Uma relação tensa que nunca vai se romper. Assim pode ser definido o "casamento" entre imprensa e política, nas palavras do jornalista e professor
da Universidade de São Paulo (USP) Eugênio Bucci. Também com poucos caracteres,
o jornalista Alberto Dines, coordenador do Observatório da Imprensa (on-line e
pela TV) e pesquisador sênior do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo
(Labjor) da Unicamp, escreve seu lead
sobre este mesmo relacionamento nos últimos dois séculos no Brasil: “A história
política do Brasil se confunde com a história militar e ambas atropelam a
história da imprensa.” Para Dines, este entrelaçamento da história política,
militar e da imprensa brasileira “talvez” tenha sido interrompido somente a
partir da década de 1980 com a redemocratização.
Entre 1889 a 1964, período entre a Proclamação da República e o Golpe de
64, ocorreram no Brasil 12 motins, sobre os quais a imprensa sempre se
posicionou. Mas sua participação na década de 1960 foi além do posicionamento:
pela primeira vez ela conspirou. Na série de quatro vídeos-documentários
produzidos em 2014 pelo Observatório da Imprensa, Chumbo quente - 50 anos do golpe de 64, Dines apresenta, com
documentos e entrevistas, os fatos de um período ainda pouco revelado da
história do Brasil. Entre as suas fontes, estão pesquisadores e colegas
jornalistas que viveram com ele a realidade da ditadura militar.
“Diferente de golpes anteriores, o de 64 ocorreu em plena era da
informação – ou da desinformação. Foi um golpe preparado e apoiado
majoritariamente pela imprensa, logo depois transformada em sua vítima e dócil
escrava”, narra Alberto Dines, autor de mais de 15 livros e responsável pela
direção e lançamento de importantes revistas e jornais no Brasil e em Portugal
entre as décadas de 60 e 90; foi também professor visitante da Escola de
Jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA).
Sem debate e profundidade
Entrevistado pela ComCiência
por telefone, Dines responde paciente e didaticamente sobre o paralelo entre a
imprensa de 64 e a de hoje no Brasil, mas deixa bem claro já no início: “Você
cria uma semelhança aparente, mas as circunstâncias são diferentes, porque
naquele período havia a Guerra Fria, a renúncia de Jânio (Quadros) e a esquerda
estava ainda se descobrindo. No cenário de hoje, nós saímos de uma eleição com
vitória estreita, que nem foi comemorada”. Para o jornalista, em 64 “a imprensa
esqueceu seu papel de moderadora”, enquanto agora ele entende que a imprensa
tem tido uma atitude solerte. E critica: “Está faltando espaço para o debate e
a reflexão”. Ele aponta como um dos motivos para essa falta de espaço o fato de
a imprensa ter virado mídia, uma indústria de entretenimento.
“Essa indústria, com novelas, séries, realities shows, mostra um processo cultural de forma muito
simplificada, que emburrece as classes média e média-alta, que hoje leem Veja e O Globo e acham satisfatório. Acho preocupante não ter uma elite
pensante. A mídia emburreceu a sociedade brasileira. E as mídias sociais, que
só crescem, não se aprofundam. A veemência não é proporcional à profundidade.
Isso não é debate”, diz o jornalista.
Um único discurso
A falta de debate também está no posicionamento em bloco dos principais
veículos de comunicação do Brasil, segundo o jornalista. “Entre os jornais de
maior ressonância, nós temos hoje Folha
de S. Paulo e O Globo, que são
sócios no jornal Valor. Isso cria uma
situação constrangedora do ponto de vista político-institucional. Quando temos
jornais com diferentes posições, há uma despolarização. Na imprensa hoje parece
que há um Tratado de Tordesilhas. Eles se bicam, mas não se mordem, não divergem.
Isso é uma situação terrível para a sociedade, para a imprensa e para a
política brasileira, porque na verdade temos um grupo só, que diz a mesma
coisa, e ajuda a orientar a insatisfação”, declara Alberto Dines.
Dines, no entanto, não acredita que a imprensa é a única força uníssona
a orientar ou a empurrar as pessoas para as ruas por fatores artificiais.
“Outro dado importante é o papel político das religiões, que mexem com as
massas não muito esclarecidas”. Para Dines, a cobertura da imprensa para as recentes
manifestações de rua, como a que aconteceu no dia 15 de março deste ano em todo
o Brasil, foi bem feita, com divergência apenas com relação a números de
participantes. “Houve uma manifestação contra o governo, não há a menor dúvida,
e o governo tem sido elogiado por aceitar essas críticas. Mas não acho que a
mídia contribuiu para isso. Eu acho que ela tem sido solerte”, avalia.
Equívoco da imprensa
Na série Chumbo quente – 50 anos
do golpe de 64, Dines lembra da atitude recente do jornal O Globo, em 2014, de fazer uma
autocrítica do seu posicionamento político na década de 60. “Quando no ano
passado o jornal O Globo surpreendeu
ao reconhecer como equivocado o apoio ao golpe de 1964, admitia que grande
parte da imprensa brasileira, além de apoiar a derrubada do presidente João
Goulart, apoiou a ditadura nela incubada. Gesto ímpar, infelizmente sem
seguidores, que, no entanto, poderá inaugurar o capítulo da diversidade na
história da nossa imprensa. A unanimidade além de burra foi a causadora dessa
tragédia”, narra Dines no documentário, demonstrando sua preocupação com a
falta de debate e de posicionamentos políticos diferentes na imprensa atual.
“Onde a imprensa errou? Errou ao adotar o uníssono, errou ao se submeter
a um cronograma militar sem deixar abertura para recuos, ajustes e
negociações”, narra Dines no vídeo. “A imprensa não se preparou para a
democratização. Era a pressa, a preocupação de ocupar os vazios do poder e os
interesses corporativos das empresas. Ela entrou e saiu do golpe sem pensar.”
Contaminada pelo medo
O historiador Carlos Fico, professor da universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), registrou em seu depoimento em Chumbo quente a sua reflexão sobre a sociedade brasileira de 64 e a
semelhança que ele enxerga em relação à atual: “Um jornalista me pediu
para eu dizer em uma palavra quais seriam as razões para o golpe. Eu pensei e
disse que foi o medo. O medo que existe ainda hoje, que é a expressão do
autoritarismo. O medo de perder privilégios. Porque as reformas de (João)
Goulart, que a sociedade discutia, tinha tabelamento de aluguéis, reforma
universitária para ampliar as vagas no ensino público, medidas que não eram
comunistas nem revolucionárias, mas possibilitavam algum desafogo para os
pobres e miseráveis. Isso gera um medo tremendo no Brasil. E esse medo ainda
existe hoje”. A imprensa foi contaminada pelo medo e até os jornais
progressistas acabaram entrando no processo golpista. Havia muito medo de que
as reformas fossem implementadas e que mudassem completamente o Brasil.
No mesmo documentário, o jornalista Milton Temer, contemporâneo de
Dines, declara em sua entrevista que: “a mídia não tem só um papel de
observador e registrar a história, principalmente nos grandes
momentos, porque ela desempenha um papel fundamental sobre o senso comum, que é
a maior parte da população. São aqueles que não estão no comício, não estão na
militância, mas são aqueles que constituem a massa crítica eleitoral e a massa crítica
da base social”.
Melhores coberturas
O professor e jornalista Eugênio Bucci acredita que a expansão dos meios
de comunicação coincide com a expansão da esfera pública, o ambiente gerado
pelos debates públicos em torno dos assuntos de interesse comum. “Isso
significa que o raio de alcance dos veículos de imprensa coincide com o raio de
abrangência das comunidades que participam da vida política de uma sociedade.
Ou, em outras palavras, a população que participa de um jeito ou de outro da
interação e da interatividade proporcionada pela comunicação social é a mesma
população que participa dos rituais da democracia, das eleições, dos protestos,
das mobilizações. A base social de uma coisa e outra é exatamente a mesma”.
Autor de livros sobre ética no jornalismo, com passagens pelos
principais jornais e revistas do Brasil e prêmios nacionais e internacionais
por sua atuação como presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007, Bucci avalia a
cobertura política pela imprensa de hoje, especialmente das eleições, como a
melhor dos últimos tempos, “nunca foi tão boa”. “Basta compararmos a cobertura
da eleição atual (de 2014, na disputa eleitoral
presidencial entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves) com a cobertura
das eleições de vinte ou trinta anos atrás (de 1989, entre os candidatos à
presidência Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, a primeira
eleição direta após 29 anos no Brasil). Na Globo, por exemplo, os níveis de
equilíbrio e de equanimidade melhoraram bastante. Mas ainda temos muito a
melhorar.”
Mídias sociais
Mas Bucci também chama a atenção para o uso errado da palavra
"mídia". “É um nome genérico vindo da pronúncia em inglês da palavra
latina ‘media’, plural de ‘meio’, que se dá à indústria da comunicação vista de
um modo um tanto grosseiro e apressado. Usamos mídia como sinônimo de imprensa,
o que é de um barbarismo indescritível. A imprensa reflete mais diretamente a
reunião dos cidadãos em público. A ‘mídia’ é uma indústria, um mercado, um
aglomerado de meios e linguagens múltiplas, com modelos de negócio muito
diversificados. Mídia incluiu outdoors, games, indústria fonográfica, cinema e
sites de pornografia. Imprensa é outro universo”. E complementa: “Existe mídia
sob uma ditadura, por exemplo. Mas a imprensa na ditadura tende a ser tutelada,
asfixiada, domesticada”.
Sobre a relação entre imprensa e política, Bucci entende que a primeira
não pode existir sem a segunda. “A política tende ao poder. A imprensa critica
o poder e, nessa perspectiva, capacita os cidadãos a delegarem o poder e também
a fiscalizá-lo. Como são perspectivas divergentes, as relações entre as duas
tende a ser tensa, mas nunca se rompe”, diz o jornalista, para o qual as mídias
sociais, para o bem e para o mal, chegaram para ficar. Elas proporcionaram uma
enorme ampliação do poder que a vida social sempre teve de pautar as
coberturas. “Por meio delas, a instrumentalização da opinião pública por parte
do poder econômico também se expandiu. Deram mais vasos comunicantes.”
E o jornalista?
Dentro desse contexto, como fica o profissional jornalista? Ele é agente
de manobra ou tem conseguido cumprir seu papel jornalístico? Para Bucci, as
duas alternativas são verdadeiras. Situações difíceis até hoje são lembradas
por jornalistas que viveram a ditadura militar. Alberto Dines lembra quando, em
1973, foi demitido do Jornal do Brasil
por “indisciplina” dois meses depois de não obedecer a ordem de omitir na
edição do jornal o golpe que acontecera no Chile e o suicídio do presidente
Salvador Allende. Na mesma década, o jornalista Cláudio Abramo também foi
demitido da Folha de S. Paulo após
criar uma página de opinião feita por jornalistas banidos pela censura.
Em seu artigo “A mídia e o golpe militar”, publicado em
2014 no volume 28 de Estudos Avançados,
o jornalista Audálio Dantas lembra que um único veículo não aderiu ao golpe de
64, o jornal Última Hora. Os grandes
jornais do eixo Rio-São Paulo, no entanto, ampliavam a cada dia o espaço para
respaldar o movimento contra o presidente João Goulart. O Globo, O Estado de S. Paulo
e Tribuna da Imprensa participavam
ativamente da conspiração. Em 2005, quando o próprio Audálio entrevistou o
jornalista Ruy Mesquita, diretor do Grupo Estado, ouviu do seu entrevistado a
seguinte resposta sobre o apoio dos jornais ao golpe: “Não só apoiamos, como
conspiramos”, disse o empresário. Até mesmo jornais de tradição liberal, como o
Correio da Manhã, ficaram alinhados
ao processo de desestabilização do governo. Nos dias 31 de março e 1º de abril
de 64, dois editoriais ficaram famosos, com os títulos: “Basta!” e “Fora!”.
A censura
Depois do golpe, com a ditadura instaurada, o que veio a seguir foi o
período da censura. “Havia uma farsa de que a imprensa estava sendo
dominada pelos comunistas. E era o contrário. A imprensa estava dominada pela
censura”, conta Audálio Dantas. As arbitrariedades, as prisões e as práticas
militares, entre elas a tortura, não podiam ser noticiadas. O jornalista
Vladimir Herzog, morto nas instalações do DOI-CODI, no quartel-general do II
Exército em São Paulo, foi o primeiro entre as vítimas de tortura a não ser
sepultado em silêncio. A partir daí, os jornais começaram a noticiar o que
acontecia no regime militar.
O jornalista Alberto Dines acredita que nas últimas décadas houve um
processo de degradação da imprensa, que perde aos poucos a qualidade. “Mas isso
é cíclico, não é definitivo. O mesmo que acontece hoje nos jornais, está
acontecendo na literatura”, adverte. “Eu sou otimista e acho que a imprensa bem
feita terá sempre o seu lugar. Quando este ciclo se consolidar, vamos ver
alteração no quadro e vai melhorar”, conclui Dines, que no dia 7 de abril, Dia
do Jornalista, foi ao lançamento do livro
Todo aquele imenso mar de liberdade – A dura vida do jornalista Carlos Castello
Branco (Record, 437 páginas), do jornalista e escritor Carlos Marchi, que
ele recomenda e diz ser leitura obrigatória para os jovens jornalistas: “Carlos
Castello Branco*, o Castelinho, foi a demonstração de que os anos
de chumbo, apesar da censura e dos horrores da repressão, também ofereceram
maravilhosos exemplos de brilho, de lucidez, ironia e integridade. Isso traz um
pouco de luz para o jornalismo e os jovens jornalistas”.
* Jornalista
e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Natural de Teresina,
Piauí, formou-se em direito, em Minas Gerais, em 1943, mas dedicou toda a sua
vida ao jornalismo. Iniciou a carreira nos Diários Associados, passando,
posteriormente por importantes veículos, como O Jornal, Diário Carioca, revista
Cruzeiro e Jornal do Brasil. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de
1976 a 1981, enfrentando os militares, prisão e depoimentos no DOPS. Faleceu em
1993, aos 73 anos.
|