No dia 1º de
novembro de 1994, a organização inglesa Vegan Society completava 50 anos. A
data foi escolhida como o Dia Mundial Vegano e é comemorada hoje em várias
partes do mundo. Foi nesse ano que Donald Watson, fundador da organização,
criou o termo vegan, com o objetivo de significar muito mais que vegetarianismo
– uma opção alimentar -, mas uma nova atitude, recusando qualquer tipo de
produto ou prática que envolvesse a exploração dos animais. Embora seja um
movimento recente, as origens do veganismo remetem a uma mudança de pensamento
muito mais ampla.
“Tivemos um longo
período, dentro do ambiente acadêmico e científico, em que se negou a
existência de sentimentos dos animais. Essa negação começa principalmente com
Descartes, que dizia que os animais não sentiam”, pontua Carla Molento,
coordenadora do Laboratório de Bem-Estar Animal da Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Segundo a médica veterinária, é a partir das evidências de
sentimentos e capacidades dos animais que se começa a questionar a mensagem de
Descartes. “Essa nova forma de entendê-los dentro do contexto científico começa
a ganhar força a partir dos anos 1960 e 70, porque começamos a ter um
reconhecimento científico dos animais como seres sencientes, ou seja, como
seres capazes de sentir prazer, dor, sofrimento, e a partir do momento que
existe esse reconhecimento a responsabilidade ética vem imediatamente à tona”,
afirma.
É a característica
da senciência a principal defesa do veganismo contra o uso dos animais, não só
na alimentação, mas também em testes, esportes, vestuários e entretenimento,
como em touradas e circos. “O cerne da questão são os direitos
animais, não se tratando de uma iniciativa
humanitária ou piedosa. Entendemos que eles são seres sencientes, capazes de
sentir dor, medo, frio, entre outras sensações, e que por isso prezam pela sua
vida e integridade física”, defende o nutricionista vegano George Guimarães. Se
o desenvolvimento científico foi um dos fatores que impulsionaram a mudança de
pensamento em favor dos animais, hoje seu uso para a
ciência também
vem sendo questionado.
Comer animais
A adoção de novos modelos alimentares encontra
justificativas relacionadas, principalmente, a valores, saúde e ao meio
ambiente. Para a socióloga Maria Eunice Maciel, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), embora se encontre vegetarianos que o são em função de
argumentos relacionados com a saúde, “cada vez mais se consolida o discurso que
tenta colocar em questão a relação cultura (e humanidade) e a natureza”. É o
que faz o veganismo, ao propor uma nova maneira de encarar a relação entre
humanos e não humanos. “Ser vegano não é fácil no ocidente de hoje. Não é uma
tradição como em países do oriente em que estas diferenças convivem”, afirma
Maciel.
“Os hábitos alimentares são bens culturais que
podem identificar uma nação, uma região, um grupo. O que se come traduz um
sentimento de pertencimento cultural e de comunhão”, afirma a socióloga Juliana
Abonizio, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). As escolhas
alimentares, portanto, seriam reflexo de uma multiplicidade cultural e também
de uma sociedade fragmentária. No
caso do vegetarianismo, Abonizio acredita que se trata mais de uma opção
individual do que a constituição de um grupo específico. “Apesar de haver
grupos e militantes vegetarianos que fazem propaganda de sua opção alimentar,
vemos que o ato de comer distancia-se do grupo, da família, da nação, para ser
considerado uma escolha individual elaborada reflexivamente, diante das
múltiplas possibilidades de escolher o que se come”, acredita.
As restrições no consumo de carne podem ser
vistas também em outros grupos, como os religiosos, que manifestam na
alimentação sua relação com os animais. É o caso dos judeus, cujos alimentos
devem passar pelo ritual kasher, e dos muçulmanos, cujo abate é chamado de halal.
Em ambos os casos, a motivação religiosa inclui não infringir sofrimento ao
animal. Segundo informações da Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação (FAO Brasil), o mercado brasileiro
tem buscado qualificar-se para atender a esses públicos, já que exporta carne
bovina e aves para o Oriente Médio.
Abate humanitário e bem-estar animal
Segundo Roberto
Roça, médico veterinário da Universidade Estadual Paulista (Unesp), embora a
preocupação do mercado com o bem-estar animal possa ser considerada recente, a
proteção dos animais sempre foi preocupação da veterinária e zootecnia. “Na
década de 1980 eu já fazia trabalhos em frigoríficos visando eficiência de
insensibilização, que posteriormente foi chamado de abate humanitário”. Segundo
o pesquisador, “nos grandes frigoríficos há um esforço para colocar em prática
o abate humanitário, apesar ainda de ser modesto”. Em 2009, foi lançado o
Programa Nacional de Abate Humanitário (Steps), uma parceria do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e da Sociedade Mundial de Bem-Estar
Animal, que visa ao treinamento de inspetores para garantir condições de bem-estar
animal. “Tanto o produtor, quanto o consumidor começaram a se preocupar com essa
questão”, constata Roça.
No Brasil, já
existem algumas iniciativas para certificação de produtos, como a Ecocert
Brasil, que concede o selo Certified Humane Brasil. “Em outros países já
existem esses selos e a tendência é que no Brasil isso também se desenvolva”,
afirma Carla Morlento, da UFPR. O Brasil é um dos maiores responsáveis pela
produção e criação de animais de consumo no mundo. Em 2000, o MAPA, estabeleceu
uma Instrução Normativa, com
o objetivo de estabelecer o “Regulamento técnico de métodos de insensibilização
para o abate humanitário de animais de açougue”. Para Morlento, da UFPR, há no
documento uma clara intenção de proteção dos animais do sofrimento, no entanto,
o abate humanitário levanta duas questões principais: a primeira, se é possível
causar a morte de outro indivíduo sem causar sofrimento; a segunda, se temos o
direito de matar outro animal ou não. “São dois questionamentos importantes que
não se anulam. Não é porque a gente tem uma sociedade que aceita o abate animal
para consumo que não importa como esse animal seja abatido”, conclui Morlento.
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