Se você
desconfia que a única coisa que um papagaio é
capaz de
fazer, ao balbuciar sons que parecem palavras, é repetir,
depois de muita exposição, o que andou ouvindo
por aí,
então você precisa conhecer Alex. Alex
é um
papagaio pop-star, entre modelos de animais não-humanos de
linguagem induzida em laboratório. Artigos e
reuniões
científicas são realizados sobre suas
habilidades. Ele
é capaz de neologismos para nomear objetos que jamais
observou, e é capaz de combinações
inéditas
de palavras, jamais tendo sido exposto a tais
combinações.
Ele parece, portanto, ter noção sobre as
estruturas das
palavras que aprende, e alguma noção de sintaxe.
Ele
também é capaz de outras peripécias
cognitivas
(categorização complexa,
operações
aritméticas, etc). Alex é uma ameaça
à
noção primatocêntrica de
comunicação
baseada em intencionalidade, morfologia, sintaxe, composicionalidade
semântica, referencialidade simbólica. Ele
é
parte de um projeto interessado, entre outras coisas, nas rotas
evolutivas de propriedades que parecem caracterizar a
comunicação
humana (Pepperberg 1999). Uma explicação para o
aparecimento dessas propriedades não pode evitar um estudo
comparativo, e suas bases biológicas, em animais
não-humanos.
Isso tem explicado o interesse crescente de muitas comunidades
científicas por estudos de comunicação
em
animais não-humanos, nos últimos anos. Minha
idéia,
neste artigo, é fazer uma breve
introdução a
alguns problemas considerados bastante relevantes nos estudos sobre
comunicação animal, com
atenção à
diversidade de estratégias metodológicas. Poderei
apenas mencioná-los deixando para o leitor dicas que podem
ser
úteis para uma investigação mais
detalhada.
Comunicação
é um destes termos
ubíquos (alguns outros são
informação,
cognição, representação)
que, embora
usado democraticamente, raramente é definido com rigor e
precisão. Uma pergunta aparentemente simples para
começar
é “o que é
comunicação?” A
resposta é controversa. É um ato que media a
reação
de dois (ou mais) organismos; é um processo que evoca uma
mudança de comportamento; é uma
ação que
altera a probabilidade de um padrão de comportamento, de
modo
adaptativo para um dos interagentes, ou para ambos; é, mais
simplesmente, fluxo de sinais entre agentes “processadores de
informação”; é um
fenômeno que
ocorre quando uma criatura, a que age, faz algo que parece ser o
resultado de seleção para influenciar outra
criatura, a
que reage, tal que a mudança de comportamento da que reage
muda vantajosamente para a que age. Cientistas e filósofos
se
alternam na defesa de diferentes propriedades (necessárias
e,
com sorte, suficientes) para definição do
fenômeno.
A importância dessa fase preliminar de ajuste conceitual
não
tem sido negligenciada. Ela é o ponta-pé inicial
–
embora, na prática, isso não aconteça
em uma
sequência temporal bem arranjada – de pesquisas
empíricas, em campo e laboratório, computacionais
e
formais. As idéias que estão por trás
dessa fase
são motivadas por muitas metáforas. Os agentes
são
tanto “máquinas de processamento de
informação”
(tese cognitivista), quanto “osciladores acoplados”
(teoria de sistemas dinâmicos), matrizes (teoria da
decisão),
jogadores (teoria de jogos), e outros.
Como quer que sejam concebidos, parece
inconcebível
qualquer forma de interação entre sistemas
biológicos
que não seja regulada por processos comunicativos. Falamos
de
comunicação celular,
sinalização neural,
sinalização imunológica,
comunicação
homem-máquina, comunicação animal. Se
dois, ou
mais, organismos (ou partes deles) entram em uma forma de
interação,
então parecem fazê-lo porque são
capazes de
comunicação. Mas para que isso tenha lugar
são
necessárias estruturas especiais e, em organismos complexos,
uma parafernália delas. É preciso, por exemplo,
uma
interface sensível a um espectro de eventos de certa
natureza
– química, acústica,
sísmica, visual.
Somos surdos a certas frequências, cegos a certos
comprimentos
de ondas, insensíveis a delicadas
vibrações
sísmicas. Mas essa não é a
única razão
pela qual não conversamos com elefantes. Sabemos que um
repertório de vocalizações precisa ser
aprendido, para ser usado com sucesso, embora esteja certamente
correta a suposição de que se possa nascer com um
repertório de sinais. (De fato, evidências indicam
que a
ontogenia é mais criticamente influenciada pela
experiência
entre primatas e pássaros.) Se dois animais se comunicam por
meio de sinais é porque eles significam algo. O significado
de
um sinal não decorre apenas do fato de que modifica uma
interface sensível, especialmente em criaturas complexas.
Uma
vez que sinais funcionam em certos contextos, provavelmente evoluiram
para solução de problemas
sócio-ecológicos.
Um problema que ocupa a atenção de
etólogos, há
décadas, é a transição de
um evento que é
um “não-sinal”
(defecação, postura
agressiva ou defensiva, movimentos estereotipados), para um evento
que sinaliza (submissão, côrte,
marcação
de território). Em muitos casos, uma
reação é
ritualizada tornando-se comunicativa, antecipando um evento. A
complexidade crescente em termos de antecipação
provê
o agente com vantagens expressivas, como sabem criaturas afetadas por
predadores – “se você entende um alarme
para um
predador, com mais precisão, tem mais chance de
sobreviver”.
Pesquisas sobre
o significado dos sinais, descrito como
“informação
transmitida”, por etólogos, ou “efeito
de
manipulação sobre agentes”, por
ecólogos
comportamentais, foram incrementadas, nos anos 60, por Struhsaker, e
desenvolvidas por Peter Marler e seus alunos. Importantes
questões
incluiam: os sinais são usados intencionalmente,
não
resultando de reações puramente
mecânicas? São
estruturados, podendo ser comparados a palavras? Existem propriedades
de recursividade, indicando algo como sintaxe? Cheney &
Seyfarth
(1990) sugeriram que as vocalizações produzidas
por
primatas (Cercopithecus aethiops) para diversos
predadores, em
suas interações com co-específicos
(membros de
sua comunidade), eram entidades mais complexas que as
vocalizações
produzidas pelo saque do Guga (eles mencionaram Jimmy Connors). Por
que? Precisamente porque representavam mais do que o estado afetivo
de um vocalizador. As entidades eram “funcionalmente
semânticas”. Indicavam coisas (ou
estratégias)
especiais. Uma vocalização específica
indicava
um predador específico produzindo uma fuga
específica.
Importante: embora houvesse forte evidência de uma
tendência
inata para aquisição de um repertório
de
vocalizações, a aprendizagem desse
repertório
dependia criticamente de um período de
exposição
ao ambiente. Casos assim indicavam que o fenômeno deveria
resultar de processos cognitivos complexos.
O que Peter Marler e outros pesquisadores
fizeram, para
descrever as propriedades semânticas dos sinais, foi expor
animais a sinais gravados (playback), em
situações sob
controle, de modo que pudessem acompanhar as
reações
dos intérpretes. Pesquisas assim foram e são
conduzidas
com macacos, hienas, elefantes, lobos, baleias, pássaros,
suricatas, golfinhos, lagartos, etc, em protocolos de campo e
laboratório. A idéia não é
muito
diferente da construção de um
dicionário
espécie-específico de sinais e suas
relações
com os contextos em que são usados. (No
Laboratório de
Vertebrados Terrestres, no Instituto de Biologia da UFBA, temos
realizado testes desse tipo com roedores da famíla dos
Echimyidae.) Em protocolos assim (playback), conduzidos em
laboratório, pode-se monitorar muitas das estruturas que
são
requisitadas durante a comunicação, incluindo
meios de
produção, transmissão,
organização,
estocagem, processamento e interpretação de
sinais. As
observações são feitas em diversos
níveis
de organização, de neurônios a macro
estruturas
do sistema nervoso, central e perifericamente. Por meio de
técnicas
invasivas obtém-se mapas espaciais e temporais de
regiões
dedicadas ao processamento de diversos tipos de sinais. Isso permite
compreender diversos aspectos associados ao processamento de sinais,
em diferentes regiões do sistema.
O que se
espera, hoje, como estratégia robusta de
investigação
em comunicação e linguagem animal? Uma resposta
certeira: uma combinação de metodologias que
associam
evolução, comportamento, em campo e
laboratório,
e modelagem computacional. Os estudos sobre sistemas de
comunicação
timidamente incorporaram estratégias de biologia evolutiva e
comparada com etologia, neurociência cognitiva e
simulação
computacional. Deve-se a poucos fatores a robustês dessa
combinação. Etólogos têm
alta consideração
pela história e contexto do organismo, em que
estão
imersos os sistemas de comunicação investigados.
Psicólogos e neurocientistas montam protocolos em que
são
minuciosamente controlados parâmetros e variáveis
experimentais, tarefa, em geral, impossível de se obter em
campo. Cientistas da computação inventam
ambientes onde
a concepção de criaturas que se comunicam
(robôs
ou agentes digitais) permitem investigar
condições e
requisitos que inicializam diversos fenômemos. (No
Group for research on artificial cognition
, DCA-Unicamp, temos desenvolvido
diversos experimentos sobre comunicação em vida
artificial. Simulamos “emergência de
comunicação
referencial” em ambientes digitais, com agentes
autônomos
bastante simples). Evolucionistas descrevem a história de sistemas de
comunicação, e investigam rotas de
complexificação
dos componentes envolvidos nestes sistemas, indicando os mecanismos
evolutivos que atuaram no surgimento de novas estruturas e
propriedades. Combinadas, as metodologias permitem perguntar pelo
“tipo de informação” que um
sistema (um
circuito do cérebro, por exemplo) processa,
“como”
e “onde” processa, e “por que”
evoluiu para
fazê-lo. Pode-se perguntar pelos mecanismos evolutivos
responsáveis pelo aparecimento de certas estruturas. Pode-se
simular os requisitos mínimos necessários para o
aparecimento de fenômenos de
comunicação.
Comunicação e
linguagem são
fenômenos complexos. É um clichê dizer
que um
fenômeno que exibe complexidade pode ser abordado de
diferentes
perspectivas. Como é usual quando se conhece mais sobre
fenômenos assim, há uma nova bateria de
questões
disponíveis no ar, e muitas disciplinas são
convocadas.
Termino este artigo mencionando as mais interessadas: ecologia
comportamental, sociobiologia, etologia, neuroetologia, psicologia
comparada, biologia comparada, psicologia evolutiva, ciência
cognitiva, neurofisiologia, biossemiótica, vida artificial e
robótica evolutiva.
João Queiroz
é pesquisador do DCA da
Unicamp e professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal
da Bahia UFBA.
Referências:
Cheney,
D.L., & R.M. Seyfarth. 1990. How monkeys see the
world: Inside
the mind of another species. Chicago University Press.
Hauser,
M. & Marler, P. 1999. Animal communication, em The
MIT
Encyclopedia of cognitive sciences. (eds.) Wilson, R. and
Keil,
F. MIT Press.
Peppergerg, I.
1999. The Alex Studies. Harvard University Press.
|