Aanálise
das imagens do Brasil produzidas por artistas
viajantes desperta interesse entre pesquisadores há muito
tempo. Em parte porque essas imagens dizem algo da história,
do povo que aqui vivia, dos estrangeiros que para cá vieram,
de como se organizavam as cidades, as formas de trabalho, e as
plantas e animais que aqui existiam. Mas, sobretudo, porque as
imagens dos viajantes dizem também da história
dos seus
autores, dos lugares e sociedades a que pertenciam, das
influências
que recebiam e que passavam para as suas obras, e das escolhas
técnicas que faziam. Como diz Ana Maria Beluzzo,
pesquisadora
de história da arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU) da Universidade de São Paulo, em artigo
publicado pela Revista
USP, “o olhar dos viajantes espelha,
também,
a condição de nos vermos pelos olhos
deles”.
O
Tupinambá em "Adoração dos Magos", Vasco Fernades (1505),
Museu de Grão Vasco em Viseu,
Portugal
As
imagens dos viajantes participam assim da
construção da
identidade européia e brasileira num jogo de
aproximações e distanciamentos, de
estabelecimento de
diferenças e semelhanças. Não
é de
admirar que predomine na maior parte das cenas pintadas pelos
viajantes “um Brasil exótico, reiterando a
necessidade de
identificar o nativo do Brasil como um ser diferente, produto de um
mundo que não é europeu”, como analisa
a professora
Elisa de Souza Martinez, coordenadora da
Pós-Graduação
em Arte do Departamento de Artes Visuais da Universidade de
Brasília
(UnB). Martinez destaca ainda que “em alguns casos, as
semelhanças
entre o homem europeu e o brasileiro são trabalhadas de modo
a
vestir este último com uma certa humanidade
aceitável
aos olhos do primeiro. Se por um lado a
identificação
do aspecto selvagem justifica a caça e o
extermínio do
nativo, por outro, a humanidade atribuída ao selvagem bom
é
um recurso para catequizá-lo e salvá-lo do
inferno a
que os canibais se destinam”.
Um índio ocupa o trono da tela “O
inferno”, autoria desconhecida,
Museu Nacional de Arte
Antiga,
Lisboa, Portugal
Luciana
Rossato, no artigo
“Imagens de Santa Catarina: arte e
ciência na obra do artista viajante Louis Choris”,
também
ressalta a predominância de imagens exóticas e
pitorescas do Brasil. Entretanto, mostra as diferentes escolhas
feitas pelos artistas Choris e Jean Baptiste Debret. O pintor e
litógrafo russo Choris achava que as vilas e as pessoas que
as
habitavam se tornavam secundárias diante da majestosa
“natureza ainda selvagem” que o Brasil oferecia.
Suas pinturas
retratam essa pequenez do ser humano em meio à colossal e
exuberante vegetação. Já o
francês Debret
deixa de lado a suntuosa riqueza natural brasileira e a humanidade em
seu estado dito “natural” e se interessa pela
sociedade
brasileira, pelos acontecimentos e modos de vida nas vilas e no
campo. O que é periférico para um é
central para
o outro. Como resultado, as pinturas desses artistas oferecem
“Brasis” muito diferentes, embora o
exótico e o pitoresco
também apareçam nas telas de Debret.
A família real no Rio de Janeiro por
Jean Baptist Debret (1934)
A
viagem como experiência artística
Se
as imagens produzidas pelos artistas dão muito o que pensar,
o
que não dizer da própria experiência da
viagem
como parte da produção artística. O
desafio de
ver com os próprios olhos o Novo Mundo e retratar as
impressões e sensações experimentadas
durante a
viagem por meio de desenhos e pinturas atraiu muitos artistas.
Alguns
vieram ao país em expedições
científicas
e, embora às vezes também tenham se dedicado a
produzir
obras de outra natureza, tinham como meta registrar detalhadamente a
fauna e a flora local, a topografia, os tipos humanos, as cidades e
seus costumes etnográficos. Nestes casos, as viagens
apresentavam objetivos naturalistas e científicos e
pretendiam
preservar espécimes animais, vegetais, povos nativos,
cidades,
processos de colonização e
ocupação por
meio da imagem. Em "Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem" Lorelay Kury,
da Fundação Oswaldo Cruz, lembra que “a
viagem é
em geral considerada pela história natural como uma das
etapas
necessárias para a transformação da
natureza em
ciência”.
Entre
os artistas que produziam material para pesquisa havia, por vezes,
uma busca por imagens mais exatas e confiáveis do objeto.
Entretanto, não dá para falar em
“pureza científica”
na produção artística, pois, como
ressalta
Martinez “as obras desses pintores são
fundamentalmente
pinturas. Todas as obras de arte nos dizem algo sobre o artista, sua
função social, os valores artísticos
de sua
época e as condições de
produção”.
"Índia
Tapuia" ou "Índia Tarairiu" Albert Eckhout
(1641),
Coleção Nationalmuseet, Dinamarca
A
impossibilidade de retratar as viagens pelo Brasil de forma objetiva
e neutra também saltam aos olhos quando se lembra como
acontecia a produção dessas imagens. Durante as
expedições, grande parte dos artistas buscava
colher a
maior quantidade possível de
informação visual
em pouco tempo e, por isso, davam preferência ao desenho ou
à
aquarela sobre papel em pequenos formatos. Em outro momento, muitas
vezes já longe do Brasil, como aconteceu com Albert Eckhout
e
Franz Post, as anotações, os desenhos
rápidos e
rascunhos se transformaram em pinturas a óleo sobre tela ou
madeira em um processo de execução que poderia
demorar
vários meses. Nesse processo, uma viagem pelo
imaginário,
pela memória, pelos registros e pelas técnicas
dava
forma às cenas.
Além
disso, Rossato lembra que muitas imagens eram retratadas a partir de
lugares-comuns para se ajustarem ao gosto do público
europeu.
Ao retornarem aos seus países de origem os pintores
adequavam
suas observações aos gostos difundidos entre o
público-alvo de suas obras. Na Europa, por exemplo,
difundia-se uma estética que valorizava o passado, as
paisagens naturais, cultivando-se o gosto pelo pitoresco e pelo
sublime, numa visão estetizada da natureza, no momento em
que
a paisagem do velho Mundo era profundamente transformada devido
à
Revolução Industrial.
Mas
não foram apenas motivações
“científicas”
que trouxeram aqui os artistas. Muitos vieram movidos pelo ideal
romântico, como andarilhos que desejam viver o Novo Mundo
para
pintá-lo. Atravessaram as florestas em busca de um
cenário
magnífico. Entre eles destacam-se Tomas Ender,
João
Mauricio Rugendas, François-Auguste Biard, Henrique Nicolau
Vinet e Jorge Grimm, tendo sido este último de grande
influência para a formação de
geração
de paisagistas brasileiros ao decidir pintar ao ar livre, longe do
ambiente artificial dos ateliês.
Influências
dos viajantes
A
vinda de pintores das mais diversas partes do Velho Mundo para o
Brasil – entre eles russos, alemães, portugueses,
holandeses
e italianos – trouxe novos rumos para as artes no Brasil.
Leci
Maria de Castro Augusto Costa, pesquisadora do Instituto de Artes da
Universidade de Brasília (UnB), destaca o papel relevante da
família Taunay na inserção da pintura
de
paisagem ao universo cultural brasileiro, em
função dos
artistas viajantes, Rugendas e Thomas Ender, que introduziram na
representação paisagística, entre
outros
elementos, “a intenção e
emoção do
artista, noções de
composição na
definição dos grandes espaços,
noção
de ordem no resultado da configuração da cidade,
e de
desordem na ilustração da natureza, e
ênfase nas
horas do dia para observação de suas variantes de
luminosidade”.
Leci
Costa aponta ainda, como resultado de sua pesquisa de mestrado, a
influência de Johan Georg Grimm na pintura de paisagem.
Segundo
ela, antes da chegada de Grimm as aulas da cadeira de paisagem flores
e animais na Academia Imperial de Belas Artes se baseavam na
cópia
de estampas européias, influenciadas pela
estética
neoclássica e com ênfase na técnica. Ao
se tornar
professor da cadeira, Grimm “iniciou um processo de
afastamento dos
modelos pedagógicos do ensino acadêmico, uma
valorização
da pintura ao ar livre e a ênfase à luminosidade
como
elemento de definição de volume”. (Leia
mais no artigo Grupo Grimm: o
paisagismo tropical).
Elaine
Dias, pós-doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP, ressalta também a importância das
exposições
locais, não apenas no Brasil, mas em
outros países da América do Sul. As
exposições
permitiam o contato com as mais diversas técnicas, materiais
e
formas de pensar e produzir as pinturas. “O italiano
Alessandro
Cicarelli e o francês Quinsac de Monvoison, por exemplo,
expuseram suas telas na Academia de Belas Artes e desempenharam um
papel importante no Chile, na fundação da
Academia de
Belas Artes de lá, após passarem pelo
Brasil”, diz. O
alemão Rugendas, autor de obra Voyage Pittoresque dans le
Brésil, membro da expedição de
Langsdorff,
também expôs suas obras na Academia de Belas Artes
brasileira e depois no Chile.
Acervos
espalhados pelo mundo
As
obras dos artistas viajantes estão espalhadas por
várias
coleções, brasileiras e estrangeiras.
“As paisagens
de Franz Post, artista viajante que aqui esteve no século
XVII, estão no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu do
Louvre, National Gallery (Dublin), Masp, Rijksmuseum Amsterdam,
além
de outras coleções na Alemanha e
Holanda”,
exemplifica Elaine Dias. A pesquisador lembra também que
existem coleções conservadas nos museus de
São
Paulo e no Rio de Janeiro, entre as quais a
Coleção
Geyer, de acervo pertencente ao Museu Imperial, em
Petrópolis.
O Museu Castro Maya e o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro também dispõem de exemplares importantes
de
várias obras. Em São Paulo, Dias destaca a
importantíssima Coleção Brasiliana, da
Fundação
Estudar.
Muitas
obras só estão acessíveis em livros,
como as
pinturas do artista russo Louis Choris que podem ser encontradas nas
publicações Ilha
de Santa Catarina: relato de
viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX
e Vues et
paysages des régions équinoxiales recueillis dans
un
voyage autour du monde, disponível na
biblioteca do Instituto
de Estudos Brasileiros da USP. A biblioteca Mário de
Andrade,
em São Paulo, também possui uma cópia
do Voyage
pittoresque autour du monde, publicado em Paris em 1822.
(Leia mais
sobre acervos
de artistas viajantes)
Martinez
lamenta não existir no Brasil um museu dedicado aos modos de
documentação e
interpretação do Novo
Mundo, no qual o trabalho realizado por artistas itinerantes europeus
poderia ser estudado e valorizado. “Isso permitiria aos
interessados, historiadores da arte ou pessoas com diversos
interesses, não apenas ter acesso a documentos esparsos, mas
também a compreender os processos históricos,
econômicos, políticos, culturais e
artísticos aos
quais as obras estão vinculadas”, comenta.
Detalhes
sobre alguns dos artistas viajantes que passaram pelo Brasil:
(1555)
Jean Gardien acompanha Jean de Léry em uma viagem ao Brasil.
A
viajem resultou na publicação de Histoire d'un voyage
fait en la terre du Brésil em 1578.
(1630-1654)
Franz Post, Albert Eckhout, Georg Marcgraf e Zacharias Wagener
acompanham João Mauricio de Nassau-Siegen durante o
período
do domínio holandês no nordeste brasileiro.
(1815-1818)
A expedição “Rurick”,
organizada pelo chanceler do
Império Russo, Romanzov, traz o pintor e
litógrafo
Louis Choris. A passagem pelo país se deu apenas na ilha de
Santa Catarina.
(1816)
A Missão Artística Francesa, chefiada por Joaquim
Lebreton, trouxe em 1816 artistas como os pintores Jean-Baptiste
Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay,
Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny.
Esse grupo organizou, em agosto de 1816, a Escola Real das
Ciências,
Artes e Ofícios, transformada, em 1826, na Imperial Academia
e
Escola de Belas-Artes.
(1817)
A Missão Científica Austríaca chega ao
Brasil
como parte da comitiva da princesa Leopoldina, prometida em casamento
ao príncipe D. Pedro. Entre eles o zoólogo
Johann-Baptiste von Spix e o médico e botânico
Carl
Friedrich Philipp von Martius, ambos alemães, que editam
após
suas viagens grandes obras referentes aos seus estudos, entre eles, o
livro Flora Brasilienses.
Os valiosos desenhos atualmente estão
acessíveis na internet graças ao projeto Flora Brasiliensis On-line, financiado pela
Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp),
Natura Cosméticos e Fundação Vitae de
Apoio à
Cultura, Educação e
Promoção Social. O
austríaco Tomas Ender também fez parte da
comitiva. Nos
três volumes de Viagens
ao Brasil nas Aquarelas de Thomas Ender
é possível encontrar 796 imagens - entre
paisagens
rurais e urbanas, cenas do cotidiano e retratos de pessoas e objetos
de uso caseiro - pintadas por ele entre 1817 e 1818.
(1821-1826)
A escocesa Maria Dundas Graham Callcot, autora do Diário de
uma Viagem ao Brasil publicado em 1823 foi, entre esse ano e 1826
preceptora da jovem princesa D. Maria da Glória, futura
rainha
de Portugal. Nesse período tornou-se amiga íntima
da
imperatriz, Arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria, com
quem
compartilhou seus interesses pelas ciências naturais.
(1824
e 1829) A expedição Langsdorff, que contou com
a presença de grandes artistas viajantes como o
alemão
João Mauricio Rugendas e francês Hercules Florence.
(1882-1884)
Johann Georg Grimm vem para o Brasil e torna-se professor na Academia
de Belas Artes. Foi um dos artistas que levou os alunos para fora dos
ateliês, para terem contato com a natureza, e influenciou os
padrões acadêmicos da pintura das paisagens.
Outros
pintores estiveram no Brasil no século XIX,
também com
objetivos artísticos, como o suíço
Abraham Louis
Buvelot, o francês Henrique Nicolau Vinet, que se fixou no
Rio
de Janeiro, e o francês François-Auguste Biard.
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