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Artigo
Da filosofia à ciência da felicidade
Por Isaac Epstein
10/09/2014

O discurso sobre a felicidade tem sido recorrente na história da filosofia, na literatura em geral e na poesia em particular. Baseados em sua intuição, conhecimento, sabedoria e sensibilidade, filósofos, escritores e poetas procuraram interpretar, analisar ou simplesmente descrever a sensação agradável ou mesmo eufórica de sermos felizes, até a sensação desesperadora da extrema infelicidade.

Desde os gregos pré socráticos até a atualidade, poucos filósofos e poetas deixaram de abordar o tema; otimistas alguns, considerando a felicidade possível; pessimistas outros, negando essa possibilidade. A linhagem do pessimismo é longa. As grandes tragédias gregas de Esquilo, Sófocles e Eurípides escritas no século quinto a.C geralmente não tinham um final feliz. Seus personagens lidavam com conflitos insolúveis e estavam envolvidos em circunstâncias e com poderes superiores às suas forças. Nesse universo trágico “nenhum homem é feliz”, diz o Mensageiro na Médea de Eurípedes. Para Sófocles o “melhor para o homem é não ter nascido e, se nasceu, morrer o mais cedo possível”. Essa linhagem continua durante séculos, culminando, entre outros, com Hobbes, Schopenhauer e Freud e Lacan.

A felicidade foi sempre o supremo objetivo do ser humano. Mas como obtê-la? Maximizando os prazeres individuais e minimizando a dor? E se a felicidade de um ser humano for a causa da infelicidade de outro? A questão ética sempre foi um empecilho para se considerar a felicidade como um problema exclusivamente individual. Aristóteles também considerava a felicidade como o objetivo primeiro do homem, porque não é um bem que almejamos como meio de obter outro bem, mas a queremos por ela própria. Uma das características da felicidade é ser considerada desde a antiguidade como o summum bonum, isso é, o bem supremo.

Como o significado ou o conteúdo do termo “felicidade” pode diferir de pessoa para pessoa, nunca foi possível lhe dar uma definição ou um conteúdo objetivamente válidos. Se todos concordam em dar o mesmo nome ao que pensam ou sentem, e, no entanto, podem pensar ou sentir coisas diferentes, então o significado comum da palavra é apenas nominal. Filósofos e poetas sempre fizeram o possível com sua sabedoria ou arte para aprisionar o termo “felicidade” com discursos ou poemas, frases ou metáforas cheias de sensatez, originalidade ou beleza. Não obstante, sem um significado mínimo comum para o termo, torna-se difícil propor meios ou políticas sociais válidas para ajudar todos – ou a maioria – a serem mais felizes. Esse tem sido um dos maiores obstáculos para construir uma ciência da felicidade.

Alguns filósofos mais otimistas julgaram ser possível atingir a felicidade por meio de uma vida que buscasse o prazer e evitasse a dor, como na tradição de Arístipo também do século quinto a.C ou Epicuro cerca de dois séculos mais tarde. São os adeptos de hedonia em que o único bem é o prazer e o mal supremo a dor. Outros vão mais adiante, pois achavam que apenas a busca de prazeres não seria suficiente. Para Aristóteles seria necessária também a eudaimonia, isto é, a busca de auto aprimoramento das próprias potencialidades, estar a serviço de algo superior à própria pessoa. Em suma, ser protegido por um bom daimon (espécie de anjo da guarda da mitologia grega).

A partir de 1960 o discurso sobre a felicidade passou a ser predominantemente científico. Na atualidade existem dezenas de milhares de livros e artigos científicos sobre a felicidade que procuram descrever, avaliar ou divulgar as pesquisas empíricas que se fazem sobre o tema. Nas últimas cinco décadas a temática adquiriu relevância a ponto de a Assembleia Geral das Nações Unidas, de 19 de julho de 2011, passar uma resolução “convidando os países membros a medir a felicidade de suas populações e usar isto para orientar suas políticas públicas”.

Duas questões então são oportunas: 1. Que razões impulsionaram essa busca pela ciência da felicidade? 2. O que pode diferenciar a filosofia da felicidade da ciência da felicidade, ou melhor, o que diferencia o discurso filosófico da felicidade do seu discurso científico?

A primeira questão envolve uma análise complexa que não poderá ser feita aqui. Mencionaremos apenas uma motivação que encobre uma demanda política. É sabido que o progresso de um país tem sido tradicionalmente aferido pelo produto interno bruto (PIB) per capita, isto é, a soma de bens e serviços produzidos por um país em um ano, dividida pelo número de habitantes. Por intermédio dessa medida os países têm sido classificados em desenvolvidos, emergentes, não desenvolvidos etc.

O PIB é geralmente correlacionado positivamente a alguns indicadores básicos de saúde (mortalidade infantil e expectativa média de vida); progresso científico e tecnológico; sistema democrático de governo; segurança; educação e outros indicadores que sinalizam o bem-estar da população. Em países ainda não desenvolvidos o ganho material representado pelo aumento do PIB per capita e uma diminuição do índice de desigualdade econômica geralmente significam uma melhoria das condições de vida e do bem-estar das pessoas mais pobres: acesso à saúde e à educação, oportunidades de emprego, melhores condições sanitárias etc.

No entanto, acima de certo nível (cerca de US$15 mil nos países ricos), um aumento do PIB pode não significar um aumento do bem-estar da população. Uma demonstração desse fato ocorreu com a descoberta pelo economista Richard Easterlin, que, malgrado o PIB dos Estados Unidos ter aumentado 300% no período de várias décadas após 1960, a felicidade ou o bem-estar médio da população permaneceram constantes nesse período. Esse fenômeno ficou conhecido como Paradoxo de Easterlin¹.

Em suma, não obstante as pessoas mais ricas serem, em geral, mais felizes do que as mais pobres, a sociedade não fica necessariamente mais feliz quando fica mais rica. Três razões, entre outras, podem explicar o fato. A primeira é que um aumento geral de renda para todas as pessoas conserva cada uma na mesma posição relativa na “hierarquia dos salários”, o que não aumenta a felicidade. A segunda é que as pessoas se acostumam a ganhar mais, e a terceira é que nossa sociedade consumista com as “novidades” do mercado e a obsolescência planejada dos objetos de consumo logo absorve o aumento da renda. O resultado é que o aumento do PIB em si, acima de um certo patamar, não contribui para o aumento da felicidade².

Um aumento do bem-estar da população de um país reflete a satisfação de sua população e, naturalmente, incide num apoio maior a seus governantes e seus respectivos partidos. Estes, geralmente preocupados em aumentar o PIB, verificam que, acima de certo patamar, esse aumento não vai significar necessariamente um aumento do bem-estar geral. O que, então, pode aumentar a felicidade das pessoas, sem ser a renda material?

A busca de uma resposta a essa pergunta necessita transformar a felicidade de um problema individual a uma questão coletiva. Os discursos filosófico abstrato e poético metafórico agora precisam do contraponto de um discurso científico. Como se constitui a ciência da felicidade?

Se a busca da felicidade se torna objetivo de um programa político haverá procura de políticas públicas para aumentar o bem-estar da população. Se o bem-estar ou a felicidade pessoal são percepções subjetivas, será necessário achar o denominador comum dessas percepções para imaginar políticas públicas destinadas a atendê-las. Para isso é preciso transformar as percepções individuais sobre a felicidade numa percepção geral.

Ora, tanto a ciência como a filosofia são saberes racionais. O apelo primordial é em direção à razão. O modelo paradigmático da ciência é o modelo das ciências naturais, que demanda a confirmação ou refutação pela experiência das hipóteses ou teorias propostas. Esse procedimento torna a produção da ciência um processo em que o progresso se caracteriza pelo trabalho coletivo dos cientistas, uns e outros, propondo, confirmando ou refutando as hipóteses e as teorias. Para esse procedimento é indispensável a utilização de uma linguagem com conceitos que possuam significados univocamente determinados.

Afinal, é fundamental que os cientistas de determinada especialidade falem dos mesmos objetos para poderem confirmar ou refutar reciprocamente suas hipóteses ou teorias. Assim tem progredido a física, a química, a biologia e suas múltiplas divisões e subdivisões e, também, até certo ponto, as ciências sociais Às vezes a favor, outras vezes contra o senso comum, esse procedimento, sempre datado historicamente, conduz a resultados confiáveis provisoriamente e sempre em permanentes transformações contínuas e às vezes descontínuas (as chamadas revoluções científicas).

Esse fato ocorreu com a revolução científica do século XVII. Com Galileu e Newton a ciência da física se emancipou da filosofia por meio dos conceitos intersubjetivamente válidos e quantificáveis de velocidade, aceleração, massa, força etc. Um século mais tarde se deu o aparecimento da ciência da química com o estabelecimento de uma nova e universal nomenclatura para os elementos químicos por Lavoisier.

Com a necessidade de uma linguagem semântica e sintaticamente unificada, a pesquisa científica sobre a felicidade tropeça em seu primeiro obstáculo. Pois se a felicidade representa um conceito inteiramente subjetivo incapaz de ter um significado único e universal, como pesquisá-lo cientificamente? A felicidade pode significar coisas diferentes para diferentes pessoas: possuir muitos bens materiais, ter boa saúde, família unida, boa aparência, ter sucesso e gostar de sua profissão, fazer muitas viagens, ter um significado para sua vida etc. Podemos almejar tudo isso para sermos felizes, certamente priorizando cada indivíduo algumas dessas coisas sobre outras, isso é, construindo cada qual a sua própria “cesta básica” da felicidade.

As enquetes nacionais sobre felicidade, bem-estar subjetivo, satisfação com a vida e afetos positivos e negativos são feitas com base em auto relatos como: Você é feliz? Você está satisfeito com a vida?, Qual o seu bem-estar subjetivo?, em que o “ser feliz”, “estar satisfeito com a vida” ou “fruir um bem-estar subjetivo” podem ter significados diferentes para diferentes pessoas. O que significará, então, saber que numa determinada população 15% das pessoas relatam serem muito felizes, 65% apenas regularmente felizes e 20% infelizes se não podemos saber exatamente o que é essa “felicidade”? Cada pessoa compõe a cesta de coisas desejáveis em proporção determinada individualmente, e o mesmo grau – digamos de 7 (numa escala de 1 a dez) – auto relatado por duas pessoas nada nos diz sobre a composição das cestas individuais de coisas desejáveis por cada uma. Permanecemos sempre no âmbito da definição nominalista da felicidade.

A ciência também demanda comparações. Indivíduos, grupos etários, grupos de maior ou menor renda, de melhor ou pior saúde, casados e solteiros, de diferentes nacionalidades ou países, serão uns mais felizes que outros? Mas para isso precisamos uma métrica, isto é, quantificar a felicidade. Como tudo isto tem sido feito na felicidade científica? A solução para esse problema atualmente de difícil solução³ foi contorná-lo.

Retomando o resultado da pesquisa hipotética mencionada acima, que nos deu o resultado de 15% das pessoas relatando serem muito felizes, 65% apenas regularmente felizes e 20% infelizes, e que não nos permite saber o que é a felicidade, poderemos verificar dentre os 15% mais felizes qual a proporção dos que possuem muitos bens materiais, têm boa saúde, uma família unida, boa aparência, sucesso e gostam de sua profissão, fazem muitas viagens etc. Continuando sem saber a definição da felicidade, poderemos saber quais dos atributos mencionados têm maior preponderância nos 15% mais felizes. O trabalho do estatístico responderá, com certa probabilidade de acerto, o que é mais ou menos importante para a obtenção da felicidade. Todavia, o nexo causal das correlações positivas só poderá ser estabelecido por pesquisas posteriores. Assim, se a felicidade for correlacionada positivamente com o sucesso profissional, restará saber se a felicidade causa o sucesso, o inverso, ou ambas as coisas. Isso poderá ser avaliado por estudos longitudinais.

O obstáculo semântico que não pôde ser superado é contornado. Uma filosofia se transforma em ciência quando seus conceitos básicos passam a possuir significados unívocos intersubjetivamente válidos. No caso da felicidade, seu significado intersubjetivo é inferido indiretamente a partir das mediações. Os resultados destas mediações têm oferecido várias indicações para políticas públicas⁴.

Medida da felicidade

A construção de uma ciência da felicidade se inicia pelo projeto de um sistema capaz de capturar, medir e comparar o quanto os indivíduos são mais ou menos felizes. Um dos modos de se fazer isso é por meio de enquetes realizadas em amostras estatisticamente representativas de determinadas populações. Isto já tem sido feito por meio de auto relatos individuais coletados em numerosos países por uma série de agências governamentais ou privadas⁵. Uma dessas agências é a OECD (Organization of Economical Cooperation and Development), organização internacional fundada em 1961 que congrega 34 países. Sua enquete procura medir o conceito de “bem-estar subjetivo” que substitui o de “felicidade” porque é mais amplo e cuja definição é: “Bons estados mentais,inclusive toda a variedade de avaliações, positivas e negativas, que as pessoas fazem de suas vidas e as reações afetivas às suas experiências”. Essa definição de “bem-estar subjetivo” engloba três dimensões:

1. Avaliação da satisfação com a vida. Esta é uma dimensão cognitiva que implica numa reflexão da pessoa sobre sua própria vida.

2. Afetos. Os sentimentos ou emoções das pessoas aferidas num período de tempo específico.

3. Eudaimonia. Um sentido de significado ou objetivo na vida.

Essas três dimensões são consubstanciadas em três questões que devem ser respondidas pelas pessoas que compõem uma amostra significativa de determinada população.

Os problemas contextuais e metodológicos para a construção de um instrumento adequado para capturar a sensação de bem-estar subjetivo estão registrados num texto de 250 páginas⁶. O núcleo deste instrumento preparado pela equipe da OECD contém três perguntas e tem sido utilizado em muitos países durante várias décadas.

1) Em geral quanto v. está satisfeito com sua vida atualmente? (Escala de 1 a 10)

2) De maneira geral, em que medida v. acha que as coisas que v. faz valem a pena? (Escala de 1 a 10)

3) Como v. se sentiu ontem? (Escala de 1 a 10)

Quanto a estar feliz?

Quanto a estar preocupado?

Quanto a estar deprimido?

Entre nós foi criado o “índice Itau de bem-estar social” composto de três sub indicadores: condições econômicas, condições humanas e desigualdade social. A Fundação Getúlio Vargas também pesquisa um indicador nacional de felicidade.

Ora, para a inserção internacional do Brasil no contexto da “ciência da felicidade” a construção de nossos indicadores deve obedecer a procedimentos metodológicos de pesquisa e de captura de dados comparáveis aos utilizados internacionalmente. As pesquisas de vários países podem oferecer variantes dessa metodologia, mas sempre com dados comparáveis entre si. Na área da pesquisa acadêmica tem sido realizadas, entre nós, várias pesquisas sobre o bem-estar subjetivo, sobretudo na área de saúde.


Isaac Epstein é mestre em filosofia da ciência, doutor em ciências da comunicação e autor de livros, entre eles Divulgação científica (Ed. Pontes), Gramática do poder (Ed. Atica) e Revoluções científicas (Ed. Atica). isaacepstein@uol.com.br


Notas:

1. Em verdade, o fato é polêmico. Há estudos que contestam a tese de Easterlin e outros que a ratificam.

2. “Um exemplo chave é dado pela superpotência econômica do mundo, os Estados Unidos, que atingiram enorme progresso econômico e tecnológico nos últimos cinquenta anos sem um ganho de felicidade aferido por auto relatos dos cidadãos. Pelo contrário, as incertezas e ansiedades são altas, as desigualdades sociais e econômicas aumentaram consideravelmente, a confiança social diminuiu e a confiança no governo está em baixa. Por essas razões a satisfação com a vida permaneceu constante durante décadas de crescimento do produto interno bruto (PIB). Sachs, J. Introduction, in Helliwell, J; Layard, R & Sachs (Eds) Wold happiness report, 2011.

3. Algumas informações podem dar certa validade para os auto relatos: o testemunho de familiares e amigos; alguns sinais corporais ou faciais. O bem-estar subjetivo também tem sido correlacionado com a atividade cerebral frontal esquerda e direita. É possível que no futuro haja aperfeiçoamento desses meios para se aferir a felicidade.

4. Diener, E. Seligman, M.E.P. “Beyond money”, in American Psychological Society, vol 5, nº 1, 2004.

5. Os dois maiores bancos de dados contendo medidas comparáveis de bem-estar são o Gallup World Pool e o World Values Survey. Outras organizações atuantes são: The European Social Survey, Eurobarometer, German Socio-Economical Panel, British Household Panel Study etc.

6. OECD (2013). Guidelines on measurement subjective well being. OECD Publishing.