No campo das ideias, a palavra “controvérsia”, de origem latina, significa discussão argumentada, contestação polêmica ou disputa entre opiniões e perspectivas discordantes ou divergentes a respeito de situações, fenômenos ou estados de coisas. Implica intenções e ações voltadas para a argumentação, o debate, a reflexão, a polêmica. Embora não raras vezes estimule ou provoque posições apaixonadas e excludentes entre si, a controvérsia não implica necessariamente litígio, objeção, desentendimento. De todo modo, não foi sem razão que o linguista norte-americano George Lakoff, importante estudioso da metáfora, consagrou o exemplo “Discussão é guerra” para ilustrar a presença da figuratividade e da argumentatividade em nossa vida mental.
A maneira como enfrentam temas potencialmente controvertidos, de fato, pode dizer muito sobre pessoas e sociedades inteiras. No contexto das inúmeras controvérsias – científicas ou não – que o nosso tempo conheceu e conhece (em torno, por exemplo, de questões filosóficas, políticas ou religiosas), dificilmente a neutralidade ou o relativismo estimulam as melhores respostas, aquelas que não confundem ciência com juízo de valor.
Há quem considere que o século XX é por excelência o século da controvérsia, estimulado que foi pela ruptura, descontinuidade, expansão, competição ou mudança de paradigmas ou modelos teóricos (as chamadas “revoluções” científicas), provocadas, entre outras coisas, pelo avanço da (bio)tecnologia e pela crescente sofisticação analítica de instituições sociais (como a antropologia, a sociologia ou a psicologia) tradicionalmente dedicadas a explicar comportamentos humanos.
Entre os desafios da agenda científica do século XXI, tempos de extraordinárias e urgentes descobertas e demandas, figuram temas que ainda exigem maiores contornos explicativos, como aqueles que são caros aos linguistas, estudiosos da linguagem e dos processos afeitos a ela. Referimo-nos a questões como a gênese da linguagem, a relação da linguagem com a constituição e o desenvolvimento de nossa vida mental, os modos de se conceber o processo de aquisição linguística pela criança. Quanto a este último ponto, pergunta-se ainda, à hora atual, se a linguagem deriva de uma programação biológica específica ou é modulada pela cognição social, intersubjetiva, perspectivada e compartilhada pelos indivíduos imersos em múltiplas rotinas e atividades significativas de vida em sociedade.
Em termos mais simples e diretos, a pergunta que protagoniza a controvérsia que opõe inatistas e interacionistas é se a linguagem é inata (tese principal do inatismo) ou adquirida (tese principal do interacionismo); se ela é uma faculdade mental ou, antes, uma prática social, derivada ou construída pelas nossas experiências psicossociais das quais a linguagem é, certamente, a mais radical.
Considerando que hoje sabemos muitas coisas acerca das relações entre linguagem, cérebro e cognição, mas não tudo, resta à ciência o desafio de interpretá-las. Frente a questões complexas, resta à ciência da linguagem, a linguística, pensar de maneira complexa.
Longe de tomar o inatismo e o interacionismo como blocos monolíticos, os estudiosos do campo têm se dado ao trabalho de verificar semelhanças e diferenças mesmo onde se procura proclamar rupturas radicais. Dicotomias clássicas têm alimentado a controvérsia entre as duas doutrinas, mobilizando posicionamentos teóricos que ora as tomam como excludentes entre si, ora como complementares ou de algum modo relacionadas: inato x adquirido, genético x ambiente, biológico x cultural, arbitrário x motivado, mente x corpo, percepção x ação, etc.
De acordo com a hipótese inatista, que marca os estudos linguísticos desde meados do século XX, uma programação mental inata específica para a linguagem e processos perceptivos a ela subjacentes explicaria a aquisição linguística da criança; a linguagem seria, pois, um módulo específico predeterminado em termos biológicos. Entre outras coisas, isso explicaria o desenvolvimento autônomo da linguagem em relação a outros processos cognitivos.
As palavras-chave do inatismo são competência, autonomia, percepção, estrutura, padrão, categorização, arbitrariedade, esquema mental.
Já a hipótese interacionista, chamada também de sócio-interacionista ou sócio-construtivista (ou, ainda, sociocognitiva) caracteriza uma vertente epistemológica segundo a qual esquemas interacionais introduziriam a criança na linguagem e esta atuaria de forma decisiva no desenvolvimento cognitivo mais amplo.
As palavras-chave do interacionismo são prática, uso, contexto, ação, intersubjetividade, perspectiva, motivação, esquema interacional.
Não havendo consenso nas explicações a respeito de como a linguagem se tornou uma característica humana ou sobre os processos envolvidos em sua aquisição e desenvolvimento, a metodologia de estudo se mostra também distinta nas duas abordagens, que se devotam, contudo, a um mesmo empreendimento científico: compreender como a criança lida com o sistema linguístico e processos afeitos à sua estrutura e ao seu funcionamento. Quanto a esse aspecto, o inatismo procura focalizar processos aquisicionais em termos de padrões estruturais de desenvolvimento; já o interacionismo, focaliza a emergência da linguagem em contexto de uso e práticas sociais.
Mais recentemente, autores filiados a essas duas persuasões não deixam de apontar limitações das posições tomadas como dicotômicas.
Vejamos, em linhas bem gerais, os termos da controvérsia que coloca em relação posições tomadas como francamente antagônicas: o inatismo e o interacionismo.
A hipótese segundo a qual a linguagem decorreria de uma capacidade mental inata determinada biologicamente tem sido defendida pelo inatismo, ao qual se associam estudiosos como o linguista norte-americano Noam Chomsky e o psicólogo experimental e linguista canadense Steven Pinker.
A hipótese de que a linguagem decorreria do caráter interacional, experiencial e social de nossa cognição mais geral tem sido defendida pelo interacionismo, corrente associada a nomes de estudiosos como o psicólogo bielorusso Lev. S. Vygotsky e o psicólogo e linguista norte-americano Michael Tomasello.
Chomsky é o autor emblemático associado à abordagem inatista. A tese segundo a qual a linguagem é uma faculdade inata (instintiva, natural, psicológica) já aparece em seu livro Syntatic Structures, de 1957, e se mantém até os dias atuais, ainda que o modelo teórico chomskiano tenha sofrido modificações ao longo dos anos. A tese de que a criança é geneticamente dotada de um programa mental – a Gramática Universal (GU) – que a torna capaz de compreender e produzir sentenças da língua, gerando um número infinito de sentenças a partir de um repertório finito de palavras, é um dos elementos-chave do inatismo. O caráter universal dessa faculdade transforma a aquisição linguística numa questão biológica decisiva. É o que assinala Lyons (1970), ao falar sobre a teoria chomskiana: “só poderemos encontrar algum sentido no processo de aprendizado de língua se admitirmos que a criança nasce com conhecimento dos princípios altamente restritivos da gramática universal e com a predisposição de fazer uso desses princípios para análise das elocuções que ouve em torno de si. (...) E é o conhecimento inato que a criança tem dos princípios universais que regem a estrutura da linguagem humana que lhe permite suprir a deficiência da versão empirista acerca da forma de aquisição da linguagem.”
O problema que permanece sem resposta é: como o indivíduo é capaz de fazer isso? Segundo Chomsky (1972), nossa herança genética permitiria a maturação de órgãos mentais particulares, sendo a faculdade da linguagem um deles, o que explicaria, entre outras coisas, o fato de duas pessoas de uma mesma comunidade linguística serem capazes de conversar sobre um assunto inteiramente novo para elas, ainda que tenham tido experiências muitos distintas e ainda que as frases que pronunciam e compreendem não suportem nenhuma analogia direta com o que quer que seja que já tenham ouvido.
Se o ambiente ou o contexto sócio-interacional nos quais se dá a aquisição da linguagem não pode ser desprezado, sua importância é, na abordagem gerativa, limitada e secundária. Nisso, a propósito, reside o teor das críticas dirigidas ao inatismo, que procura, contudo, se valer de elementos empíricos para sustentar suas hipóteses, como a rapidez com que se dão as primeiras aquisições linguísticas pelas crianças, a emergência de estruturas (pré) formadas e a semelhança “universal” exibidas por línguas variadas e distintas.
As críticas dirigidas ao interacionismo por aqueles afinados com a abordagem inatista residem, entre outros aspectos, na formalização tida como ainda incipiente do modelo teórico, bem como no caráter subjetivo e pouco econômico das análises dos processos envolvidos na aquisição da linguagem.
Por seu turno, além de questionarem o caráter idealizado e abstrato da abordagem inatista chomskiana, estudiosos filiados ao interacionismo assinalam a pouca clareza em relação ao que é por ela considerado inato na aquisição (as estruturas cerebrais, as cognitivas, as gramaticais?). Além disso, ao salientarem as limitações da distinção estabelecida por Chomsky entre competência (conhecimento da língua) e desempenho (uso da língua), ressalvam que, sendo competência um conceito normativo (e não uma faculdade mental isolada, inconsciente e infensa a circunstâncias interacionais e socioculturais de uso da linguagem), nada que é tido como inato poderia ser chamado propriamente de competência, a não ser de uma forma bastante particular.
Autores associados ao interacionismo colocam-se como alternativa ao programa chomskiano, que também sofre ataque do conexionismo e das abordagens funcionalistas no campo dos estudos linguísticos. Tomasello (1999/2003), por exemplo, afirma que as crianças se baseiam em habilidades aprendidas culturalmente (“sociocognitivamente”) no processo de aquisição de linguagem. Entre essas habilidades, segundo o autor, se encontram o engajamento em ações compartilhadas, a atenção conjunta e coordenada, o reconhecimento do outro como um coespecífico, isto é, também dotado de vida mental intencional, inferencial, perspectivada.
Segundo Tomasello (1999/2003), entender o outro como agente intencional igual a si mesmo possibilita um tipo de conceptualização por meio da qual os indivíduos atuam frente à realidade, cooperam entre si, criam artefatos e práticas culturais.
Se há algo nessa abordagem que pode ser considerado legado genético é precisamente o caráter da cognição humana – social – conquistado às custas de uma filogênese que não se resume à mera adaptação biológica, mas se constitui nos processos simbólicos motivados pela vida em sociedade.
A cognição social é, pois, na abordagem interacionista, o que poderia ser considerado propriamente um patrimônio ou uma capacidade universal do homem, e não estruturas linguísticas tomadas como um domínio mental ou neurobiológico altamente específico e pré-programado, fortemente estruturado em termos de regras, parâmetros e hierarquias internas ao sistema linguístico (que apenas se deixariam ver nas situações de uso, não sendo nelas ou por elas construídas).
Inspirado em postulados interacionistas vygotskianos, Tomasello postula, em suma, que a linguagem decorreria não da ativação de um dispositivo mental isolado e apriorístico, mas sim da forma interacional e sociocognitiva com que nossas capacidades mentais são forjadas, tanto em termos filogenéticos, quanto em termos ontogenéticos. Mediadora por excelência da relação do homem com a realidade, a linguagem, nessa abordagem, atuaria de forma decisiva na constituição da cognição humana (Vygotsky, 1934/2005).
Ao que parece, a controvérsia entre inatismo e interacionismo em geral identifica o primeiro com a expressão de um certo racionalismo (o racionalismo de tipo inatista) e o segundo com a expressão de certo empirismo (o comportamentalismo vulgar, radicalmente experiencialista). Porém, a coisa é um pouco mais complicada, como vimos. Ao propugnarem um caráter criativo à língua e aos falantes, não deixam de ser ambas as abordagens filiadas a um paradigma racionalista.
Lembremos, ainda, que ambas se constituem como alternativas ao comportamentalismo vigente na primeira metade do século XX, e de certo modo expandem, cada uma a seu modo, a epistemologia genética de Piaget dos anos 1970. O interesse do inatismo pelo construto piagetiano se deu sobretudo em função da formalização do processo aquisicional, baseado em padrões estruturais da língua, concebida como um sistema lógico-perceptivo. Por outro lado, o construto piagetiano interessou também ao interacionismo em função de seus arrazoados construtivistas, importantes para a observação das ações da criança com o ambiente, outros indivíduos e a própria linguagem, bem como das implicações na categorização e na estruturação do conhecimento (Correa, 1999).
Ainda que encontremos atualmente explicações de base sociocognitiva que procuram superar os becos sem saída dos vários dualismos que têm marcado a trajetória das ciências que se firmaram enquanto tais ao final do século XIX, é preciso admitir que inatismo e interacionismo, por várias razões que devem ser reputadas à filosofia da ciência e à história das ideias, mantêm postos de observação distintos sobre linguagem, mente, cérebro. Entre as premissas que caracterizam as duas doutrinas, lembremos que para a primeira a linguagem é uma faculdade mental; para a segunda, ela é uma instituição social. Essas perspectivas não são facilmente conciliáveis, apesar dos atuais esforços observados no campo do programa sociocognitivo (Salomão, 1999), em torno da tese de uma “mente não descarnada de seus usuários” e suas implicações experencialistas e neurobiológicas (entre as quais podem ser destacadas a teoria neural da linguagem, de Jerome Feldman, bem como a “descoberta” dos neurônios-espelho).
A controvérsia entre inatismo e interacionismo em linguística está associada, ao que parece, às versões mais “duras” e contundentes de cada uma dessas abordagens, que identificariam distintos vetores da nossa capacidade de adquirir e desenvolver linguagem, o biológico e a experiência sociocultural, respectivamente. Porém, se o papel epistemológico reservado ao biológico e à interação na constituição da linguagem e de outros processos cognitivos humanos não é suficiente (dado que hoje em dia ninguém recusa seriamente a presença constitutiva de processos neurobiológicos e sócio-interacionais na aquisição linguística e na aquisição de conhecimentos não verbais) para estabelecer uma dicotomia entre ambas as abordagens, restaria aventar os termos em que podemos relacionar aspectos de suas armaduras teóricas.
Ainda que as persuasões em foco defendam teses bastante distintas – por um lado, a modularidade dos processos linguísticos, a autonomia da sintaxe, o alto grau de determinação das formas linguísticas, a capacidade inata para a aquisição da linguagem; por outro lado, a interpendência dos processos cognitivos verbais e não verbais, a modulação interacional e sociocultural de nossas capacidades linguísticas e cognitivas, a estruturação da linguagem baseada no uso, a concepção de competência como prática – não deixam de compartilhar algumas questões.
Ambas estariam de acordo, por exemplo, quanto à criatividade da língua e à competência dos falantes relativamente à linguagem, ou quanto ao fato de ser a linguagem um patrimônio da espécie humana. Contudo, se para o inatismo essa competência é inata (no sentido de que não a “aprendemos”; somos inconscientes dela e dela não podemos escapar, salvo em condições adversas, como as patologias, por exemplo), para o interacionismo ela é uma prática e deriva das experiências psicossociais, dos regimes simbólicos e culturais de vida em sociedade.
Além disso, as duas abordagens se inscrevem num programa racionalista. Seria, pois, um equívoco contrapor inatismo e interacionismo com base na dicotomia racionalismo x empirismo.
No contexto de crítica a um subjetivismo do tipo kantiano e a um racionalismo do tipo reducionista (organicista, mais precisamente), discute-se em vários campos da ciência a dicotomia entre racionalismo e empirismo. Uma distinção entre inatismo e interacionismo no campo dos estudos da linguagem, nos tempos atuais, dificilmente poderia ser feita de forma sumária, de modo a fazer pensar, por exemplo, que o racionalismo não acredita em história e o empirismo não acredita em sistemas (Auroux, 1998).
A nosso ver, entre as questões que ainda devem ser respondidas pelas abordagens inatistas e interacionistas, a fim de que possam dar respostas consistentes ao fenômeno da linguagem, está a explicitação de fatores internos e externos que permitem sua aquisição e desenvolvimento.
Ao que parece, as respostas para a questão da gênese da linguagem derivam hoje de uma ponte conceitual entre processos externos e internos ao organismo. Procurando superar os becos sem saída dos dualismos e dicotomias que marcaram a trajetória das ciências que se firmaram enquanto tais ao final do século XIX, a perspectiva chamada sociocognitiva (Tomasello, 1999/2003; Salomão, 1999; Koch e Cunha-Lima, 2004), de base interacionista, tem se colocado como uma alternativa que procura conciliar fatores biológicos e culturais na constituição da linguagem e da cognição.
Tomadas de forma irredutível, as posições inatistas e interacionistas a respeito da linguagem têm revelado que há questões que estão longe de ser admitidas de forma unânime. Se, por um lado, as duas abordagens não podem ser consideradas uma mesma coisa, a dicotomia entre elas, por outro, parece ser tão clara como água suja, como dizia Guimarães Rosa.
Edwiges Maria Morato é professora do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e coordenadora do Laboratório de Fonética e Psicolinguística na mesma instituição.
Referências bibliográficas
Auroux, S. La raison, le langage et les normes . Paris: PUF. 1998 Chomsky, N. Aspects of a theory of syntax. Cambridge, MIT Press, 1965.
_____________. Language and mind. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1972. Correa, L.M. S. “Aquisição da linguagem: uma retrospectiva dos últimos trinta anos”. DELTA , São Paulo, v. 15, n. spe, 1999 . Feldman, J. From Molecule toMetaphor . Cambridge, MA: The MIT Press, 2006 Koch, I. G. V. e Cunha-Lima, M.L. “Do Cognitivismo ao Sociocognitivismo”, in: Mussalim, F. e Bentes, A. C. (Orgs.). Introdução à Linguística: Fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez. pp. 251-300, 2004 Lakoff, G.; Johnson, M. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Educ/Mercado de Letras, 2002. Lyon, J. (1970). As idéias de Chomsky. São Paulo: Cultrix. Morato, E.M. “O Interacionismo no campo linguístico”, in: Mussalim, F. e Bentes, A.C. (Orgs.). Introdução à Linguística – fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez. pp. 311-351, 2004 Pinker, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Rosa, J. G. Tutaméia - terceiras estórias. RJ: Nova Fronteira, 1985. Salomão , M.M. “A questão da construção do sentido e a revisão da agenda dos estudos da linguagem”. Veredas , vol. 4, pp. 61-79, 1999. Tomasello, M. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (original: 1999). Vygotsky, Lev. S. Pensamento e Linguagem. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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