Um adolescente de classe média, hoje na faixa dos 15
anos de idade, nasceu num período em que o Google e a internet já faziam parte
da vida cotidiana de muitas pessoas do seu universo de convívio, tanto no
aspecto social como educacional. Muito provavelmente, a Wikipedia é a única
enciclopédia que ele conhece e usa para fazer as pesquisas da escola e, com
mais certeza ainda, esse adolescente maneja com destreza qualquer tocador de
mp3, celular, smartphone, tablet ou leitor de e-book e já tentou ensinar seus
professores, pais ou avós a usar o controle remoto da TV de LED ou mesmo a
criar um perfil no Facebook.
Estamos falando do que sociólogos e publicitários classificam
como nativos digitais, ou geração Z: pessoas nascidas a partir da segunda
metade da década de 1990. Esses indivíduos, segundo alguns especialistas,
seriam totalmente familiarizados com as últimas tecnologias digitais e não
encontrariam dificuldade alguma em aprender a lidar com as novidades que
aparecem praticamente todos os dias nesse mercado, diferentemente dos membros
das gerações que os antecedem. O “Z” vem de “zapear”, ou seja, trocar os canais
da TV de maneira rápida e constante com um controle remoto, em busca de algo
que seja interessante de ver ou ouvir ou, ainda, por hábito. “Zap”, do inglês,
significa “fazer algo muito rapidamente” e também “energia” ou ”entusiasmo”.
É comum ouvir que os jovens de hoje dão a impressão de
terem nascido com um chip inserido no cérebro, já que parecem assimilar e fazer
uso das novas tecnologias digitais de modo intuitivo, com muito mais aptidão do
que os adultos. Surge, então, a seguinte questão: seriam os nativos digitais,
portanto, mais inteligentes, ágeis, independentes e autodidatas que seus
professores, pais ou qualquer outro membro das gerações anteriores?
Para Marc Prensky, especialista em tecnologia e
educação pela Universidade de Yale e autor de vários livros sobre o assunto,
entre eles Ensinando nativos digitais
(2010), as crianças de hoje já nascem num mundo caracterizado pelas tecnologias
e mídias digitais e teriam, portanto, seu perfil cognitivo (de aprendizado)
alterado – essas “novas crianças”, segundo o especialista, teriam estruturas
cerebrais diferentes e seriam mais rápidas, capazes de realizar muitas tarefas
ao mesmo tempo e mais autorais do que as das gerações anteriores. Para ele, há
um claro “gap geracional” entre pais ou professores e alunos, no que se refere
ao modo como utilizam as novas tecnologias digitais e o que elas causam em seus
cérebros. As ideias de Prensky, no entanto, não desfrutam de unânimidade.
Um
termo, muitas interpretações
Mônica Fantin, coordenadora do Núcleo Infância,
Comunicação, Cultura e Arte, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
uma das autoras do artigo “Crianças na era digital:
desafios da comunicação e da educação”, tem reservas em relação ao uso do termo
“nativo digital”. Ela afirma que o argumento de Prensky
levaria a pensar que as mídias digitais estão produzindo transformações nas “novas
crianças” e diz que tal questão lhe parece ser bem mais complexa. “Em
primeiro lugar, diversos pesquisadores discutem o uso desse termo e argumentam
que não é possível isolar a tecnologia e sua capacidade de ‘produzir efeitos
sobre as pessoas’ de outros elementos do contexto sociocultural que também
interferem nessa relação. O neurocientista Edoardo Boncinelli afirma que o
cérebro do homem é o mesmo há 120.000 anos e que a cultura digital é muito
recente para afirmarmos que ela realmente esteja produzindo tais mudanças. Já
para a neurocientista cognitivista Maryanne Wolf, há um processo de mudança de
paradigma em curso que pode estar reorganizando o cérebro das novas gerações a
partir de novos parâmetros, o que a leva a perguntar sobre perdas e ganhos que
o amanhã reserva às crianças e aos jovens, mas que hoje ainda não é possível
saber”, pondera.
Fantin também analisa o aspecto da distância entre
crianças e adultos no que se refere ao uso social das tecnologias digitais. Ela
diz concordar com a tese do pesquisador italiano Pier Cesare Rivoltella,
estudioso da relação entre mídia e educação, o qual afirma que o “gap
geracional” identificado por Prensky está cada vez mais sutil, porque
a tecnologia está se tornando mais presente nos espaços sociais, fato que
facilitaria seu uso mesmo pelos adultos que possuem certa resistência. Ela
afirma que os resultados das pesquisas de Rivoltella mostram que o uso das
tecnologias tem aproximado e não distanciado adultos e crianças. “Ele cita o
exemplo do uso do celular e das redes sociais configurando-se como espaço de
negociação, cumplicidade e compartilhamento de interesses que envolvem e acabam
por aproximar diferentes gerações”.
De acordo com José Armando Valente, coordenador associado do Núcleo de Informática
Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, o termo “nativos digitais” é interessante, na
medida em que marca um conceito para caracterizar as criancas que são bastante familiarizadas
com as tecnologias digitais. Entretanto, Valente também não diria que os
membros da geração Z pensam ou aprendem de uma forma diferente. “Aprender para
valer significa construir conhecimento e isso implica em significar e trabalhar
a informação acessada. O que muda nessa geração é a maneira como ela tem acesso
à informação, no sentido de ter mais facilidade para encontrá-la, por
intermédio da tecnologia, e de usar a tecnologia para acessar uma rede de
pessoas”.
O
pesquisador da Unicamp afirma, porém, que é questionável a ideia de que a
facilidade no acesso à informação esteja produzindo crianças com maior
capacidade de construir conhecimento. Valente lembra que alguns autores também
classificam a geração Z de “geração panqueca” ou “crepe”: espalhada e fina; cujos
membros estão em todos os lugares, porém não conseguem manter a atenção nem se
aprofundar em nada.
Diferentes
estilos de atenção e aprendizagem
Em relação à capacidade de concentração da nova geração,
Fantin, da UFSC, lembra que as tecnologias contribuem para entendermos que há
diferentes estilos cognitivos e diversos modos de aprender e prestar atenção.
Ela diz que a multimidialidade (transmissão da comunicação através de vários
meios – textual, gráfico, sonoro e vídeo) desenvolve diversas habilidades de
navegação transmidiática (de um meio para outro), que são diferentes das
competências de argumentação e abstração exigidas pela habilidade de leitura e
escrita.
“As crianças multitarefa, que estão habituadas a controlar
diversas mídias ao mesmo tempo (navegar na internet, enviar e receber mensagens
pelo celular, ouvir músicas no tocador de mp3), desenvolvem um estilo de
atenção muito diferente de quem cresceu em ambiente alfabético e está
acostumado a focar sua atenção no texto escrito e habituado a raciocinar em
termos de um objeto preciso e específico, tendo uma atenção mais focalizada”,
explica. Fantin também afirma que as crianças multitarefa controlam diversos
aspectos e elementos perceptivos e, portanto, sua atenção é distribuída e
periférica, ou seja, menos focada no objeto. Ela diz que muitas vezes esse
estilo e ritmo de atenção podem ser mal interpretados e confundidos com hiperatividade,
termo bastante comum atualmente, usado de maneira muito generalizada para
classificar o comportamento de crianças e adolescentes.
“Diante disso, penso que o termo ‘nativo digital’, ao invés de
fazer referência aos estilos diversos de aprendizagem, pode reforçar ainda mais
as distâncias entre adultos e crianças. Afinal, se elas são nativas e nós não,
em alguns casos parece mais fácil atribuir-lhes a responsabilidade do motivo de
não conseguirmos ensiná-las, argumentando que elas não são capazes de ter uma
atenção focalizada e que elas não sabem raciocinar como nós, porque cresceram
com multimídia e só sabem raciocinar sobre imagens e não mais sobre conceitos.
Portanto, mais que uma diferença em termos de competência técnica, importa
entender que há diferentes estilos de atenção e de aprendizagem, sem
responsabilizar ninguém, e que isso não significa que um não possa aprender com
o outro sobre outros jeitos de aprender”, esclarece Fantin.
Para Flávia Amaral Rezende, doutora em artes visuais pela
Unicamp, coordenadora de Novas Tecnologias nas Faculdades Atibaia e consultora
em educação a distância, pensar e aprender são, antes de mais nada, processos
culturais que dependem do contexto social e dos instrumentos disponíveis.
Rezende afirma que a construção de sentido e significado se dá através da
interação e do diálogo com as pessoas e com as coisas em torno, através de
diferentes experiências e da reflexão sobre elas.
“As crianças que têm acesso a tecnologias diversas (diferentes do lápis, do caderno
e de livros de papel) terão experiências diferentes de conhecer. Sabemos, por
estudos realizados, que a possibilidade de obter informação e representar o
pensamento de forma não linear se aproxima muito da atividade mental natural
(simultaneamente, podemos fazer diferentes conexões neurais). Pensamos em rede e
não em linha. Construímos uma lógica própria”, explica. “A grande contribuição
das novas tecnologias é que elas permitem o registro de nossas representações,
seja por escrito, visual ou sonoramente e, a partir desse registro, podemos
refletir sobre o rastro da experiência do processo de aprendizagem. Dessa
maneira, a aprendizagem deixa de ser mecânica e reprodutora e passa a ser uma
aprendizagem consciente e ativa. Esse processo deixa de ser apenas individual e
pode vir a ser um processo mais rico, porque coletivo, através das tecnologias
de comunicação em rede, via internet”, avalia.
Segundo Rezende, é importante ressaltar que a possibilidade de se ter um
processo de construção coletiva do conhecimento vale tanto para a aprendizagem
quanto para o ensino, pois muda também a forma de ensinar do professor, levando
ao que ela chama de “ensinagem”, uma mistura de ensino com aprendizagem.
Jogar
videogame ajuda a construir conhecimento?
Tanto Rezende quanto Valente concordam que os games são importantes como
meio para criar situações onde o jogador tenha que tomar decisões e desenvolver
certas competências, como a de seleção de alternativas, colocando em prática o
conhecimento e as estratégias de que dispõe. Mas, como diz Valente, isso, por
si só, não é suficiente para construir conhecimento.
A consultora em educação a distância, por sua vez, lembra que os tais bônus
dos games, que alimentam o interesse, pertencem a uma lógica de aprendizagem
comportamentalista, e a reflexão – parte fundamental do desenvolvimento da
autonomia do pensamento – pode ser relegada a um segundo plano. “Não sou contra
os games, desde que a narrativa agregue valor ao processo de desenvolvimento da
criança – cognitivo e ético”, diz Rezende.
Valente
acrescenta que o jogador pode refletir sobre algo que fez e causou um bom ou
mal resultado e isso talvez possa levar a algum aprendizado. “Porém, o game
seria mais eficiente se, após o término do jogo, alguém mais experiente, um
especialista, pudesse retomar as jogadas – certas ou erradas – e provocar a reflexão e, com isso, criar
mecanismos para a construção de conhecimento”, opina.
Fantin afirma que pela via do entretenimento, certos jogos permitem a
resolução de desafios no plano simbólico e que isso pode estimular novos meios
de expressão e interação das crianças entre si e com a cultura mais ampla, mas
lembra que, para potencializar tais aspectos, “mais uma vez, o papel da
mediação educativa parece ser fundamental”, conclui.
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