlar o tráfego aéreo comercial e de aeronaves particulares. Ao comando da aeronáutica caberia a defesa do espaço aéreo.

Os militares já se posicionaram contra a proposta. Argumentam que o controle compartilhado do espaço aéreo caminha no sentido inverso ao da tendência mundial que é a militarização total do sistema (como a integração do controle do espaço aéreo ao sistema de defesa nos Estados Unidos pós-11 de setembro, por exemplo), além de representar um custo elevado com seleção e treinamento de novos profissionais.

Sendo assim, a Força Aérea Brasileira (FAB) está propondo a desmilitarização apenas dos controladores de vôo, que poderão migrar para carreiras civis mas permanecerão subordinados ao comando da aeronáutica. Vale lembrar que a Anac abriu, recentemente, um concurso com vagas para controladores de vôo civis. O salário inicial é de R$ 3.148, quase R$ 1 mil a mais que o salário inicial de um controlador militar. Mas quem optar pela migração perderá os benefícios previdenciários da carreira militar: aposentadoria com salário integral e com 30 anos de serviço. A proposta da FAB atende, assim, a algumas reivindicações da categoria sem que o controle do tráfego aéreo civil seja repassado ao Ministério da Defesa.

"Se o espaço aéreo é comercial, o controle deve ser feito por civis, como é na maioria dos países. Se o espaço aéreo é militar, que o controle seja militar. O que está em jogo é disputa por poder. Como o Brasil não possui inimigos externos, então, no caso, a aeronáutica precisa de espaço para exercitar o seu poder. A disputa não é, portanto, técnica e sim de natureza política", afirma Jorge Zaverucha, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Segundo o cientista político, a crise na aviação revela, mais uma vez, a fragilidade do Ministério da Defesa diante das forças armadas e, mais do que isso, que o antagonismo político entre civis e militares ainda permanece no Brasil pós-democratização.

Ministério da Defesa versus forças armadas

A crise na aviação é mais um episódio da tensão que caracteriza as relações entre civis e militares, no âmbito do Estado, a partir da criação do Ministério da Defesa (MD). Mesmo tendo sido anunciada em 1995, a nova pasta só foi instituída durante o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999. Quatro ministérios foram absorvidos por ela: Marinha, Exército, Aeronáutica, além do ministro-chefe do Estado Maior das forças armadas. Essa reestruturação prevê que os comandantes das forças armadas devem se submeter a um ministro civil. Desde então, não têm sido poucas as resistências, incluindo provocações e desacatos, como as que caracterizaram as relações dos militares com o então ministro José Viegas, demitido pelo presidente Lula após ter sido desautorizado por um comandante do exército, num episódio envolvendo a publicação de fotos do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto durante a ditadura militar.

Viegas pediu a demissão do comandante e quem acabou sendo demitido foi ele, numa demonstração evidente da fragilidade do Ministério da Defesa. Para Zarevucha episódios como esse seriam a prova de como vários enclaves autoritários ainda persistem no país. "Passamos por Sarney, Collor, Itamar, FHC e agora Lula, e, praticamente, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Uns avanços aqui, outros retrocessos acolá. O ministro da Defesa é uma espécie de rainha da Inglaterra: reina mas não governa. Venho dizendo isso desde a sua criação". Exemplo disso, segundo o cientista político, seria a própria área da aviação. "O ex-ministro da Defesa José Viegas já havia alertado que seria preciso mudanças para evitar problemas no sistema de controle. Só que para isso era preciso verba. Como o espaço aéreo, naquela época, não dava voto e há escassez de recursos, o problema foi jogado para debaixo do tapete. Até que o tapete se rasgou e deu no que deu", lembra Zaverucha.

O MD foi criado com o intuito de exercer um controle civil e democrático sobre os militares. Mas, segundo Luís Alexandre Fucille, que em sua tese de doutorado analisa a criação do Ministério da Defesa, outros objetivos estavam em jogo. Estes iam desde a campanha para assegurar uma vaga no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) – já que 165 dos 182 países que têm assento na ONU possuem um Ministério da Defesa – até a modernização e a racionalização do sistema de defesa, tendo em vista a "reforma do Estado" promovida por FHC e a preconização de um modelo mais gerencial ou administrativo. A tentativa teria sido a de enfraquecer um dos pilares da "era Vargas", que era o contato direto do aparato militar com o poder executivo.

Para Adriano Nervo Codato, professor de ciência política na Universidade Federal do Paraná, o aparelho estatal e o poder executivo não deixaram de ser autoritários, mesmo após o fim da ditadura militar. "Uma dimensão importante da herança institucional foi a permanência de núcleos de poder específicos no Estado brasileiro, dotados de grande independência e nenhum controle político (isto é, parlamentar) ou social (isto é, público)", analisa o cientista político. Os exemplos mais relevantes seriam: na área econômica, o "superministério" á faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um representado pela tríade Banco Central, Conselho de Política Monetária e Ministério da Fazenda; na área militar, o Gabinete de Segurança Institucional (antiga Casa Militar), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin, antigo Serviço Nacional de Informações) e a Justiça Militar; e, na área "empresarial" (política de privatizações, política de transportes, de comércio exterior, de comunicações, de educação etc.), o contato direto de representantes influentes do mundo dos negócios com decisores estratégicos do governo. Essas seriam algumas das continuidades autoritárias que caracterizariam a história política brasileira, segundo Codato, desde o golpe militar em 1964 até os dias atuais, analisadas por ele em artigo recente. Além disso, ele afirma que os princípios da Lei de Segurança Nacional ainda continuam em vigor e que a Constituição de 1988 assegura as funções das forças armadas para manter "a lei e a ordem" no país. Segurança pública e defesa nacional, continuariam, assim, sendo confundidas, como se pode notar nas recentes ocupações dos morros cariocas pelo exército.

Herança maldita

Tendo em vista todo esse quadro, para Fucille, o papel dos militares no governo civil deveria ser mais questionado pela sociedade como um todo. Segundo ele, a criação do Ministério da Defesa foi uma inovação política importante nesse sentido, podendo ainda acarretar mudanças no próprio aparelho de Estado naquilo que diz respeito, segundo o pesquisador, à uma necessária subordinação militar que estaria pendente no Brasil desde o fim da ditadura. Ou seja, para Fuccille, as forças armadas continuam a atuar de forma autônoma quando deveriam se subordinar à autoridade do ministro (civil) da Defesa e do próprio presidente da República."A consolidação da democracia está estreitamente vinculada à capacidade de se estabelecer mecanismos de controle das políticas governamentais, aí incluso os assuntos militares e de defesa".

Para Fuccille, diante da histórica presença dos militares na política nacional (que remonta à Guerra do Paraguai, no final do século XIX, passa pela própria proclamação da República, pelo Estado Novo e, mais recentemente, pela ditadura militar), chama a atenção o descaso da sociedade brasileira em relação ao papel das forças armadas, prevalecendo a ilusão de que os militares, após o fim da ditadura militar, aderiram, automaticamente, aos ideais democráticos. Ele lembra que os militares mantiveram o controle sobre o processo de transição democrática (1974-1989) o que explica, em parte, o modo como a imagem da corporação tem sido preservada até os dias de hoje.

Enfrentando uma crise de legitimidade no início da década de 1970, com escândalos da repressão vindo à tona e problemas internos à corporação – como o racha entre diferentes facções os militares inventaram uma saída "lenta, gradual e segura". Um exemplo dessa estratégia é a própria Lei de Anistia, parte integrante desse projeto de distensão do regime. Criada em 1979 para preservar a imagem das forças armadas, a Lei da Anistia não cedeu às reivindicações por uma anistia ampla, geral e irrestrita: pessoas condenadas ou processadas por homicídios praticados com motivação política não foram contempladas. Por sua vez, os crimes praticados pelos agentes estatais ligados à repressão permaneceram (e permanecem) impunes.

Ao ser negociada "pelo alto", o modo como a transição política brasileira foi promovida pelas Forças Armadas se refletiria, portanto, ainda hoje nas relações entre civis e militares. Prova disso seria a lei 9.140 – conhecida como "lei dos desaparecidos" promulgada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995. Ela reconhece a responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos políticos ocorridos durante a ditadura militar mas, ao mesmo tempo, mantém uma relação de continuidade com a Lei de Anistia de 1979: a ausência de investigações e de punições de militares e médicos envolvidos com torturas, desaparecimentos e assassinatos. Essas violações aos direitos humanos estariam, assim, sendo negligenciadas devido a uma política de reparação que focaliza apenas a indenização pecuniária das vítimas e familiares dos mortos e desaparecidos ou que permite, apenas, "penalizações simbólicas" como a que, de forma inédita no país, vem sendo buscada contra o coronel Ustra que comandou o Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), gabinete de repressão da ditadura miltar.