10/09/2008
Um vazio tão denso que chega a ser palpável. Esta talvez seja a característica em comum dos filmes A casa vazia (Bin jip, Coréia do Sul, 2004) e Tocando o vazio (Touching the void, Inglaterra, 2003), tão distintos em suas formas e origem – o primeiro é um filme-arte oriental, enquanto o segundo é um documentário ocidental. Ambos os filmes usam o vazio como matéria-prima, fazendo com maestria a relação com a existência humana.
No filme A casa vazia, de Kim Ki-duk, isso fica evidente através da arte. O roteiro apresenta um jovem, Tae-suk, que tem um modo bastante peculiar de viver: sem moradia fixa, ele leva a vida pregando anúncios de um restaurante nas portas de residências, voltando pouco tempo depois para conferir quais não foram retirados – o que pode ser um sinal de que os moradores não estão. Então, invade a casa e confere, através das mensagens nas secretárias eletrônicas, se os moradores estão realmente ausentes. A partir daí, passa não apenas a viver na casa das pessoas ausentes, mas como essas pessoas ausentes: usa suas roupas, lê seus livros, ouve seus CDs. Tae-suk "paga" pela hospitalidade fazendo a limpeza e pequenos reparos na residência. Em uma de suas invasões, porém, ele se depara com a jovem Su-hwa, que sofria agressões do marido e era prisioneira em sua própria casa. Su-hwa passa a acompanhar Tae-suk em suas invasões até que os dois são encontrados pelo marido e levados às autoridades. O final, poético e surpreendente, evidencia a metáfora do filme: não só as casas são vazias, mas as vidas dos personagens também (tanto dos proprietários das casas quanto dos protagonistas invasores), que passam toda a história tentando preencher esse vazio vivendo a vida de outras pessoas.
A cena da invasão da mansão onde mora Su-hwa é particularmente interessante por ser emblemática de todo o filme. Após invadi-la, Tae-suk certifica-se que não há ninguém na casa, percorrendo os vários cômodos, sem se dar conta da presença de Su-hwa, encolhida em um canto de seu quarto. Ela aparece, desta forma, como uma invasora de sua própria casa, uma estranha em sua própria vida. Ao se dar conta da presença de outra pessoa na mansão, Su-hwa passa a seguir Tae-suk pela residência, refazendo seus passos como um fantasma, sem ser percebida pelo invasor. Tae-suk só se dá conta de sua presença quando ela se apresenta a ele.
Interessante também perceber a relação que o filme faz com a fotografia. As casas invadidas estão vazias, mas seus moradores se fazem presentes através das fotos penduradas nas paredes ou espalhadas em porta-retratos pelas residências. É assim que é possível saber que numa das casas mora um lutador de boxe, na outra um fotógrafo, na outra, um casal com uma criança. O casal de invasores também se faz presente através da fotografia: em cada casa que entram, tiram fotos próximas aos retratos dos moradores e de seus objetos de estimação. A foto não apenas dá a falsa sensação de pertencimento a algum lugar aos protagonistas, como também, de certa forma, é uma prova de sua existência – já que vivem como fantasmas nas casas vazias sem deixar marcas que denunciem que algum dia estiveram lá.
O vazio entremeia todo o enredo do filme. As grandes avenidas movimentadas e os enormes prédios de apartamento do centro urbano contrastam com o silêncio e a solidão das personagens, evidenciando uma das marcas da modernidade: o sentir-se só em meio a uma multidão. O que une o casal de protagonistas é a solidão de cada um, e, mesmo juntos, não deixam de serem solitários. A solidão marca o vazio de relações, de entendimento, de contato humano. O silêncio é outra marca que reforça isso: são pouquíssimos os diálogos existentes, e o casal de invasores não troca uma só palavra durante todo o filme. E é aí que se mostra arte de Kim Ki-duk ao fazer o filme usando apenas gestos e olhares de mínima expressividade.
Em Tocando o vazio, de Kevin MacDonald, troca-se a ficção pela realidade, e os grandes e movimentados centros pela vastidão dos montes peruanos. O filme, baseado no livro homônimo escrito por Joe Simpson, conta a história real da escalada trágica do Siula Grande, a 6.300 metros de altura, nos Andes peruanos, em 1985. Uma dupla de alpinistas britânicos – Joe Simpson e Simon Yates – tenta realizar o feito inédito de atingir o cume da montanha por sua face oeste. Apesar de terem conseguido realizar a façanha, é na descida que as coisas começam a se complicar: Joe quebra a perna e, para descer, tem que ser suspenso por uma corda amarrada a seu companheiro. Porém, a descida é longa e logo anoitece. As dificuldades se acumulam e Joe acaba pendurado sobre uma parede da montanha. Sem poder ver ou ouvir o amigo, Simon presume que ele esteja morto e corta a corda que os une. Joe despenca quarenta metros no interior de uma greta de gelo e se arrasta durante dias por mais de vinte quilômetros, até chegar ao acampamento onde Simon e outro companheiro se preparavam para partir, certos de que ele morrera.
O filme tem todos os elementos para se tornar um blockbuster de aventura, mas não foi assim que o diretor decidiu fazer. Ao contrário, trata-se de uma história que se passa essencialmente na cabeça do personagem principal, apenas um ser humano se arrastando durante dias pela neve, gelo e pedras. O filme mescla cenas com atores e depoimentos dos personagens reais e é complementado por um documentário e um making of que mostram o retorno de Joe e Simon ao Siula Grande para as filmagens. Todas as panorâmicas e cenas gerais foram feitas no próprio Siula, com Joe e Simon representando a si mesmos.
O drama psicológico vivido por Joe, enquanto se arrasta sozinho pelo gelo até o acampamento, é o que torna esse filme tão precioso. Sua solidão e seu medo são tão reais e densos como o vazio que o cerca. A vastidão dos Alpes peruanos, branco, frio e infinito, apresenta um vazio tão denso que seria possível tocá-lo – como aponta o próprio nome do filme. É este vazio que faz companhia para o protagonista, e deve ser vencido por ele em sua luta por sobrevivência. Aliás, toda a brutalidade selvagem do Siula Grande faz com que ele surja como um gigante monstro branco que os alpinistas tentam vencer a grande custo. Sua imensidão, ainda mais quando colocada em proporção com os alpinistas tão pequenos que chegam a ser insignificantes, também traz a questão do vazio do homem frente à força da natureza.
Os dois filmes evidenciam a fragilidade da existência e das relações humanas – seja sozinho em meio a uma multidão, em um grande centro urbano, senha abandonado em uma vastidão gelada. De qualquer modo, mostram que o vazio faz parte do mundo e da vida, e, especialmente, da arte.
Filme: A casa vazia (Bin jip)
Direção: Kim Ki-duk
Coréia do Sul, 2004
Filme: Tocando o vazio (Touching the void)
Direção: Kevin MacDonald
Inglaterra, 200
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