A tecnologia está inserida cada vez mais na rotina das pessoas pela crescente facilidade de acesso e expansão das mídias sociais. As redes sociais virtuais oferecidas pelos provedores de serviço de internet como o Facebook, Twitter e Instagram, entre outros, são espaços online que permitem aos indivíduos se expressarem e se conectarem com outros usuários pela internet. A expansão dessas redes aproxima indivíduos que podem se conhecer ou não pessoalmente, devido a amizades ou interesses em comum, compartilhados dentro do espaço virtual. Desta forma, as redes sociais também se tornaram um importante meio para a expressão e o reconhecimento do sofrimento vivenciado durante o luto.
O luto é a consequência da experiência de perda que acontece sempre que nossa vida for afetada pelo término de uma relação significativa. É um processo de elaboração e o seu significado é determinado de modo individual, subjetivo e dentro do contexto de quem vivencia a perda (Bousso, 2011).
O luto é uma experiência privada, por ser vivido por cada um de modo singular, e é público porque a tarefa da construção de significado do luto é feita numa relação entre o indivíduo e a cultura. Um indivíduo procura dar sentido à experiência do luto usando modelos que são influenciados pela cultura, pela crença e pelo apoio familiar.
O processo pelo qual as pessoas constroem significado ao seu mundo inclui as interações sociais. Quando a perda acontece na vida da pessoa, ela não só pensa nisso, mas fala disso com os outros. Assim, o luto não acontece só dentro da pessoa, mas nas interações pessoais.
Embora a dor da perda seja universal, a cultura ocidental contemporânea evidencia pouco espaço e liberdade para se falar sobre o luto no mundo offline. Existe um constrangimento quando o enlutado inicia uma narrativa sobre a sua perda, sendo imediatamente calado pelo contexto, o que gera um sentimento de solidão interna.
Na nossa cultura, em que rituais e mitos de épocas passadas caíram em desuso, o espaço intersubjetivo é caracterizado pela interação informal, em grande medida visando comunicar significados compartilhados. As redes sociais têm se mostrado como um espaço no qual o enlutado pode dar voz a seu sofrimento. A expressão do luto na internet em espaços como as redes sociais e os blogs vem sendo observada com grande intensidade e frequência, sendo um desafio compreender como ocorre o advento do luto online, do luto interativo ou do compartilhamento do luto na internet.
Diversos serviços online têm acompanhado essa tendência. Hoje, as pessoas podem acompanhar funerais de qualquer lugar do mundo conectados à internet; visualizar comunidades que são “cemitérios virtuais”, como a página do Facebook “Profiles de Gente Morta”, destinada para postagens sobre pessoas que morreram; plataformas como DeadSocial™ e “If I die”, que permitem que as pessoas criem mensagens no Facebook e no Twitter para serem deixadas como legados, postumamente à morte. Essas ferramentas são exemplos de como as redes sociais virtuais passaram naturalmente a incorporar as questões de morte e luto nesse espaço.
As pesquisas realizadas pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas e Luto (Nippel), da Universidade de São Paulo (USP), têm mostrado que as normas sociais relacionadas à expressão da perda na internet estão claramente em evolução e precisamos compreender essa nova maneira de viver o luto. Na busca de reunir forças para superar o sofrimento da sua perda, o enlutado utiliza-se da internet e encontra o reconhecimento do seu luto nas interações online. Isso não significa que a dor é menor ou que a internet faz bem a todos os enlutados, mas pode atenuar a dor e ajudar na elaboração do sofrimento causado pela perda. Depende do uso e do significado que o usuário dá ao mundo virtual.
Alguns participantes das nossas pesquisas referem ter encontrado apoio no Facebook com a morte de um ente querido. Um dos participantes da nossa pesquisa refere: “Na vida offline, todos tratam a nossa dor de uma forma muito fria. Ficam incomodados quando começamos a falar e criam um distanciamento para o assunto. Já no mundo online, a dor não pode ser calada! Leia quem quiser… O Facebook me ajudou muito!”.
O YouTube, site que permite o compartilhamento de vídeos em formato digital, coleciona vídeos de tributos dedicados a pessoas falecidas; o livro de visitas é um sistema que possibilita visitantes deixarem mensagens e ter o feedback delas, com o mesmo objetivo dos livros em papel comuns em funerais. Essas ferramentas, assim como o Facebook, os blogs e o Instagram, têm permitido não só a conversa sobre a perda em um fórum bastante público, mas também uma nova maneira de manter vivas as lembranças da pessoa que morreu.
O Facebook oferece uma vasta lista de ferramentas e aplicativos que permitem aos usuários comunicar e partilhar informações, enviar mensagens, adicionar fotografias, vídeos, fazer comentários, criar páginas e comunidades sobre um tema específico, integrando com outros websites e em diversos dispositivos móveis. Ainda, permite o controle de privacidade, ao selecionar qual informação e com quem deseja compartilhar.
É importante ressaltar que os serviços oferecidos através da internet são baseados e controlados pelos termos técnicos e legais impostos pelo provedor de serviços. Ao acessar e interagir com as plataformas – neste caso, as redes sociais – oferecidas pelos provedores de serviços de internet, o usuário concorda com os Termos e Condições de Uso e a Política de Privacidade (denominados, em conjunto, como “TOS”), que preveem todas as condições contratuais da relação jurídica tida entre o provedor e o usuário. As condições contratuais e legais aplicáveis a essa relação são de extrema relevância à manifestação do luto no ambiente virtual, na medida em que o luto suscita considerações importantes sobre privacidade e a proteção de dados.
Há a estimativa de que cerca de 375 mil usuários do Facebook morrem anualmente e a discussão sobre o que fazer com a “existência” virtual de cada um ainda está no começo e promete envolver não apenas os provedores de serviços, mas também autoridades, governantes e profissionais especializados. Então, o que fazer com o legado digital de milhares de usuários falecidos?
Atualmente, os TOS dos grandes provedores de serviços possuem disposições expressas sobre a forma como serão tratados os perfis de indivíduos falecidos. O Facebook, por exemplo, reconhecendo a crescente manifestação do luto no ambiente virtual, atualizou seu TOS para oferecer duas possibilidades aos entes do falecido que já possua uma conta na plataforma: (i) a remoção completa do perfil do falecido; ou (ii) a transformação do perfil do falecido em um “memorial”. A transformação do perfil em memorial é uma ferramenta importante para evitar que o perfil do falecido continue aparecendo em publicações patrocinadas ou públicas, como o lembrete de aniversário ou a recomendação de amizade.
Embora a ferramenta do Facebook seja familiar a muitas pessoas, as políticas dos usuários para os falecidos ainda não são. Assim, não optar por uma das possibilidades oferecidas pelo Facebook pode acarretar em situações constrangedoras, conforme mostram os resultados dos trabalhos realizados no Nippel. As pessoas expressam um estranhamento ao visualizar notificações geradas automaticamente pelo Facebook que, por exemplo, podem sugerir alguém que já morreu como contato ou mesmo apresentar “postagens fantasmas” como se o falecido estivesse tendo acesso à sua página, conforme mencionado por um dos participantes: “Um dia eu estava no Facebook e do nada apareceu uma notificação dizendo que ela falecida tinha curtido uma postagem. Eu parei e falei: Nossa! ... aquilo pareceu um fantasma pra mim!”
Outro desconforto gerado pelo Facebook para alguns usuários é a ferramenta “curtir” que é completamente discordante quando o assunto é a morte. “É muito estranho a pessoa publicar que seu pai morreu e você ver que 500 pessoas curtiram isso”. Por outro lado, entre os que postam a mensagem sobre o luto, essa ferramenta tem como significado demonstrar empatia e há uma expectativa pelo número de curtidas e comentários como forma de conforto: “A postagem de ontem já teve mais de 6.700 visualizações.... Louvado seja Deus por alguém tão querido e que impactou a vida de tantos!”.
Não obstante se tratar de uma iniciativa louvável, a proposta do Facebook é contraditória à forma com a qual ele trata os dados dos seus usuários. Os TOS dispõem expressamente que a relação jurídica entre a plataforma e o usuário não confere direitos a terceiros, de modo que um familiar e/ou amigo do falecido não deveria poder escolher o que fazer com o perfil do falecido. Nesse sentido, os TOS do Yahoo preveem que a conta do usuário é intransferível e, portanto, ante a comprovação da morte, a conta será encerrada e os seus dados serão apagados.
Apesar dos desafios, a tecnologia apresenta uma nova maneira de expressar o luto e podemos reconhecer nessa discussão não só a inevitabilidade, mas também a beleza. Por meio da tecnologia, é possível oferecer memoriais para a pessoa que morreu, livre das restrições, dos custos e de quaisquer regras ou regulamentos. Assim, transcende os limites do espaço e do tempo. A internet permite um acesso imediato. Podemos visitar o site sempre que quisermos, sozinhos ou com outras pessoas. É uma ferramenta que habilita recordar, compartilhar e transmitir histórias, até mesmo para as gerações que não conhecemos, sem precisar marcar data e hora. Embora executada de uma nova maneira, preenche uma necessidade antiga de narrarmos as nossas histórias e mantê-las na memória.
Outro espaço virtual que pode ser utilizado para narrativas de temas como a morte e o luto, garantindo a expressão livre dos significados atribuídos à perda é o blog, que consiste num diário virtual em que pessoas com interesse em comum podem comentar as postagens e compartilhar ideias. Hoje, podemos encontrar inúmeros blogs com histórias de perdas significativas, tais como filho, marido e outros membros familiares. A motivação para a criação desses sites normalmente é descrita pelo autor: “Criei esse blog para homenagear o meu anjo de luz...”.
O mundo online oferece novas dimensões também para os rituais funerários. Missas, cultos e velórios podem ser acompanhados online, permitindo que pessoas que estejam distantes do local possam também participar, como refere outro usuário: “Impossível não se emocionar ouvindo...”. Pode parecer bizarro, mas isso tem se mostrado como uma opção que permite a ampliação da rede de suporte social.
Na verdade, novos significados são possíveis na relação com o falecido, já que a internet permite ao enlutado manter uma outra forma de vínculo com a pessoa que morreu. É importante salientar que isso não pode implicar no abandono da vida offline como o trabalho e as relações sociais, mas acessar o perfil para matar as saudades é normal.
Em uma das pesquisas do Nippel que buscou conhecer a utilização da rede social Facebook pela morte de um ente querido e analisar os compartilhamentos dos conteúdos no perfil do falecido, foram descritos comportamentos dos usuários que impulsionam a manifestação de sentimentos e as reações frente à morte. Alguns minutos após o anúncio do falecimento por um familiar, as manifestações se iniciaram por amigos para expressar reações emocionais e cognitivas à morte (“Como assim???” “Lamentei muito!”);para manter-se conectado ao falecido (“Vocês estão em nossos corações, agora mais do que nunca, prova disto é que estamos aqui em seu Faceboock .... tenham muita luz, onde estiverem...”);para expressar condolências aos familiares (“Meus sinceros sentimentos...” “Minhas condolências à família”);e paradivulgar homenagens, eventos e agradecimentos (“Gostaria de agradecer a emocionante homenagem … ao meu pai...” “Convidamos a todos para um Shabat Especial em memória ao X”) (Bousso et al, 2014).
As categorias desse estudo representam alguns exemplos do conteúdo das postagens que podem ser feitas no perfil do falecido ou mesmo no próprio perfil do usuário, falando sobre o falecido, sobre a circunstância da morte, sobre significados e representações por meio de postagens, vídeos e imagens.
Notícias de repercussão nacional ou mundial também são divulgadas, comentadas e compartilhadas no Facebook por diversos usuários. Nesse caso, chama a atenção o grande número de postagens por pessoas que não conhecem o falecido, mas que se expressam no perfil do mesmo. Recentemente, o perfil de um jovem, vítima de um trágico acidente envolvendo o ônibus de uma excursão promovida por sua escola e uma carreta, virou notícia pelo conteúdo da postagem que o adolescente havia publicado no dia anterior à sua morte, que tinha a seguinte frase: “esta vida é uma viagem pena eu estar só de passagem”,que foi comentada pelos usuários da rede como uma premonição (Terra, 2014). Horas depois do acidente, as mensagens no perfil demonstraram reações de diversos amigos: “Passagem tão rápida, lamentável, descanse em paz querido”; “Lamentável como um menino tão precioso como você teve uma passagem tão rápida. É muito injusto também!”.
Outros comentários foram feitos por pessoas que não conheciam o falecido: “Não o conhecia pessoalmente, todavia creio que era um rapaz legal! Que Deus conforte os familiares e amigos deste garoto!”; “Não conhecia o menino mas só de ver seu face era um cara muito boa praça. Vá com DEUS. Nós vamos continuar a caminhada.”; “Fiquei sabendo desta tragédia ao meio-dia de ontem. Não conhecia o T. Mesmo assim, fiquei muito triste e chorei por todos cujas vidas pereceram neste trágico acidente. Como ele mesmo disse, estamos aqui de passagem nessa viagem que chamamos de vida. Para alguns, longa. Para outros, curta. O que mais entristece é saber que pessoas tão jovens e que tinham um mundo pela frente fizeram a passagem curta. Ninguém deveria partir tão cedo assim. T. espero que você esteja em um lugar bom agora, com muita paz e tranquilidade. E aos teus familiares, meu desejo de que tenham forças para superar a tua partida tão precoce. Que Deus ilumine a todos!”
Uma importante característica da conexão virtual nas questões que envolvem o luto é a concomitante, dinâmica e incoercível lógica do tempo em que as manifestações são compartilhadas, associadas à abrangência de pessoas que são “envolvidas” no evento da morte. As reações frente a essa dinâmica são diversas e envolvem tanto um aspecto social, espontâneo e convencional, manifestado por meio de frases, imagens ou vídeos, quanto um aspecto pessoal e subjetivo que não é passível de ser compartilhado ou controlado. Esse último contempla tanto a reação frente à notícia ou causa da morte, quanto o contato com comentários e expressões arbitrárias e plurais de outros usuários.
Neste artigo, descrevemos uma série de fatores do mundo digital e do impacto nas questões que envolvem a morte e o luto enquanto um “espaço” que permite o suporte social, a expressão de sentimentos relacionados à perda e à conexão do enlutado ao falecido. Vimos que, cada vez mais, os provedores de serviços de internet precisarão se atentar às consequências e riscos relacionados à manifestação do luto na internet e à proteção dos direitos do falecido. Em vista disso, é necessário compreender que a ética exigida no ambiente offline deve ser mantida nas relações sociais existentes no mundo online.
A tecnologia tem se mostrado um recurso importante para conectar pessoas e permitir que o enlutado sinta-se menos solitário e, assim, tenha seu luto reconhecido e normalizado. Mas ao mesmo tempo em que legitima o luto e o enlutado, para algumas pessoas expressá-lo em um ambiente público virtual, também pode representar a banalização de particularidades da morte, minimizando a importância dos sentimentos envolvidos no próprio luto.
Uma nova forma de luto é viabilizada pela tecnologia que se manifesta online com características tão diversas e subjetivas quanto ocorre no mundo offline, exigindo também os mesmos cuidados. Isso porque a questão do luto envolve indivíduos vulneráveis e que vivenciam emoções intensas. O ciberespaço criou recursos que permitem ao enlutado expressar-se de diversas maneiras, mas que ao mesmo tempo provoca diversos sentimentos intensos e imprevisíveis que são experimentados ao extremo, tais como tristeza, mágoa, arrependimento, raiva e alegria.
Regina Szylit Bousso é professora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP).
Maiara Rodrigues dos Santos é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP.
Fernando Bousso é advogado associado do Koury Lopes Advogados e mestre em direito da tecnologia da informação e das comunicações pela Queen Mary, University of London.
Regis Siqueira Ramos é psicólogo especialista em intervenção em luto, terapia cognitiva e psicologia hospitalar.
Referências
Bousso, R.S. “A complexidade e a simplicidade da experiência do luto”. Acta paul. enferm. online. 2011, vol.24, n.3, pp. VII-VIII.
Bousso, R.S.; Ramos, D.; Frizzo, H.C.F.; Santos, M.R. & Bousso, F. “Facebook: um novo locus para a manifestação de uma perda significativa”. Psico USP. 2014, vol.25, n.2, pp.172-79.
Terra Notícias homepage na internet. São Paulo: Cidades atualizado em 30 de outubro de 2014; acesso em 03 de novembro de 2014. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/pena-estar-so-de-passagem-postou-aluno-morto-em-acidente,8da61df5b5069410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html
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