Tensão entre civis e militares permanece no Brasil pós-ditadura
O acidente com o avião da Gol, que vitimou 154 pessoas no ano passado,
trouxe à tona uma série de deficiências da aviação brasileira. O
ministro da Defesa Waldir Pires atribuiu o "apagão" aéreo a problemas
de gestão da manutenção da aeronáutica e se dispôs a negociar com os
controladores de vôo – depois de estes terem adotado uma "operação
padrão". A intervenção do ministro desagradou o comando da aeronáutica.
O comandante-chefe acusou o ministro de incentivar a anarquia e a
indisciplina ao negociar com os "grevistas".
A
crise colocou o debate sobre a militarização da atividade, pois mesmo
após o fim da ditadura, os militares continuam no controle do tráfego
aéreo civil e privado. A fiscalização das condições de vôo e navegação
das aeronaves civis também cabe ao comando da aeronáutica, assim como a
investigação de acidentes. O sistema de radares foi montado durante a ditadura militar (1964-1989) e, desde então, também vem sendo controlado pelos militares.
O relatório, entregue no último dia 30 pelo Grupo de Trabalho
Interministerial, propõe que o controle do tráfego de aviões comerciais
e particulares seja feito por um órgão civil e não pela aeronáutica. O
grupo de trabalho foi criado pelo Ministério da Defesa e reúne a
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Infraero, representantes do
governo, de empresas aéreas e trabalhadores do setor. O relatório foi
entregue à Casa Civil e o governo deve se pronunciar sobre o assunto
somente depois da reforma ministerial (e da troca do comando da
aeronáutica).
O documento propõe a transferência do controle de alguns vôos – Já faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um
hoje monitorados pelos sistemas de radares Cindacta 1 e 2 –á faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um
para outros centros menos sobrecarregados. Além da revisão do plano de
carreira e dos salários dos controladores de vôo, os redatores do
relatório propõem também a criação de um órgão civil, subordinado ao
Ministério da Defesa, para controlar o tráfego aéreo comercial e de
aeronaves particulares. Ao comando da aeronáutica caberia a defesa do
espaço aéreo.
Os militares já se posicionaram contra a proposta.
Argumentam que o controle compartilhado do espaço aéreo caminha no
sentido inverso ao da tendência mundial que é a militarização total do
sistema (como a integração do controle do espaço aéreo ao sistema de
defesa nos Estados Unidos pós-11 de setembro, por exemplo), além de
representar um custo elevado com seleção e treinamento de novos
profissionais.
Sendo
assim, a Força Aérea Brasileira (FAB) está propondo a desmilitarização
apenas dos controladores de vôo, que poderão migrar para carreiras
civis mas permanecerão subordinados ao comando da aeronáutica. Vale
lembrar que a Anac abriu, recentemente, um concurso com vagas para
controladores de vôo civis. O salário inicial é de R$ 3.148, quase R$ 1
mil a mais que o salário inicial de um controlador militar. Mas quem
optar pela migração perderá os benefícios previdenciários da carreira
militar: aposentadoria com salário integral e com 30 anos de serviço. A
proposta da FAB atende, assim, a algumas reivindicações da categoria
sem que o controle do tráfego aéreo civil seja repassado ao Ministério
da Defesa.
"Se o espaço aéreo é comercial, o controle deve ser feito por civis,
como é na maioria dos países. Se o espaço aéreo é militar, que o
controle seja militar. O que está em jogo é disputa por poder. Como o
Brasil não possui inimigos externos, então, no caso, a aeronáutica
precisa de espaço para exercitar o seu poder. A disputa não é,
portanto, técnica e sim de natureza política", afirma Jorge Zaverucha,
professor da Universidade Federal de Pernambuco. Segundo o cientista
político, a crise na aviação revela, mais uma vez, a fragilidade do
Ministério da Defesa diante das forças armadas e, mais do que isso, que
o antagonismo político entre civis e militares ainda permanece no
Brasil pós-democratização.
Ministério da Defesa versus forças armadas
A
crise na aviação é mais um episódio da tensão que caracteriza as
relações entre civis e militares, no âmbito do Estado, a partir da
criação do Ministério da Defesa (MD). Mesmo tendo sido anunciada em
1995, a nova pasta só foi instituída durante o segundo mandato do
governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999. Quatro ministérios foram
absorvidos por ela: Marinha, Exército, Aeronáutica, além do
ministro-chefe do Estado Maior das forças armadas. Essa reestruturação
prevê que os comandantes das forças armadas devem se submeter a um
ministro civil. Desde então, não têm sido poucas as resistências,
incluindo provocações e desacatos, como as que caracterizaram as
relações dos militares com o então ministro José Viegas,
demitido pelo presidente Lula após ter sido desautorizado por um
comandante do exército, num episódio envolvendo a publicação de fotos
do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto durante a ditadura
militar.
Viegas
pediu a demissão do comandante e quem acabou sendo demitido foi ele,
numa demonstração evidente da fragilidade do Ministério da Defesa. Para
Zarevucha episódios como esse seriam a prova de como vários enclaves
autoritários ainda persistem no país. "Passamos por Sarney, Collor,
Itamar, FHC e agora Lula, e, praticamente, tudo continua como dantes no
quartel de Abrantes. Uns avanços aqui, outros retrocessos acolá. O
ministro da Defesa é uma espécie de rainha da Inglaterra: reina mas não
governa. Venho dizendo isso desde a sua criação". Exemplo disso,
segundo o cientista político, seria a própria área da aviação. "O
ex-ministro da Defesa José Viegas já havia alertado que seria preciso
mudanças para evitar problemas no sistema de controle. Só que para isso
era preciso verba. Como o espaço aéreo, naquela época, não dava voto e
há escassez de recursos, o problema foi jogado para debaixo do tapete.
Até que o tapete se rasgou e deu no que deu", lembra Zaverucha.
O
MD foi criado com o intuito de exercer um controle civil e democrático
sobre os militares. Mas, segundo Luís Alexandre Fucille, que em sua
tese de doutorado analisa a criação do Ministério da Defesa, outros
objetivos estavam em jogo. Estes iam desde a campanha para assegurar
uma vaga no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas
(ONU) – já que 165 dos 182 países que têm assento na ONU possuem um
Ministério da Defesa – até a modernização e a racionalização do sistema
de defesa, tendo em vista a "reforma do Estado" promovida por FHC e a
preconização de um modelo mais gerencial ou administrativo. A tentativa
teria sido a de enfraquecer um dos pilares da "era Vargas", que era o
contato direto do aparato militar com o poder executivo.
Para
Adriano Nervo Codato, professor de ciência política na Universidade
Federal do Paraná, o aparelho estatal e o poder executivo não deixaram
de ser autoritários, mesmo após o fim da ditadura militar. "Uma
dimensão importante da herança institucional foi a permanência de
núcleos de poder específicos no Estado brasileiro, dotados de grande
independência e nenhum controle político (isto é, parlamentar) ou
social (isto é, público)", analisa o cientista político. Os exemplos
mais relevantes seriam: na área econômica, o "superministério" – á faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um
representado pela tríade Banco Central, Conselho de Política Monetária
e Ministério da Fazenda; na área militar, o Gabinete de Segurança
Institucional (antiga Casa Militar), a Agência Brasileira de
Inteligência (Abin, antigo Serviço Nacional de Informações) e a Justiça
Militar; e, na área "empresarial" (política de privatizações, política
de transportes, de comércio exterior, de comunicações, de educação
etc.), o contato direto de representantes influentes do mundo dos
negócios com decisores estratégicos do governo. Essas seriam algumas
das continuidades autoritárias que caracterizariam a história política
brasileira, segundo Codato, desde o golpe militar em 1964 até os dias
atuais, analisadas por ele em artigo
recente. Além disso, ele afirma que os princípios da Lei de Segurança
Nacional ainda continuam em vigor e que a Constituição de 1988 assegura
as funções das forças armadas para manter "a lei e a ordem" no país.
Segurança pública e defesa nacional, continuariam, assim, sendo
confundidas, como se pode notar nas recentes ocupações dos morros
cariocas pelo exército.
Herança maldita
Tendo
em vista todo esse quadro, para Fucille, o papel dos militares no
governo civil deveria ser mais questionado pela sociedade como um todo.
Segundo ele, a criação do Ministério da Defesa foi uma inovação
política importante nesse sentido, podendo ainda acarretar mudanças no
próprio aparelho de Estado naquilo que diz respeito, segundo o
pesquisador, à uma necessária subordinação militar que estaria pendente
no Brasil desde o fim da ditadura. Ou seja, para Fuccille, as forças
armadas continuam a atuar de forma autônoma quando deveriam se
subordinar à autoridade do ministro (civil) da Defesa e do próprio
presidente da República."A consolidação da democracia está
estreitamente vinculada à capacidade de se estabelecer mecanismos de
controle das políticas governamentais, aí incluso os assuntos militares
e de defesa".
Para
Fuccille, diante da histórica presença dos militares na política
nacional (que remonta à Guerra do Paraguai, no final do século XIX,
passa pela própria proclamação da República, pelo Estado Novo e, mais
recentemente, pela ditadura militar), chama a atenção o descaso da
sociedade brasileira em relação ao papel das forças armadas,
prevalecendo a ilusão de que os militares, após o fim da ditadura
militar, aderiram, automaticamente, aos ideais democráticos. Ele lembra
que os militares mantiveram o controle sobre o processo de transição
democrática (1974-1989) o que explica, em parte, o modo como a imagem
da corporação tem sido preservada até os dias de hoje.
Enfrentando uma crise de legitimidade no início
da década de 1970, com escândalos da repressão vindo à tona e problemas
internos à corporação – como o racha entre diferentes facções –
os militares inventaram uma saída "lenta, gradual e segura". Um exemplo
dessa estratégia é a própria Lei de Anistia, parte integrante desse
projeto de distensão do regime. Criada em 1979 para preservar a imagem
das forças armadas, a Lei da Anistia
não cedeu às reivindicações por uma anistia ampla, geral e irrestrita:
pessoas condenadas ou processadas por homicídios praticados com
motivação política não foram contempladas. Por sua vez, os crimes
praticados pelos agentes estatais ligados à repressão permaneceram (e
permanecem) impunes.
Ao ser negociada "pelo alto", o modo como a transição política
brasileira foi promovida pelas Forças Armadas se refletiria, portanto,
ainda hoje nas relações entre civis e militares. Prova disso seria a
lei 9.140 – conhecida como "lei dos desaparecidos" –
promulgada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995. Ela
reconhece a responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos
políticos ocorridos durante a ditadura militar mas, ao mesmo tempo,
mantém uma relação de continuidade com a Lei de Anistia de 1979: a
ausência de investigações e de punições de militares e médicos
envolvidos com torturas, desaparecimentos e assassinatos. Essas
violações aos direitos humanos estariam, assim, sendo negligenciadas
devido a uma política de reparação que focaliza apenas a indenização
pecuniária das vítimas e familiares dos mortos e desaparecidos ou que
permite, apenas, "penalizações simbólicas" como a que, de forma inédita
no país, vem sendo buscada contra o coronel Ustra que comandou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), – gabinete de repressão da ditadura miltar.
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