A Ética de Spinoza insiste no elo entre vida, morte
e relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os nossos
semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível numa ordem
social capitalista constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte.
Só temos consciência de quem somos porque os outros nos alertam para nossa
singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é quase um ajuntamento morto.
O
tema “vida” levanta questões filosóficas, éticas e políticas cuja resposta é
quase impossível. A diferença entre vida e morte abre as portas para a reflexão
sobre a eutanásia, o aborto, o Holocausto, o assassinato frio de pessoas
acusadas sem prova, as guerras que assolam países e milhões de pessoas. Tais
pontos são afastados das conversas e debates civis e políticos. Inquieta
sobremodo a invisibilidade da morte, algo comum na sociedade moderna. Em vez de
velar o cadáver na família, o post mortem
ocorre em salas higiênicas, como se o falecido fosse apenas “garbage” a ser
descartado. Igor Caruso, no pungente A separação
dos amantes, mostra que, sem o luto, o morto passa a “viver” na alma do sobrevivente.
Afastada toda manifestação ritual do sofrimento (ritos religiosos, civis,
sociais) a morte não se completa. Do ponto de vista antropológico é como se os
mortos tomassem nas mãos os entes que eles amavam (e por eles eram amados) e os
levassem para o Nada.
Tudo,
em nosso quotidiano, confirma o dito de Karl Marx no 18 Brumário: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um
pesadelo o cérebro dos vivos”. Temo que a carência por nós sentida do
acatamento aos direitos humanos reside no vazio entre vivos e mortos. Sem as
cerimônias e a sensibilidade dos que ainda habitam o planeta, fantasmas
encontram lugar na consciência humana invisível. A dor anônima não pranteada
gera ressentimentos, tristeza, vingança. Ela produz a sociedade que, no
pensamento de Spinoza, mais se assemelha a um hospício.
A Ética de
Spinoza insiste sobre o elo entre vida, morte, relações sociais. Não percebemos
sempre, mas o trato com os nossos semelhantes é garantia de vida, saúde,
felicidade. Parece incrível numa ordem social capitalista e sem impulso piedoso
– piedade não é algo romântico e significa na era antiga o elo dos indivíduos
com o coletivo – constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte.
Spinoza relembra o trato entre vida e morte entre humanos. No livro IV, 39,
escólio nota ou comentário para servir ao entendimento dos autores clássicos da
Ética demonstrada geometricamente, ele
afirma que “o corpo humano precisa de um grande número de outros corpos para se
conservar”. A forma do nosso corpo “consiste em que as suas partes se comunicam
e seus movimentos seguem determinada relação que o conserva”. Os indivíduos são
afetados e afetam de muitos modos. O movimento e o repouso permitem que assumam
uma outra forma, o que pode causar sua destruição e os tornar inaptos para
afetar e serem afetados, o que é letal. A vida consiste em estar o indivíduo em
pleno movimento de expansão e conservação. Tal processo só pode ser
experimentado em sociedade.
Quando um coletivo morre? O processo é similar ao
ocorrido com o corpo dos que o compõem. Diz Spinoza: “O corpo humano, enquanto
a circulação sanguínea continua, bem como as demais funções pelas quais consideramos
que um corpo vive, pode mudar sua natureza para uma outra em tudo diferente”.
Mudanças ocorrem sem o corpo se transformar em cadáver. Em referência quase
certa a Góngora o poeta espanhol Luis de Góngora y Argote (1561-1627), lemos
no mesmo passo da Ética que “às vezes
um homem sofre mudanças tamanhas que hesitarei muito a dizer que ele é o
mesmo”. Góngora perdeu a memória um ano antes de falecer. “Embora curado,
esqueceu totalmente sua vida anterior e não acreditava serem suas as obras que
havia composto. Poder-se-ia considerá-lo como uma criança adulta se tivesse
esquecido também a língua materna. E se tal coisa parece incrível, que diremos
das crianças? Um adulto acredita que a natureza infantil é diferente da sua, e
não pode se persuadir de que um dia foi criança, se não conjeturasse sobre si
mesmo a partir dos outros”.
A última frase é capital: só temos consciência do que
somos e de quem somos porque os outros nos alertam para a nossa singularidade.
Um coletivo sem abertura ao outro é ausência de vida, obscura inconsciência,
quase um ajuntamento morto. A Substância (Deus ou Natureza) é infinita e possui
infinitos modos. Cada modo reúne infinitas relações. No caso dos seres humanos,
a quantidade de nexos por eles mantidos com a natureza e com os semelhantes os
enriquece ou empobrece, depende dos afetos assumidos. “Por afeto compreendo as
afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Ética 3, Definição 3). Indivíduos que
desejam o bem e o fazem aos demais alcançam poder maior do que os presos ao
ódio e à tristeza, paixões que diminuem a potência de agir. Podemos dizer: os
presos aos afetos negativos se aproximam do estado por nós conhecido como
morte. Quem amplia seus nexos positivos com os outros se aproxima da vida.
É o que afirma a Ética
no Livro IV, escólio da proposição 18: “Se dois indivíduos de natureza inteiramente
igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada
um deles considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que
o próprio homem. Quero com isso dizer que os homens não podem aspirar a nada
que seja mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em
concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham
como que uma só mente e um só corpo, e seu ser, e que busquem, juntos, o que é
de utilidade comum para todos”.
A doutrina, embora ligeiramente modificada, já tinha
sido exposta por Spinoza nos Pensamentos metafísicos,
capítulo VI: “Entendemos como vida a força que faz perseverar as coisas em seu
ser; e como tal força é distinta dos próprios seres, dizemos justamente que os
seres mesmos têm vida. Mas a força pela qual Deus persevera em seu ser nada
mais é que sua essência; falam bem, pois, os que dizem que Deus é a vida.”.
A vida, portanto, evidencia a essência divina, ou a
natureza. Tudo o que os homens fazem para conservar a força vital, sua e de
seus iguais, é positivo. Tudo o que os impede de liberar tal poder é negativo.
Assim, segundo a Ética, V, proposição
10, escólio, “o melhor que podemos fazer, enquanto não tivermos um conhecimento
perfeito de nossos afetos, é idear um método correto de vida, ou seja,
princípios seguros, e gravá-los na memória e sempre os aplicar às coisas
particulares que se encontram facilmente na vida, de modo que a nossa
imaginação seja por eles amplamente afetada e que eles estejam sempre a nossa
disposição. (…) Se lembramos a razão de nosso verdadeiro interesse e do bem
advindo de uma amizade mútua e de uma sociedade comum, se recordamos que a
suprema satisfação da alma nasce do correto método de viver (…) e que os
homens, como as demais coisas, agem por necessidade de natureza, a ofensa, ou
seja, o ódio que dela brota ordinariamente, ocupará pouco a imaginação e será
facilmente superada”.
Vivemos no século XXI uma crise inédita no
relacionamento dos indivíduos consigo mesmos e com os outros. Das situações
mais comuns às guerras que abalam o planeta, os afetos negativos parecem vencer
os positivos. As potências estatais hegemônicas retornam ao uso irrestrito da violência, tal como ocorreu no episódio narrado por
Tucídides na Guerra do Peloponeso,
sobre o cerco à ilha de Melos.
A colônia de Esparta queria
ser neutra na luta entre potências. Empurrada pelos atenienses, entra na
guerra. No texto, os embaixadores de Atenas dão o ultimato: Melos deve
render-se e servir Atenas. “Não usaremos belas frases, não diremos que
nosso domínio é justo (…) sabemos e vocês sabem tanto quanto nós que a justiça
só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns possuem mais
força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se (…) como podem”.
Hobbes, em sua tradução de Tucídides, é mais radical: a necessidade exprime o
estado de natureza onde todos se enfrentam. Os mais fortes usam sua vantagem
momentânea de poderio. Aos mais fracos resta atingir aquele estado de império. É
de semelhante trecho, na obra de Tucídides, que brota o hobbesiano bellum
omnium contra omnes.
Spinoza rompe com a razão
de Estado e com a doutrina sobre o estado de natureza defendida por Hobbes. É
célebre o trecho da carta enviada por ele a Jarig Jelles: “O
senhor me pergunta qual a diferença entre o pensamento de Hobbes e o meu, no
relativo à política: ela consiste em que sempre mantenho o direito natural e só
concedo, em qualquer cidade, direito ao soberano sobre os cidadãos na medida em
que, pela potência, ele os sobrepuje; é a continuação do estado de natureza” (2
de junho de 1674). A natureza é um campo em que o “peixe grande tem o direito
de comer o pequeno”. Mas se os peixes pequenos se unem, formam um indivíduo
poderoso diante do qual todo peixe grande sente-se ameaçado. Segundo o Tratado Político, “se dois homens se encontram
e unem suas forças, eles têm um poder maior sobre a natureza, e por conseguinte
maior direito, do que cada um deles em separado” (cap. II, parágrafo 13). A
democracia, união de muitos, é dita por Spinoza como o “regime mais natural”.
Ela não dispensa a força, mas exige, para se realizar plenamente, a ciência e a
razão. Tais atividades trazem vida aos humanos. Mas se distorcidas pelas
paixões, prometem morte, loucura.
Talvez mais do que na Guerra Fria, o planeta Terra
está ameaçado de morte: armas nucleares nas mãos de meros demagogos (Trump ou
Putin), terrorismo de Estado e de movimentos fanáticos, devastação do meio ambiente,
usura dos seres humanos pelo chamado neoliberalismo. Como diz em livro recente
um pesquisador do totalitarismo, “a vida é sempre unida à morte, mas hoje é a
morte que engloba a vida (destruição da biodiversidade natural e cultural,
aumento das poluições nucleares, químicas etc.). Acabo de citar Marc Weinstein,
L’évolution totalitaire de l’Occident,
2015.
Talvez seja o momento de recordar os enunciados de L.
Wittgenstein sobre o místico e a vida: “O místico não está em como é o mundo,
mas no que é. A solução do problema da vida se entrevê no desvanecer-se desse
problema. Existe verdadeiramente o inexprimível. Ele se mostra; é o místico.
Minhas proposições são explicativas desta maneira: quem me compreende, afinal
as reconhece desprovidas de significado, quando subiu através delas, sobre
elas, para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada depois de
ter subido por ela). Deve passar acima dessas proposições: então verá o mundo
do modo certo”. (Citado por Umberto Eco: Obra
aberta).
O amor intelectual de Deus, em Spinoza, leva ao
conhecimento maior. Nele, os humanos efetuam sua essência divina, a de agir.
“Mais uma coisa é perfeita, mais ela age e menos é passiva; inversamente, mais
ela age, mais é perfeita” (Ética, 5,
proposição 40). Nosso mundo resulta de infindáveis atos, positivos ou
negativos. Um elemento negativo reside no culto do sofrimento e da morte.
Afinal, “um homem livre pensa o menos possível na morte. Sua sabedoria consiste
em meditar, não na morte, mas na vida”. Baseado em que tal frase se sustenta?
Numa certeza que poderia ser dita mística: “Sentimos e experimentamos que somos
eternos”. Sejamos claros: se a Substância é infinita e reúne infinitos modos,
destruída a Terra, Deus nada perde. Nós tudo perdemos. É assim que devemos
encarar a corrosão letífera do nosso mundo. Mas, por outro lado, agir para
conservar sua força e beleza é um jeito de afirmar o poder divino em nós. A
liberdade que não significa arbítrio nem capricho nos faz valorizar o tempo e o
espaço nos quais nos movemos e somos. Cada átimo revela o Eterno e, assim,
percebemos o valor da vida e da finitude. Para tal feito, devemos valorizar a
ciência e a prudência (aprendida por Spinoza de Maquiavel). Afinal, se a
salvação “pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja
negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como
raro”. Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt. É assim que o filósofo finaliza a sua
estratégica e ainda hoje negligenciada ética da vida, contra os afetos de
morte.
Roberto Romano é doutor em filosofia e professor de ética
política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
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