Diversos
viajantes, desde o século XVI, exploraram o Brasil e
registraram suas impressões sobre o povo brasileiro. Percorrer
o país para encontrar evidências sobre sua formação
e seu povo é algo que remonta à época dos
jesuítas, e foram os padres os primeiros a fazer
classificações de grupos indígenas no século
XVI, reconhecendo os tupis e os tapuias.
Já
no século XIX, o estudioso Carl von Martius fez novas
divisões, reconhecendo nove grupos. Mas somente na segunda
metade do século, houve um estudo mais sistemático com
o etnógrafo alemão Karl Von Den Steinem, que realizou
duas grandes viagens e fez contatos com diversos grupos.
Comuns
nesse período, muitas das análises sobre os grupos
indígenas traziam uma perspectiva evolucionista, como nessa
passagem de Steinem: “Preciso confessar que eu não sabia
muito bem se devia rir-me do indígena (...) ou se me devia
entregar ao sentimento de perplexidade que se pode resumir na
exclamação: quão diferente o mundo se espelha
nessas cabeças!”. Assim, os relatos de viajantes dos séculos
XVI ao XIX espelhavam uma determinada representação do
índio brasileiro. Segundo o antropólogo e professor da
Unesp, Edmundo Antônio Peggion, todo o processo de ocupação
do território brasileiro nesse período estava pautado
por um pensamento evolucionista. “A humanidade era concebida como
se houvesse uma única cultura em estágios diferentes de
evolução”, diz. Os índios estariam, portanto,
em um nível de evolução inferior se comparado à
“civilização européia”.
Peggion
ressalta que a teoria evolucionista contribuiu para difundir a imagem
de inferioridade associada aos grupos indígenas. “Nesse
sentido, a antropologia legitimou e reafirmou uma condição
que já estava colocada no senso comum”, diz.
De
acordo com o professor da Unesp, a imagem do índio estava
atrelada à imagem que se fazia do Brasil. “O país era
visto como um lugar exótico e por isso o índio também”,
afirma.
Já
no início do século XX, outros estrangeiros vieram
desenvolver suas pesquisas no Brasil. O alemão Theodor
Koch-Grünberg fez pesquisas com grupos que vivem próximo
ao rio Solimões e, além de classificar grupos, o
etnógrafo também estudou sua iconografia e outras
formas de produção.
O
missionário francês Tastevin, que viveu no Brasil de
1906 até 1926, deixou, por sua vez, uma vasta documentação
que serviu para muitos etnógrafos que vieram depois. Após
20 anos de experiência, Tastevin adquiriu um grande
conhecimento sobre os diversos grupos que habitam a Amazônia.
O
etnógrafo italiano Ermano de Stradelli também possui
uma trajetória interessante. Ele deixou seu país,
naturalizou-se brasileiro e viveu aqui até sua morte.
Stradelli interessou-se pelas formas de escrita de alguns grupos, que
usavam pedras para escrever, interpretou rituais religiosos e deixou
artigos em vocabulário Nheêngatu-Português. Outro
antropólogo de importância foi Nimuendajú, que
não só estudou, mas viveu junto com grupos indígenas.
O trabalho dele parte do princípio de que a construção
do conhecimento deve ser compartilhada com os índios.
Peggion
afirma que no final do século XIX, alguns antropólogos
começaram a pensar a relação com os povos
estudados de forma diferentes. “Frans Boas fez uma crítica
dura ao evolucionismo. Para ele os evolucionistas não
estudavam as diferentes formas de cultura dentro de seu próprio
contexto e por isso tinham uma visão distorcida”, diz. Além
disso, Boas desconstruiu o determinismo geográfico presente na
antropologia. De acordo com Peggion, a partir dessa crítica
muitos estudiosos passaram a se relacionar de forma diferente com os
povos estudados.
Assim,
os vários estudos historiográficos e iconográficos
sobre esses registros sinalizam neles a formação de
imagens ou de representações específicas, e
diferentes em cada período, seja do índio, do país,
e até da formação do povo brasileiro, já
que os relatos de viagens são fontes importantes, por exemplo,
para estudiosos como Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda.
Para
Peggion, os “viajantes tradicionais” coletavam os dados através
de informantes que, em geral, eram índios que já
possuíam contato com os europeus. “Desse modo muitas
informações vinham filtradas porque o informante
classificava os grupos inimigos, por exemplo, de uma forma
pejorativa”, diz. Em muitos casos, até o nome do grupo
fornecido pelo informante não era o mesmo nome de
autodenominação do grupo. Por isso, os antropólogos
começaram a fazer suas próprias pesquisas de campo e o
material produzido pelos viajantes passou a ser usado com mais
parcimônia. “No começo do século XX, Malinowski
desenvolveu seu próprio método de pesquisa e, a partir
dele, outros fizeram a mesma coisa”, diz.
Rondon
e o índio ideal
Ainda
no início do século XX, o marechal Rondon coordenou uma
expedição para implantação de redes
telegráficas no Mato Grosso e na Amazônia. Nesse
percurso, a Comissão Rondon, como ficou conhecida, fez uma
série de registros fotográficos e cinematográficos
dos grupos que encontrava. O material foi publicado em diversos
livros assinados pelo próprio marechal.
Como
Rondon estava ligado diretamente ao governo, as impressões da
comissão acabaram transformando-se na “visão oficial”
sobre o índio, mesmo que a intenção do marechal
não fosse essa. De acordo com Fernando de Tacca, fotógrafo
e antropólogo da Unicamp, no livro A imagética da comissão Rondon, a visão do índio retratada
nas fotos divide-se em 4 categorias: a primeira é composta
pela figura do bom selvagem, em que retrata o índio e
seus costumes “primitivos”. O índio é tratado de
forma genérica, como se não houvesse diferentes etnias.
A segunda categoria é o índio pacificado, que
teve contato com a civilização e já adquiriu
alguns hábitos como o uso de roupas. A terceira categoria é
a que compõe o índio integrado, ou seja, como a
comissão tinha a perspectiva da construção de
uma nação única e integrada, todos os habitantes
teriam que compartilhar esse mesmo objetivo. A última
categoria é a do índio civilizado, aquele que já
incorporou vários hábitos e a educação da
“civilização ocidental”.
Estudos
etnográficos posteriores a esse período procuram
desmistificar a imagem de índio ideal. Com o desenvolvimento
da antropologia ao longo do século XX, as muitas “escolas”
passaram a estudar os grupos indígenas de diferentes formas. O
culturalismo, por exemplo, foi importante para contextualizar e
buscar entender os grupos dentro desse universo. Já o
funcionalismo trouxe grandes contribuições para se
compreender as estruturas de cada sociedade. Assim, a idéia do
índio ideal foi pouco a pouco sendo ultrapassada na
antropologia. Peggion ressalta, no entanto, que a perspectiva
evolucionista é ainda hoje encontrada no senso comum.
A
antropologia e as viagens de pesquisa
“Eu
odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a
relatar minhas expedições”. É assim que
ironicamente Claude Lévi-Strauss começa o livro Tristes trópicos, o qual relata sua experiência no
Brasil, entre os anos de 1935 e 1938. O antropólogo
argumentava que existem tantos empecilhos durante uma viagem de
pesquisa, que o tempo que se perde com acontecimentos insignificantes
é muito grande. “Não há lugar para a aventura
na profissão de etnógrafo”. Isso não quer
dizer que Lévi-Strauss não dê importância à
pesquisa de campo, muito pelo contrário, a pesquisa é
tão importante que não pode se resumir à
aventura. É dessa forma, que as viagens de pesquisa mais
recentes desmistificam a imagem da própria viagem difundida
por viajantes de outros períodos.
De
acordo com o antropólogo do Museu Nacional, Eduardo Viveiros
de Castro, em meados do século XX a antropologia se
profissionaliza. Os viajantes ou exploradores que caracterizaram a
etnografia até então dão lugar aos antropólogos
propriamente ditos. As pesquisas de campo passam a ter uma
metodologia mais sistemática e organizada. É nesse
contexto que se enquadra Lévi-Strauss. Segundo Castro, a viagem do
francês ao Brasil foi de grande importância para a
formação do antropólogo. “A viagem teve mais
significado do ponto de vista da formação do que do
sucesso na pesquisa propriamente dita”, diz. O próprio
Levi-Strauss só se reconhece enquanto antropólogo
depois dessa experiência.
Após
deixar o Brasil, Lévi-Strauss passou um tempo nos Estados Unidos,
onde teve contato com a teoria antropológica e pode completar
sua formação. “Existem os dois momentos: o da
pesquisa em campo e o do estudo de toda a teoria sobre o assunto”,
diz Castro, que ainda define a importância do campo para a
antropologia: "Se não viaja, não é
antropólogo".
Apesar
da afirmação, o antropólogo do Museu Nacional
ressalta que ir a campo não significa fazer longas viagens
para lugares longínquos. Todo o desenvolvimento da
antropologia urbana necessita de pesquisas em lugares não tão
distantes assim. Castro ainda ressalta que atualmente as viagens são
de mão dupla. "Antes só nós íamos
para lugares distantes fazer pesquisas, agora eles também vêm
nos pesquisar", diz.
De
acordo com a antropóloga do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, Mariza Corrêa, as viagens são o modo
de se aproximar de outros grupos sociais. "É no contato
com essas pessoas, cuja visão de mundo é distinta da
nossa que se dá a construção do conhecimento
antropológico. Às vezes nem é necessário
viajar — tomar um ônibus até a periferia de São
Paulo ou do Rio de Janeiro basta", diz.
Corrêa
ainda chama a atenção para o fato de que o processo do
conhecimento tem dois momentos: o da pesquisa e o da escrita. "Como
diz Geertz, fazemos a pesquisa lá, mas escrevemos aqui e daí
é preciso levar em conta a opinião de nossos colegas,
outros antropólogos", afirma.
Transformação
provocada pelo contato
Assim
como a estada no Brasil foi importante para a formação
de Lévi-Strauss, outros antropólogos também foram
influenciados pelas experiências em viagens. Um caso muito
interessante é o do francês Pierre Verger. Ele começa
a carreira como fotógrafo e conhece diversos países
como o Japão, Estados Unidos e China. Em 1935, Verger viaja
para a África Ocidental e começa a se interessar por
antropologia, mesmo sem ter formação na área.
Publica na revista brasileira Cruzeiro uma série de
reportagens sobre descendentes de escravos brasileiros que decidiram
voltar para a África.
A
partir disso, Verger passa a freqüentar as religiões
africanas e se envolve com o candomblé não somente como
observador de fora, mas sim como alguém que está
dentro, participando dos rituais e exercendo funções. O
envolvimento é tanto que ele chega a mudar de nome, como
declara nessa carta a um amigo: "Encontrei sua carta no retorno
de Kétou, onde eu cheguei Pierre Verger e de onde voltei
Pierre Fatumbi Verger (...). Ademais rompi assim as últimas
relações com o que ainda tinha de minha família
e, se mais tarde me acontecer de mentir a um profano, terei mesmo
mais restrição mental a fazer e lhe declarar: se isto
não é verdade, que não me chame mais Pierre
Verger".
Em
1946, Verger chega ao Brasil, mais especificamente em Salvador. Seu
envolvimento com o candomblé, que já havia ultrapassado
o mero interesse intelectual, fica ainda mais evidente. Após
ser aceito na religião, Verger passa a exercer funções
dentro da religião e ganha mais um nome: passa a se chamar
Pierre Fatumbi Verger Ojuobá.
Se
para Lévi-Strauss a viagem ao Brasil teve um significado de formação
e construção de identidade enquanto antropólogo,
para Pierre Verger as viagens representaram um processo de
desconstrução de uma identidade, mostrando uma outra
faceta do contato.
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