É
reconhecido o potencial das plantas da biodiversidade brasileira para fins alimentícios,
extração de fibras têxteis e uso medicinal. Além de receber cada vez mais
atenção de pesquisadores e indústria, o uso popular está recobrando força. A
questão é que, desde sempre, as plantas medicinais utilizadas são, quase que
totalmente, obtidas do ambiente natural, de variedades selvagens. Esse cenário
motiva o desenvolvimento de uma ampla gama de pesquisas objetivando a chamada domesticação
dessas plantas. No entanto, as pesquisas sofrem obstáculos, principalmente os decorrentes
da legislação brasileira.
Todo
o mercado de plantas medicinais – as utilizadas na pesquisa científica, as que
são fontes de extratos incorporados a produtos industriais ou farmacêuticos e
as vendidas ao público no mercado popular – é abastecido via extrativismo,
informa Ílio Montanari Júnior, pesquisador da Divisão de Agrotecnologia do
Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da
Universidade Estadual de Campinas (CPQBA/Unicamp).
Isso
gera dois problemas: o primeiro é a pressão sobre os recursos naturais, que faz
com que muitas das espécies medicinais mais importantes já estejam relacionadas
em listas vermelhas, ameaçadas de extinção. O segundo diz respeito à cadeia
produtiva, ou seja, a oferta incerta e a baixa confiabilidade do material
obtido a partir das variedades selvagens. Além de não ser possível garantir a
constância no fornecimento, as plantas obtidas do ambiente natural apresentam
alta variação em termos de composição química – característica primordial
quando se tratam de espécies medicinais.
Desse
modo, o cultivo agrícola resolve o problema ambiental da sobrecoleta e
padroniza a cadeia de produção, propiciando o fornecimento de matéria-prima de
qualidade conhecida (principalmente quanto à composição química), em quantidade
suficiente e de maneira constante.
No
CPQBA, a equipe de Montanari se empenha em obter as variedades mais promissoras
em termos de produção dos compostos de interesse e de adaptação à prática
agrícola. Basicamente, o processo se dá através do melhoramento genético
clássico, no campo. Nesse método, são escolhidos para o cruzamento “pais” que
contemplem as características de interesse científico e/ou comercial desejadas
(tamanho da planta, rendimento de óleo essencial, teor de princípio ativo etc.)
e também boas características agrícolas, como resistência a pragas,
produtividade e capacidade de rebrota, por exemplo. A partir daí se avalia a
progênie (filhos) de primeira geração e se escolhem novos pais, realizando-se
novo cruzamento e obtendo-se uma nova progênie (2ª geração) que vai ser
analisada e selecionada, e assim sucessivamente. O objetivo é chegar às
características que se deseja, obtendo-se novas cultivares, ou seja, variedades
cultiváveis. “Essas já não são mais selvagens; é uma população transformada e já
pode ser dada ao agricultor”, explica o pesquisador.
Da
seleção inicial das espécies até a disponibilização da semente da nova
cultivar, são necessários, no mínimo, dez anos, diz Montanari. O melhoramento
clássico em campo, apesar de requerer mais tempo, é indispensável, pois
metodologias modernas – como sequenciamento genético – não são suficientes.
Primeira
etapa para pesquisas em várias áreas
As
primeiras duas cultivares de plantas medicinais do Brasil foram concebidas no
CPQBA. As espécies domesticadas são a carqueja (Baccharis trimera), com alegações
de anti-inflamatória, vermífuga e antiparasitária, e a macela (Achyrocline
satureioides), com potencial efeito calmante e antialérgico, além de
aplicação industrial como enchimento de travesseiros. Ambas figuram em listas
vermelhas de espécies ameaçadas em seu ambiente natural.
As
cultivares foram registradas junto ao Ministério da Agricultura e são
protegidas pela Lei de Proteção de Cultivares, análoga à Lei de Propriedade
Industrial. Montanari afirma que a variedade já está licenciada, uma vez que
uma empresa já se interessou em produzi-la em escala comercial. “Estamos
produzindo as sementes”, informa.
Além
dessas espécies, há no centro de pesquisa projetos de domesticação em andamento
com diversas outras, dentre as quais fáfia (gênero Pfaffia),
erva-baleeira (Cordia verbenacea), guaco (Mikania glomerata),
espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) – todas de interesse terapêutico
– e estévia (Stevia rebaudiana), de interesse para a indústria
alimentícia como edulcorante.
Dado
o caráter pluridisciplinar do CPQBA, a domesticação dessas plantas é a primeira
etapa na realização de muitas pesquisas conjuntas com outras divisões do
centro. A partir do cultivo das variedades é possibilitada a extração em maior
escala de seus óleos essenciais e extratos e, por conseguinte, o isolamento de
seus princípios ativos. Essas substâncias dão margem a uma ampla gama de
pesquisas, através das quais se visualizam aplicações em áreas como saúde
humana e animal, alimentos e proteção agrícola.
Um
percurso sinuoso
Apesar
dos progressos conseguidos pelos pesquisadores envolvidos com a domesticação
das plantas medicinais e da importância desse tipo de pesquisa, a chamada
bioprospecção (exploração científica da biodiversidade com intuito de encontrar
novos compostos de interesse) no Brasil se vê enredada num sem-fim de
controvérsias.
“É
muito difícil trabalhar com plantas medicinais por causa das leis brasileiras”,
diz Montanari. O problema começou com a criação do Conselho Nacional do
Patrimônio Genético (CGen), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente
(MMA), e a publicação da medida provisória 2186-16 de 2001, que tratava do uso
da biodiversidade. Com o legítimo intuito de regulamentar o uso do patrimônio
genético e combater a biopirataria, tais medidas acabaram por tornar-se
excessivamente restritivas. Foram imensamente prejudicados os cientistas que,
há décadas, realizavam pesquisas com plantas nativas brasileiras – até mesmo as
amplamente difundidas, a exemplo da mandioca, do caju ou do abacaxi. “Cerca de
40 mil pesquisadores foram colocados na ilegalidade do dia para a noite”,
lamenta o pesquisador.
Somente
em 2011 foi lançada uma nova portaria a fim de legalizar a situação desses
pesquisadores. Mas a portaria não resolveu o problema. Por causa de
divergências entre a legislação imposta pelo CGen e as políticas de proteção
ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
(Ibama), alguns dos que trabalhavam com as espécies nativas, em especial as
medicinais, viram-se metidos em imbróglios jurídicos ou mesmo sujeitos a pesadas
multas quando tentaram registrar a propriedade intelectual de suas novas
cultivares, como foi o caso de Montanari. O mais recente capítulo dessa
intricada novela foi o lançamento, no ano passado, da lei 13123, ou Nova Lei de
Biodiversidade. Segundo as novas diretrizes, o processo será facilitado
mediante o cadastramento dos pesquisadores, que obterão autorização para o uso
de recursos da biodiversidade. “O problema é que o formulário de cadastro ainda
não existe!”, diz Montanari. O que é confirmado pelo próprio site do MMA, onde
se lê que o funcionamento do cadastro depende de regulamentação, e é solicitado
que se aguarde a publicação da normatização da referida lei. Diante disso,
muitos pesquisadores se veem confrontados com o dilema de continuar ou não suas
pesquisas – algumas já bem avançadas – com recursos genéticos nativos.
O
pesquisador da Unicamp teme que o Brasil esteja deixando passar grandes
oportunidades em decorrência da burocracia e de processos complicados. “O
Brasil poderia colocar no mundo muitos produtos baseados em nossa
biodiversidade. Estamos perdendo o bonde.”
Domesticação de
plantas selvagens
Existe
uma ideia popular de que, já que uma planta nasce sozinha na mata, ela
simplesmente vai nascer quando a plantarmos, e irá crescer do jeito e no tempo
que quisermos. No entanto, as plantas selvagens, que são aquelas encontradas na
natureza, possuem características diferentes entre si e que, frequentemente,
são antagônicas ao processo de produção agrícola.
A
agricultura exige uma germinação uniforme, com todas as plantas brotando
praticamente ao mesmo tempo e crescendo a uma taxa comum, o que permite uma
população de plantas com características homogêneas. No entanto, no ambiente
natural não é assim que ocorre, pois ainda que dentro da mesma espécie, cada
variedade da planta (são muitas as variedades) tem seu ritmo próprio de
crescimento, características de germinação e requisição nutricional, o que é
uma estratégia evolutiva da espécie para adaptar-se frente às alterações do
ambiente.
“Se
todas as plantas germinarem e começarem a crescer ao mesmo tempo, um evento
extremo, como uma queimada, pode eliminar toda a população”, diz Ílio Montanari
Júnior. Por isso, existem processos fisiológicos, como a dormência das
sementes, que possibilitam que as plantas germinem a tempos diferentes.
Outros
aspectos como tamanho, forma e produtividade acabam apresentando enorme
variação dentro de uma população selvagem.
Assim
sendo, a pesquisa em domesticação de plantas visa identificar variedades
selvagens que apresentam características de interesse e adaptá-las às condições
de agricultura, promovendo populações com características as mais uniformes
possíveis.
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