Para nós, no Brasil, que não vivemos, ainda, um estado social efetivo, que fosse capaz de oferecer saúde, educação e previdência de qualidade para todos, o caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada do poder, a descentralização radical de competências, fortalecendo os estados e, principalmente, os municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, além do incentivo permanente à organização da sociedade civil e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação como as rádios, jornais e televisões comunitárias. Podemos – e assim estamos fazendo – construir uma democracia social e participativa a partir do poder local.
No Brasil, menos de um ano após a promulgação da Constituição democrática e social de 1988, assistimos ao início do desmonte da nova ordem econômica e social prevista pela Constituição. Nesse mesmo momento, como suporte teórico do desmonte do estado social, cresceu a crítica simplificadora e reducionista, importada dos Estados Unidos e de alguns autores europeus, proveniente do novo pensamento neoliberal e neoconservador e ratificada por parte da nova esquerda (como o novo trabalhismo de Tony Blair). Essa crítica ao estado social, que vem dar suporte ao seu desmonte, aponta o caráter assistencialista como gerador de um exército de clientes que se amparam no Estado, não mais produzindo, não mais criando. Criticam o estado social argumentando que este retira espaços de escolha individual, gerando não-cidadãos uma vez que incentiva as pessoas a viverem às custas do Estado. Essa crítica, extremamente simplificadora e parcial, que toma uma parte de um problema pontualmente localizado no tempo e no espaço como sendo regra para explicar a crise do estado social, ganhou força inclusive à esquerda, o que muito contribuiu para a desconstrução do estado de bem-estar social em diversas partes do globo. Segundo esse discurso simplificador, o Estado não deve sustentar os que não querem trabalhar, pois essa postura do Estado incentiva a expansão dos não-cidadãos e sobrecarrega os que trabalham e o setor produtivo com uma alta carga tributária. Logo, pobre deve trabalhar para ter acesso ao que necessita, e como não há trabalho para todos – nem mesmo o trabalho indesejável e mal pago destinado a esses excluídos –, aumenta a população carcerária. O estado social assistencialista é substituído pelo estado penal da era neoliberal. O criticado cliente do assistencialismo da segurança social foi transformado em cliente do sistema penal da segurança policial.
Nesse novo paradigma, a pobreza não decorre das barreiras sociais e econômicas, mas sim do comportamento do pobre. O Estado não deve atrair as pessoas a uma conduta desejável através de reconhecimento, mas deve punir os que não agem como o desejado. O não-trabalho passa a ser um ato político que exige o recurso à autoridade. O estado social passa a ser visto como permissivo, pois não exige uma obrigação de comportamento a seus beneficiários. A direita conservadora mais reacionária e a autoproclamada vanguarda da nova esquerda dão eco a vozes como a de Charles Murray, que afirma que as uniões ilegítimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime e, por sua vez, o estado social, com sua política permissiva, incentivava essas práticas. Além disso, a classe média produtiva se revolta cada vez mais com a obrigação de pagar tributos para sustentar essas práticas. Essa absurda tese, sem nenhuma base científica, defendia cortes radicais nos orçamentos sociais e a retomada, por parte da polícia, dos bairros antes operários, hoje ocupados pelos clientes preferenciais do sistema social que tem de deixar de existir.
O resultado dessas políticas (tanto da direita conservadora como da nova esquerda) é conhecido nosso no século XXI: mais exclusão, mais concentração econômica, mais violência, mais controle social, mais desemprego, menos estado de bem-estar e mais estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje, vozes que se dizem democráticas continuam sustentando o mesmo discurso contra o estado social, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica, construída pela sociedade civil livre, sem perceber que os novos excluídos, social e economicamente, estão excluídos do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente massa de clientes do sistema penal em expansão.
Entretanto, nos últimos anos, a situação começa a mudar. Importante notar que a sociedade civil, que hoje se organiza em nível local e global, e se comunica, organiza e age local e globalmente, em muitas manifestações resiste ao desmonte do estado social de direito e das conquistas dos direitos sociais, buscando uma nova ordem onde não haja exclusão socioeconômica.
Com menos vigor e contundência que os movimentos sociais, mas com importante papel no cenário de resgate de um paradigma social, o discurso e a prática de novos governos democráticos na América Latina demonstram uma retomada do papel do Estado na economia e na questão social, abandonando gradualmente o modelo neoliberal.
O caso brasileiro é um grande exemplo. Na última década, o Brasil apresentou um desenvolvimento social expressivo, maior até que o desenvolvimento econômico. Os direitos sociais e econômicos passaram a ser objeto de políticas públicas que começaram a mudar a realidade de extrema desigualdade que colocava o país entre os mais injustos do planeta.
Essa mudança nas políticas públicas veio acompanhada de uma nova postura do poder judiciário e do Ministério Público, que passaram atuar de forma efetiva na defesa e efetivação dos direitos sociais.
Parece que, finalmente, caminhamos para a retomada definitiva de um estado social e democrático de direito, fundado na efetividade de direitos sociais como saúde e educação públicas e gratuitas; moradia e segurança social, assim como direitos econômicos como emprego com justa remuneração, acesso à terra e ao bem-estar.
É importante lembrar que, na segunda metade século XX, a humanidade construiu uma nova compreensão dos direitos humanos. Superando a antiga e reducionista percepção liberal desses direitos, que consideravam apenas os direitos individuais de liberdade e propriedade como direitos fundamentais, as Nações Unidas passam a adotar a compreensão da indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais. Isso significa que não é possível liberdade sem dignidade ou, em outras palavras, para que as pessoas possam efetivamente usufruir de suas liberdades individuais e políticas é necessário que estejam livres da miséria, é necessário que tenham acesso a uma vida digna com alimentação, moradia, educação, saúde e segurança social.
Não há liberdade na miséria.
José Luiz Quadros de Magalhães é professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais.
|