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Resenhas
A derrocada do mundo dos espertos
Conhecido como o maior caso de falência dos EUA, o escândalo da Enron causou muito mais do que danos materiais bilionários
Por Fábio Reynol
10/03/2008

Enron – Os mais espertos da sala é um entre os muitos dedos que cutucam  essa gigantesca chaga do sistema capitalista norte-americano, a falência da texana Enron, em 2001, que chegou a ser a sétima maior companhia do país em ativos. É a obra mais famosa a respeito do escândalo e pretende ser, segundo o diretor, apenas um “conto moral”. Mas o assunto não permite ficar restrito apenas aos debates éticos. A Enron não faliu sozinha. Levou consigo a outrora reverenciada Arthur Andersen de auditoria, e afundou respingando lama em bastiões do mercado financeiro como Merrill Lynch, City Group e J.P.Morgan além da própria Casa Branca. Uma rede de cumplicidade foi exposta. A confiabilidade de todo o sistema financeiro da nação mais rica do mundo foi colocada em xeque.

 

O filme documentário nasceu do livro homônimo escrito pelos jornalistas Bethany McLean e Peter Elkind e trouxe para a tela muitos dos entrevistados que ajudaram a construir o livro, entre eles, os próprios autores da obra escrita. Cenas de arquivo e até filmes corporativos ajudam a contar a história da companhia que antes mesmo de completar quinze anos de idade figurou entre as maiores e seculares empresas estadunidenses. A Enron nasceu em 1985 no estado do Texas com a fusão de administradoras de gasodutos e sob a batuta de Ken Lay, um PhD em administração que havia feito fama por sua defesa do livre mercado.

 

Já no começo da história da empresa, a cúpula da Enron já demonstrava aversão às leis. Um de seus altos executivos, Louis J. Borget, foi preso por fraude após perder em uma semana US$95 milhões em operações de alto risco. Ken Lay não só sabia como incentivava tais apostas, segundo o testemunho de um executivo da época. O escândalo, batizado de Vahalla, ficou restrito ao nome de Borget. Lay safou-se e saiu a procurar alguém para ser seu novo braço direito. Encontrou o ambicioso Jeff Skilling. Na cadeira da presidência (CEO) da Enron, Skilling modelou um novo perfil para a empresa. Começou implantando uma duvidosa teoria contábil chamada de marcação a mercado. Com ela, a Enron registrava de antemão os seus lucros potenciais futuros os quais seus próprios executivos julgavam factíveis. Um método subjetivo e completamente aberto à manipulação.

 

Outra contribuição de Skilling foi a difusão de um espírito extremamente agressivo de competição interna e de busca por resultados a qualquer preço. Suas interpretações pessoais sobre o evolucionismo o levaram a adotar um sistema de avaliação que demitia anualmente 15% do total dos empregados, aqueles com pior avaliação. “Pisaríamos no pescoço de quem quer que fosse para cumprir as metas” revelou um ex-funcionário da Enron.

 

Enquanto o clima interno se acirrava em busca de bônus e da sobrevivência, por fora, a Enron era vista como uma empresa que não conhecia a palavra "prejuízo". A "marcação a mercado" lhe permitia divulgar valores que jamais entraram em seus cofres e mascarar perdas exorbitantes. E para onde iam esses números negativos? Para a conta de centenas de empresas laranja criadas apenas para empresar seus livros contábeis para o registro dos rombos da gigante texana. Esse trabalho era feito pelo diretor financeiro, Andy Fastow.

 

Não demorou para que a competição e a hostilidade interna alimentada pela política de Skilling ganhasse corpo e se transformasse em atividades isentas de qualquer escrúpulo. Essa face ficou mais clara quando a Enron entrou para o mercado de distribuição de energia elétrica ao comprar a PGE. A Califórnia seria a sua principal vítima. Em 1996, o então governador do estado, Pete Wilson, havia assinado uma medida jamais vista em nenhum lugar do mundo, a desregulamentação total do mercado de energia. Foi o paraíso para os negociadores da Enron e o inferno para os californianos. Sentados diante de seus painéis, os traders da companhia acompanhavam o preço da eletricidade por região e por estado e direcionavam a energia produzida para os mercados mais valorizados. Mesmo assim, quando a demanda diminuiu muito, os negociadores apelaram para um golpe baixo, desligaram usinas para provocar uma alta de preços. Resultado, blecautes em São Francisco e Los Angeles, mesmo com energia sobrando no estado, e a explosão do valor das contas de luz

 

De mãos atadas por causa da desregulamentação, o então governador da Califórnia, Gray Davis, foi a Washington pedir ajuda ao governo federal. Triste recepção, o diretor da Enron, Ken Lay é amigo íntimo da também texana família Bush. George W. Bush dissimulou e lavou as mãos frente ao suplício do estado e a agência americana reguladora de energia, FERC, comandada por um indicado de Lay, se recusou a tomar providências. A Califórnia só foi salva pelo Senado que, por causa de sua maioria democrata, aprovou um teto para o preço da energia no estado como um ataque ao governo republicano.

 

No filme, os Bush admitem publicamente que Ken Lay foi o principal apoiador da campanha presidencial de George W. Bush. Ao ignorar a crise, além de ajudar o amigo, o presidente americano neutralizou um oponente. O governador Davis era um potencial candidato à Casa Branca, o que atrapalharia seus planos de reeleição. Com a crise, Davis não só perdeu a chance de governar o país como foi desbancado de seu próprio trono. Através de eleições fora de época apelidadas de recall, Davis foi substituído pelo ator Arnold Schwarzenegger no governo da Califórnia.

 

Mesmo com o desligamento deliberado das usinas californianas, a Enron não foi atingida. Ela acabou sendo vítima de seu próprio sistema de perpetuação de fraudes. Cada falcatrua engendrada para esconder um prejuízo tinha de ser ocultada por outra maior gerando uma bola de neve e exigindo contorcionismos contábeis cada vez mais difíceis para Andy Fastow. Ainda assim, os analistas financeiros de Wall Street faziam coro em prol da compra de ações da Enron. Baseados somente na retórica do CEO, Jeff Skilling, e na enorme pressão exercida pelo diretor financeiro e leão-de-chácara, Andy Fastow. Uma das poucas vozes críticas ao suspeito balancete da Enron foi o analista John Olson do banco Merrill Lynch. Olson foi avisado por sua chefia que suas críticas não estavam agradando à Enron, dois dias depois ele foi demitido. Após o episódio, Fastow depositou US$ 50 milhões em investimentos no Merrill Lynch.

 

Todos os analistas de Wall Street, todas as agências de análises de risco e a fiscalização federal americana foram passados para trás por uma jovem repórter da revista Fortune, Bethany McLean. Incumbida de analisar os balancetes da Enron, ela quis entender os números. Tentou falar com o CEO da empresa e foi atendida com hostilidade por Skilling. No dia seguinte, Fastow estava na porta da redação para tentar mostrar de onde vinham os lucros divulgados da Enron. O resultado foi a reportagem: “A Enron não estaria supervalorizada?”, o primeiro alerta sobre a real situação da empresa. O castelo de cartas começava a cair. Meses depois, em agosto de 2001, Jeff Skilling pediu demissão levando consigo US$250 milhões após vender suas ações da Enron. Os empregados e aposentados da empresa não tiveram essa sorte, perderam o emprego em dezembro daquele mesmo ano levando uma rescisão de apenas US$4.500,00 e suas ações que agora valiam poucos centavos. A Enron estava falida.

 

As duas empresas mais próximas das operações da Enron eram a sua auditora, Arthur Andersen, e sua assessora jurídica, o escritório Vinson e Elkins, cada uma recebia cerca de US$ 1 milhão semanal por seus serviços. Para a Andersen, o seu carimbo nos livros da Enron lhe custou a existência. Após uma crise de confiança ela saiu do mercado cerca de seis meses após a bancarrota da cliente. Os 85 mil empregados da Arthur Andersen em todo o mundo acabaram incorporados por outras empresas de auditoria, No Brasil, seus negócios foram assumidos pela Deloitte, nos Estados Unidos, foi fatiada e vários outros escritórios absorveram sua clientela. A prestigiosa companhia de auditoria, tida como ícone de austeridade, amargou seu fim sendo acusada de ter destruído documentos contábeis e processada por obstrução da justiça.

 

Os maiores bancos americanos, entre eles City Group, J.P.Morgan e Merrill Lynch se envolveram em operações que alimentaram o ilusionismo em torno da saúde financeira da Enron. Não por acaso, os analistas desses bancos jamais desestimularam a compra de ações da Enron, pelo contrário, a texana estava sempre no topo das recomendações de compra, O Merril Lynch chegou a fazer um empréstimo mascarado através da falsa compra de quatro navios da Enron na Nigéria. Após três meses, os navios foram “recomprados” pela Enron, com os devidos descontos do empréstimo. A operação levou quatro executivos do banco à prisão, depois que Enron já havia fechado as portas.

 

A alta diretoria da Enron saiu com bonificações milionárias e alegou na justiça que não sabia de nada. Os executivos disseram que apenas confiaram nos pareceres dos auditores e dos advogados. O CEO Jeff Skilling foi o que mais lançou mão da alegação de total ignorância das fraudes. Seu desempenho na comissão de investigação inspirou a criação da Lei Sarbanes-Oxley, ou SOX, em 2002, que responsabiliza diretamente o administrador pelos balanços da empresa. A mesma lei também determinou que a Security and Exchange Commission (SEC), a comissão de valores mobiliários dos EUA, implantasse medidas mais duras de fiscalização. O caso também foi um dos catalisadores de uma revolução no setor contábil mundial. Além de ficarem mais rigorosas, as práticas contábeis começaram a convergir para um padrão único em todo o planeta.

 

Nada, porém, reconstruiu a imagem de confiabilidade e de eficiência que o sistema financeiro norte-americano vendia. Vítima de corvos criados em seus próprios viveiros, os EUA foram surpreendidos pelos frutos de sua cultura de incentivo ao lucro e ao sucesso financeiro a qualquer preço. Se a sétima maior empresa norte-americana avaliada em US$65 bilhões foi à ruína, qualquer outra poderia seguir pelo mesmo caminho. E pior, a economia americana assistiu de camarote o seu potencial de autodestruição, encenado pelos blecautes na Califórnia. A sensação de fragilidade e de desconfiança se espalhou pelo país e por todos os cantos afetados pela maior economia do mundo. Basta lembrar que o índice risco-país, atribuído aos países em desenvolvimento como o Brasil, é elaborado pelo banco J.P.Morgan. Se ele pôde vender seus pareceres a respeito da Enron, como saber se sua nota dada ao Brasil é idônea ou motivada pelos interesses de executivos inescrupulosos?

 

Filme: Enron – os mais espertos da sala

Direção: Alex Gibney

EUA, 2005