09/05/2006
ComCiência:
O Grupo pela Vidda divulgou que 30 pessoas morrem de Aids
diariamente no Brasil, outras 107 são internadas e 68 casos
são registrados. O Brasil é considerado modelo no
combate à doença e parece haver um sentimento de que a
Aids não é mais um problema.
Rogério
de Jesus Pedro: A Aids é uma doença com a qual,
nestes 25 anos, aprendemos muito. Passamos do desconhecimento do
agente etiológico para conhecer os detalhes do ciclo evolutivo
do vírus, a maneira de replicação, como ele
penetra e é eliminado das células, quais são as
passagens que podem sofrer pressão de medicamentos para
impedir que o vírus se replique. Mas, apesar dos conhecimentos
estarem acumulados, esta é uma doença em evolução
e a cada dia conhecemos mais detalhes. Aprendemos a controlar, mas
estamos muito longe de pensar na erradicação do vírus,
tanto no indivíduo infectado quanto na comunidade. Primeiro porque é
uma doença que veio para ficar na humanidade, que aprendemos
apenas a controlar quando usamos os mecanismos mais eficientes
disponibilizados pela ciência, e porque temos que falar
fortemente em prevenção. De maneira que a afirmação
do Grupo pela Vidda é absolutamente esperada, normal.
Aprendemos,
no entanto, como retardar sua evolução e, quando
chegarmos à perfeição, aprenderemos a fazer com
que a doença não progrida. Nossa pretensão atual
é essa e não de erradicar o vírus. Temos muitos
passos a dar até que um dia, que certamente virá,
tenhamos condições de não apenas controlar, mas
de erradicar o vírus.
ComCiência:
Como o senhor vê a atuação do Programa
Nacional de DST/Aids e o que falta para evitar novos casos?
Rogério
de Jesus: Nosso modelo de saúde é surpreendente
para o Brasil. Com tanta ineficiência do sistema público
de saúde, o país, nesse aspecto, compreendeu a doença
e tomou a iniciativa, muito consistente, de assumir sua existência
entre nós. O Programa de Aids expõe nosso sistema de
saúde como uma estrutura modelo. O Sistema Único de
Saúde (SUS) tem que ser cada vez mais aperfeiçoado, mas
como programa de saúde é muito interessante, completo e
tem poucos modelos com a mesma consistência no mundo. Isso não
quer dizer que vivemos num sistema de saúde perfeito. A
execução e o modelo têm que ser aperfeiçoados,
mas o fato é que temos um modelo, de sistema único, que
permite capilaridade de ações, para um país da
extensão do Brasil, com questões de gerenciamento que
atingem rapidamente todas as bases. E o Programa Nacional de Aids foi
implantado nesse sistema e pôde ter uma ação
universal. É uma conquista da sociedade, resultante de
movimentos de organizações não governamentais,
de cientistas, de técnicos da saúde, que compreenderam
a abrangência da doença e executaram o programa. Os
países que não têm um sistema de saúde
organizado, precisam discuti-lo antes de implantar o programa de
combate à Aids.
Nestes
últimos anos, acho que o Programa não está tão
eficiente, perdeu a ousadia. Houve muitas restrições e
poucos progressos. Trabalha-se muito mais na sua manutenção
do que em criar novas ações e ter uma maior
abrangência. Mas continua sendo modelo para o mundo e mesmo
para o Brasil, para outras doenças. Veja que está se
usando o modelo para hepatites virais e pode ser replicado – usando
um termo que é muito próprio dos vírus – para
outras doenças brasileiras que estão sendo mal
assistidas, como a tuberculose.
ComCiência:
Como estão os recursos voltados para a pesquisa em Aids no
Brasil?
Nesse
campo não somos exemplo. O Brasil é um país que
gasta muito menos com pesquisa do que deveria. O que é
surpreendente é que recebemos muitos recursos internacionais,
que são gerenciados ou executados em centros no Brasil, como o
nosso. Mas os recursos para pesquisa no país estão
muito aquém da expectativa, mesmo assim o nosso Programa
viabilizou o reconhecimento nacional, pois ele é executado com
competência, o que ajudou a obter financiamentos
internacionais.
ComCiência:
Os tratamentos disponíveis ainda são tóxicos,
apesar dos avanços científicos que hoje possibilitam
uma sobrevida de qualidade nos soropositivos. Qual é ainda a
grande dificuldade de lidar com o HIV?
Rogério
de Jesus: Houve, com certeza, muitos avanços na
terapêutica. Passamos até 1987 com ausência
completa de drogas ativas contra o vírus para depois começar,
paulatinamente, a oferecer uma série de medicamentos que
são reconhecidamente ativos e disponibilizados. Mas os
tratamentos continuam sendo muito imperfeitos. Nosso caminho agora é
evoluir para drogas que tenham um perfil mais favorável: menos
toxicidade, de tratamento mais simples, que permitam melhor adesão
e que, sobretudo, que não sejam tão indutoras de
resistência do vírus. A resistência de
anti-retrovirais é inexorável. E ainda, temos que
considerar que a adesão ao tratamento é fundamental.
O paciente não pode dizer, por exemplo, “agora cansei”,
mas precisa entender que sobrevive com infecção
enquanto não houver replicação viral, que é
contida pelo tratamento. Uma vez que o paciente entenda isso e que os
esquemas sejam mais simples, conseguimos levar isso ao longo da vida.
É como um indivíduo que tem uma doença crônica.
A produção de drogas retrovirais é um campo
muito fértil, onde surgem novos medicamentos e esquemas a cada dia,
mas não temos ainda drogas ou vacinas que sejam indicadas para
impedir a infecção pelo HIV. Ainda estamos muito longe
disso, pois o vírus é um especialista em formar
mutantes que são diferentes do vírus selvagem e,
portanto, consegue contornar os tratamentos.
ComCiência:
A questão da vacina, desde o princípio, era esperada
para os próximos cinco anos. O que mudou na medicina em
relação à sua expectativa de combater os males
da humanidade.
Rogério
de Jesus: A Aids é uma doença que veio para ficar.
Mesmo quando temos vacinas e medicamentos eficientes, é
difícil erradicar uma doença. Mas o vírus da
Aids é estranho, porque consegue ficar dormente dentro de
células por muitos anos, na memória imunológica.
Um complicador importante é que uma vez ativada a célula,
ela se replica e expõe o vírus novamente. Além
disso, a ciência não tem conseguido estimular a produção
de anticorpos que tenham ação duradoura contra o vírus.
Existem muitos estudos e investimentos para desenvolver uma vacina,
de maneira que não acho que seja uma guerra perdida. Pelo
contrário. A ciência vai encontrar, num determinado
momento, um modo de produzir uma vacina efetiva. Mas daí a ter
a aplicação prática dessa vacina, e controle da
infecção, há uma distância muito grande.
Uma doença como a sífilis, por exemplo, tem o
Benzetacil® benzilpenicilina benzatina para o tratamento, no entanto, ela está há quase 500 anos na humanidade e
não é erradicada, apesar de ter maneiras simples para
isso. Uma coisa é produzir a vacina, a outra é
controlar a disseminação da doença.
A
Aids é uma doença que pode acometer qualquer um,
não se pode ter ilusão de que exista alguém
imune. Esta é uma doença que se transmite pela via
sexual. Isso é uma tragédia. Uma doença
transmissível assim não desaparece da humanidade,
porque mexe com o instinto. E o indivíduo não está
preocupado em se prevenir em determinados momentos. É a
questão da sífilis: não é porque temos
tudo na mão que essa doença vai desaparecer. Quando
olho para a Aids sem vacina, eu acho que está muito pior do
que a sífilis, mas se houvesse a vacina seria a mesma coisa
que ocorre com a sífilis. Você acha que todo mundo vai
se vacinar, todo mundo vai ter a mesma imunidade? Creio
que, com as ferramentas na mão, a erradicação
seja algo a ser almejado e, talvez demore, mas teremos uma vacina que
impeça que as pessoas adquiram a infecção pelo
HIV.
ComCiência:
Uma
das polêmicas sobre a origem da Aids e se o HIV seria mesmo o
agente causador da doença, por não atender aos
postulados de Koch. Como anda essa discussão atualmente?
Rogério
de Jesus: Hoje
temos evidências, em estudos de campo muito bem conduzidas por
pesquisadores de várias origens, mas principalmente ingleses e
norte-americanos trabalhando na África, que demonstram que o
HIV 1 veio dos chimpanzés. O HIV 2, que é um outro
agente e que tem pouco no Brasil, veio do macaco verde. Todos os
dois, ao que parece, tiveram origem na África e a partir de
retrovírus que infectam esses primatas. Assim, o rastreamento
do vírus está, de certa maneira, definido. Houve
adaptação do vírus à infecção
humana, modificação e transformação num
outro vírus, mas com muita homologia em relação
a outros vírus de onde ele se origina, como indicam estudos
filogenéticos. Este retrovírus existe nos animais há
muitos anos; o homem apenas entrou e rompeu o equilíbrio desse
nicho ecológico, por razões de contato com esses
primatas de várias ordens, principalmente comendo a sua carne.
Mas os postulados de Koch se aplicam. Se injetarmos o HIV num humano,
se reproduz a infecção e a doença. De maneira
que o HIV é o patógeno causador da infecção,
sem dúvida nenhuma. A questão de dizer que isso é
uma questão de comportamento, que o HIV é simplesmente
um a mais, é uma visão ultrapassada.
ComCiência:
Muitos
médicos utilizaram a interrupção do tratamento
como forma dos pacientes se recuperarem dos efeitos das drogas. Como
está essa condução no tratamento?
Rogério
de Jesus:
Uma das coisas que estava em questão até muito
recentemente era de propormos programas de tratamento, com uma
diminuição da exposição do indivíduo
a drogas, com o objetivo de diminuir as reações
tóxicas, baixar custos etc. Mas no momento atual esse tipo de
esquema está sendo desaconselhado, frente aos conhecimentos
atuais que demonstram que nos grupos que interromperam o tratamento a
infecção avançou mais do que nos grupos que o
mantiveram. Então, a interrupção do tratamento
não está mais na ordem do dia, não se justifica.
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