A agroecologia é considerada, neste artigo,
como um campo científico, uma prática agrícola e um movimento social, tal como
é entendida por autores como Toledo (2016, Wezel at al, (2009), Altieri (2012)
e Gliessman (2002). No campo agroecológico brasileiro surgiram, recentemente, conflitos
que apontam para uma reprodução da desigualdade de gênero, entendida como
funcionamento social da categoria gênero enquanto mecanismo que permite e
legitima discriminações, opressões e desigualdade baseadas na diferenciação
entre homens e mulheres, de forma desfavorável às mulheres.
A partir de leituras, pesquisas de campo -
Jesus (2014a e 2014b) e Tait (2015) - e do acompanhamento de debates e eventos
nos últimos 10 anos, constatamos que muitos discursos fazem circular a ideia de
que “agroecologia não deveria preocupar-se com questões de gênero”. Neste
artigo propomos desenvolver argumentos e apresentar episódios e experiências no
sentido de desconstruir esses discursos.
A agroecologia e, de forma mais ampla, a
agricultura familiar, nunca prescindiram da participação das mulheres. A
participação feminina sempre foi significativa dentro da organização produtiva
agrícola das unidades familiares camponesas. No entanto, apenas há pouco mais
de duas décadas o trabalho feminino na agricultura familiar e também dentro da
agroecologia tem sido considerado de acordo com sua real contribuição. O gênero
começa a ser considerado nos estudos rurais apenas depois da década de 1960 e a
ser mais amplamente utilizado apenas nos anos 80-90.
Durante as discussões realizadas na Cúpula dos
Povos em 2012, as atividades e os documentos finais colocam o feminismo, a
agroecologia e a soberania alimentar como os três eixos centrais para construir “um novo paradigma de
sustentabilidade para a vida humana(1)”. No final de 2013 foi criado, no Chile,
o Instituto de Agroecologia das Mulheres do Campo (Iala) pela Associação
Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (Anamuri), que reúne cerca de 10 mil
mulheres camponesas e indígenas no país.
O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) do
Brasil, um dos mais importantes movimentos de mulheres, possui diretrizes sobre
o seu entendimento do “projeto popular de agricultura camponesa”. Nessas
publicações são reforçadas as relações entre agroecologia, igualdade de gênero
e solidariedade. A necessidade de maior participação feminina na construção do
processo agroecológico não é colocada apenas como uma questão de paridade, mas,
principalmente, de reconhecimento da singularidade dessa participação e de sua
importância para a segurança alimentar e soberania alimentar, portanto, para subsistência,
diversidade agrícola e nutricional e produção de alimentos livres de
contaminação.
Segundo dados da FAO(2) (2012), o percentual de
mulheres agricultoras no Brasil é de apenas 13% em relação ao universo total de
trabalhadores agrícolas. Para a entidade, essa participação tem crescido nos
últimos anos no Brasil e em toda América Latina. Já para a Via Campesina(3), as
mulheres camponesas produzem de 70% a 80% dos alimentos consumidos pelas
famílias mais pobres no mundo. Outros estudos no Brasil no âmbito de políticas
específicas voltadas às mulheres agricultoras já apontam uma
participação de 37% a 51% em alguns segmentos da agricultura familiar.
Alguns elementos permitem pensar que os
processos de invisibilização do trabalho feminino influenciam os resultados das
pesquisas quantitativas e os levantamentos estatísticos e, consequentemente, no
direcionamento das políticas públicas. Andrea Butto e Isolda Dantas (2011)
afirmam que, até a década passada, no Brasil, as “políticas(4) de
desenvolvimento rural não reconheciam o trabalho das mulheres e o
caracterizavam como mera ajuda aos homens”, o que contribui para a
naturalização das desigualdades de gênero e para a dependência das mulheres.
A ausência das mulheres nas pesquisas e
estatísticas poderia estar relacionada também com a própria desigualdade em
termos de gênero nas áreas de estudos e pesquisas agrárias e nas instituições prestadoras
de serviços de assistência técnica e extensão rural (ATER). Segundo os dados do
Ministério do Desenvolvimento Agrário publicados na coletânea
Estudio comparativo regional de
asistencia técnica y extensión rural con perspectiva de género (Ferro, 2014),
apenas 30% dos trabalhadores das ATERs brasileiras são mulheres e, assim mesmo,
a presença feminina é maior em áreas como assistência social e ciências sociais
e menores em engenharias e nas áreas tecnológicas.
Essa situação tem sido denunciada (5) e
enfrentada por teóricas, militantes, integrantes dos movimentos de mulheres
camponesas e de movimentos agroecológicos. Durante o 3º Encontro Nacional de
Agroecologia (ENA), realizado em maio de 2014 em Juazeiro (Bahia), que reuniu
cerca de 2.100 pessoas, a questão feminista ou de gênero ganhou destaque durante
todo o encontro. Nesta edição, pela primeira vez foi determinado pela
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) que 70% dos presentes fossem
agricultores e, desse percentual, que pelo menos metade fosse do sexo feminino.
Nos últimos anos, no Brasil, foram realizadas inúmeras ações e organizadas
diversas publicações (6) direcionadas a dar visibilidade à importância das
mulheres enquanto promotoras da agroecologia.
Outra experiência significativa foi a criação
de um método para dimensionar, divulgar e valorizar o trabalho das mulheres
rurais - a Caderneta Agroecológica (CA). Este instrumento foi criado pelo Grupo
de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) para auxiliar no gerenciamento da
produção das unidades de produção familiar. Neste “caderno de campo”, as
mulheres passaram a anotar todas as saídas, entradas, trocas e vendas,
enfim, anotar de forma sistemática tudo que é produzido por elas em sua chácara ou unidade
produtiva familiar. A Caderneta se transformou num poderoso instrumento
para visibilização do aporte econômico das mulheres, mas, muito mais que isso,
também mostrou o aporte para a sustentabilidade da vida, para o cuidado com a
alimentação e com o meio ambiente e manutenção da
biodiversidade (Pacheco, 2009).
A partir de janeiro de 2014, a equipe
responsável pelo monitoramento do projeto com a Caderneta Agroecológica com 64
agricultoras em 14 municípios da Zona da Mata, promoveu coleta de informações
(influindo realização de entrevistas e visitas de campo) e análise de dados: “foi
possível compor um quadro revelador da efetiva contribuição feminina na gestão
dos agroecossistemas” (Lopes Neto el al,
2015).
Entre os “dados reveladores” os responsáveis
pela sistematização dos resultados apontam: 1) notável diversidade biológica
dos quintais, graças ao refinado trabalho de manejo realizado pelas mulheres
(142 espécies de hortaliças, plantas medicinais, flores, árvores frutíferas e
pequenos animais); 2) emprego de um conjunto de práticas agroecológicas (como
cobertura morta, adubação orgânica, caldas caseiras, homeopatia aplicada à
família e também à agricultura, uso responsável das fontes de energia e rotação
de culturas); 3) significativa produção para o autoconsumo, uma vez que a maior
parte da alimentação das famílias provém dos quintais, sendo que, em média, 70%
de todos os produtos consumidos mensalmente são cultivados pelas mulheres.
Essa série de episódios, publicações,
manifestações e experiências recentes fortalecem o entendimento de que a
agroecologia não pode cumprir seus propósitos como teoria e modelo para a ação
emancipatória se não incorporar as questões da subordinação das mulheres
rurais, agricultoras, camponesas (Aguiar, Siliprandi e Pacheco, 2009;
Siliprandi 2015; Nobre 2015; Pacheco, 2009).
Também dão mais eco ao refrão político adotado
pelas mulheres do movimento agroecológico: “Sem feminismo não há agroecologia!”.
Outras inúmeras experiências de organização das mulheres rurais em coletivos e
movimentos sociais autônomos de mulheres no Brasil (Tait, 2015 e Siliprandi,
2015) vêm mostrando a relevância das mulheres na construção e manutenção de
alternativas ao modelo convencional de agricultura.
Quando as mulheres extrapolam o espaço familiar
e começam uma organização política em coletivos, organizações e movimentos
sociais, em busca de visibilidade e valorização, levam para esses espaços
públicos outras lógicas de cuidado com a vida humana e não humana que parecem
extremamente relevantes para colocar em prática a sustentabilidade da vida e
fazer frente aos desafios socioambientais e para produção de alimentos nas sociedades
contemporâneas.
Márcia
Maria Tait Lima é doutora em política científica e tecnológica
(DPCT/Unicamp). Exerce
atividades de pesquisa no programa de pós-graduação DPCT/Unicamp e
pós-doutorado no Departamento de Filosofia da USP. Contato: marcia.tait@gmail.com
Vanessa
Brito de Jesus é doutora em política científica e tecnológica
(DPCT/Uunicamp). Estagiária de pesquisa no Laboratório de Comunicação Aplicada
e Tecnologia, Simon Fraser University - Canadá. Mestre em engenharia de produção
pela UFSCar. Contato: vmbjesus@gmail.com
NOTAS *Este artigo reapresenta algumas discussões que
serão publicadas integralmente no artigo “Questões sobre gênero e tecnologia na
construção da agroecologia”, aceito para publicação na revista Scientiae Studia, no prelo, com
previsão para janeiro de 2017. 1.Informações obtidas na matéria “Agricultura: agroecologia
é o caminho” sobre os debates ocorridos durante a Cúpula dos Povos de 2012,
disponível em http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=3712. 2.Notícia publicada no site da FAO/Brasil “No
Brasil, 13% dos agricultores são mulheres”. Último acesso em 15 de julho
de 2016 . 3.Manifesto Internacional das Mulheres da
Via Campesina
publicado no site da organização em julho de 2013. Último acesso em 15 de julho
de 2016
.4.Ainda segundo as autoras, foi somente a
partir do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003,
que foi elaborada uma política integral de promoção da igualdade de gênero, na
qual se considera também os direitos das trabalhadoras rurais. Neste mesmo ano,
o governo federal lança o Programa “Pronaf Mulher”, com objetivo de financiar
investimentos para atividades agropecuárias, turismo rural, artesanato, entre
outras atividades de interesse da mulher agricultora. O Pronaf é o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, criado em 1996, após ampla
mobilização de agricultores familiares e suas organizações. 5.No final de 2013 ocorreu um episódio polêmico
envolvendo uma das referências teóricas da agroeocologia, que gerou uma carta
aberta, assinada por 60 mulheres e organizações, divulgada em meios eletrônicos
e disponível em http://marchamulheres.wordpress.com/2013/12/20/carta-aberta-a-francisco-caporal-sem-feminismo-nao-ha-agroecologia/.
6.Como exemplos, citamos algumas publicações
recentes: Mulheres e agroecologia -
sistematização de experiências de mulheres agricultoras (2010), organizada
pela ActionAid Brasil e Grupo de Trabalho Mulheres da ANA; a edição especial da Revista Agriculturas, publicada pela
AS-PTA Mulheres construindo a agroecologia
(2009) e “Pela vida das mulheres e pela agroecologia” (2015); e o prêmio e
coletânea sobre estudos de mulheres rurais e gênero sobre o tema “mulheres e agroecologia”,
publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (2015).
Bibliografia
Aguiar, M. V.; Siliprandi, E.; Pacheco, M. E. “Mulheres
no Congresso Brasileiro de Agroecologia”. In: Revista Agriculturas v.6,
n.4, dez. 2009, p. 32-48. Altieri, M. Agroecologia:
bases científicas para uma agricultura sustentável. São Paulo, Rio de
Janeiro: Expressão Popular, AS-PTA, 2012. ANA e Actionaid Brasil.
Mulheres e agroecologia: sistematização de experiências de mulheres
agricultoras. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.asabrasil.org.br/images/UserFiles/File/ sistematizacao_mulheres_ANA.pdf Anjos, A. B. “Mulheres da agroecologia: a luta
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julho de 2016. Butto, A.; Dantas, I. Autonomia e cidadania: políticas
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<https://www.fao.org.br/nB13pasm.asp>. Faria, N. “Economia feminista e agenda de luta
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Acessado em 15 de julho de 2016.
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