Mensagens populares escritas estão em toda parte; em parachoques de caminhões, adesivos em automóveis, panos de cozinha, bilhetes deixados aos santos nas igrejas, cartões de boas festas, correntes de amizade em papel ou pela internet, plaquetas em bares e mercearias e, especialmente, nos banheiros públicos e nos muros e paredes de cidades. A comunicação popular escrita é um fenômeno urbano contemporâneo que se expande e convive com os chamados meios de comunicação de massa e com os comunicados oficiais e institucionais no nosso cotidiano. É um “espaço” aberto, livre de censuras e cerceamentos, para quem deseja ou sente uma necessidade incontida de expressar-se por escrito. A partir dessa observação foi feita uma pesquisa (Comunicação popular escrita, de Américo Pellegrini Filho, Edusp, 2009) que, ao longo de 20 anos, coletou cerca de 14 mil registros no mundo inteiro dessa comunicação informal.
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É questionável falar-se em “erro” em questões de línguas, face à dinâmica dessa construção social feita para comunicação em sociedade. Mas, devemos ter em vista duas forças disciplinadoras nessa dinâmica: a uniformidade e a diversidade. Podemos considerar a padronização da norma culta ensinada na escola como o fator disciplinador a ser seguido para melhor comunicar-se por escrito. A ortografia – a escrita correta – faz parte desse fator e deve ser estudada porque é fonte de legitimidade e de autoridade para quem enuncia e escreve. Os enunciados da comunicação popular escrita, na sua grande maioria, situam-se na linguagem convencional, mas há muitos que usam da criatividade, da situação de informalidade, como gírias, neologismos, símbolos, ressignificações e inovações que atuam contrariamente à uniformidade e apresentam a força da língua atuante, viva, em uso, modificando-se, segundo aceitação coletiva do “erro”, do diferente, do diverso. Esses desvios de padrões ficam mais claros em escritos feitos à mão, muito mais do que nos impressos.
É natural que haja desvios da norma gramatical nesse “espaço” em que a necessidade da expressão é maior do que a necessidade de escrever corretamente. Ou seja, às vezes o correto fica em segundo plano. Na sua maioria essas mensagens são anônimas e efêmeras; o autor não é identificado ou não está mais presente. Quando há iniciativa de corrigir, ela é feita por outro receptor que é obrigado a postar in loco a sua própria mensagem, corrigindo a original, como acontece nas conversas in absentia nos banheiros públicos. Especialmente nos WCs das universidades, atos de correção acontecem invariavelmente. São os casos registrados nas Faculdades de Arquitetura e Urbanismo e na de Letras da Universidade de São Paulo (USP), também na Faculdade Cásper Líbero, como consta no citado livro. Acrescenta-se o fato de haver deficiência na formação escolar de muitos brasileiros. O Brasil ainda é um país com alto índice de analfabetismo ou semi-alfabetização, para vergonha nossa. Em geral, o primeiro emissor deixa seu lugar de autoridade ao cometer o erro de grafia. E pode acontecer de a mensagem original ter seu foco desviado para a discussão do erro.
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Muitas das mensagens são feitas por pessoas de baixa escolaridade, como nas cédulas monetárias e em plaquetas contra o fiado, pedidos e agradecimentos em templos ou também nas frases em carrinhos ambulantes: “Agradeço á Nossa Senhora Aparecida por uma graça recebida eu não enchergava de uma vista e agora estou enchergando” (ex-voto, em Aparecida-SP), “Fiado para vocé nem pença vocês beber pra esquecé pagem antes de beber ta duro – beba água da bica”.
Nos vários países pesquisados detectou-se a presença da língua inglesa em muitos enunciados, mostrando, mais uma vez, o domínio cultural da Inglaterra e dos Estados Unidos. O primeiro pela sua política colonialista ao longo de séculos e o segundo pela hegemonia econômica mais recente. O erro de grafia em inglês é comum, tendo em vista o uso pelo falante não nativo e pela difusão da língua estrangeira em que o traço de oralidade predomina. Assim, pode acontecer a troca de palavras. Como no exemplo: “We are the champion of the word”, escrito na Torre Eiffel por ocasião da Copa em que a França ganhou; “Helena love Gozalo”, escrito em banheiro em Zaragoza, Espanha. E assim por diante.
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Por outro lado, em muitas mensagens acontece o “erro” feito propositadamente para se marcar um lugar identitário, uma forma de falar ligada a um grupo social. Com frases como estas: “É nóis na finta”, “Nóis capota, mais não breca”, “se feijão fosse cozido com pinga nois bebia só o cardo” ou “Oceis é tudo bobo”, “Nois não vive sem muié!“ (em diferentes cidades brasileiras), “Boa sorte! Vamo la!” (Festa de Tanabata, Sendai, Japão).
Também ocorre muito o uso de abreviações e outros recursos: “20 buscar”, “4ever”, “W Itália” “M Juve” “TVB” (significando Viva, Abaixo e Te quero bem, ou te amo, em italiano). As soluções encontradas para dar força ao conteúdo da mensagem que implicam o “erro” consciente são inovações utilizadas como instrumentos retóricos. Os emissores realizam e alargam a faculdade de simbolizar, ou de errar, próprias do ser humano. E, afinal, “Emar é hurrano”.
Ilza de Paula Pellegrini é mestre em ciência da informação e documentação pela Escola de Comunicações e Artes (USP) e foi assistente na referida pesquisa sobre comunicação popular escrita
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