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Reportagem
Jovens buscam ascensão social nos gramados
Por Cauê Nunes
10/08/2006
A maioria dos garotos de origem pobre no Brasil sonha em ser jogador de futebol. Afinal, num país com a oitava pior distribuição de renda do mundo, as chances de ascensão social são pequenas. A exemplo de jogadores como Romário e Ronaldo, que vieram de comunidades pobres e rapidamente ficaram milionários, muitos garotos querem seguir carreira nos gramados. De acordo com o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Marcelo Weishaupt Proni, o futebol foi e continua sendo uma das poucas formas de ascender socialmente no Brasil, principalmente porque, segundo ele, “nos últimos 20 anos, as possibilidades de mobilidade social diminuíram e a recessão econômica que atingiu o país na década de 80 reduziu as chances de ascensão social”, diz.

Segundo o antropólogo e professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Marcos Alvito, as próprias famílias incentivam os jovens a seguirem carreira no futebol porque sabem que esta é umas das poucas maneiras de sairem da miséria. “Se o garoto tem talento, a família deposita nele toda a esperança de mudar sua situação financeira e social”, diz. Nesses casos, é muito comum o jovem abandonar a escola para se dedicar exclusivamente ao futebol, com o consentimento da família.

O abandono da escola se deve principalmente por dois motivos: primeiro, de acordo com Proni, o estudo não é mais visto como uma maneira de quebrar o ciclo da miséria. “Hoje, mesmo quem estuda não tem garantia de nada”, diz. Os cargos com maiores salários, por exemplo, exigem que o candidato tenha, no mínimo, curso universitário, conhecimento de informática e de idiomas, só os ensinos fundamental e médio não garantem um bom emprego e melhoria de vida. “Essa formação exigida pelo mercado necessita de um investimento financeiro alto e essa é uma realidade distante para esses garotos. Assim, ser jogador de futebol acaba sendo uma possibilidade muito atraente”, acrescenta Proni.

O segundo aspecto que incentiva o abandono da escola por parte dos candidatos a jogadores profissionais é a alta carga horária de treinamentos exigida pelos clubes. De acordo com Alvito, um jogador que começa a treinar ainda criança aqui no Brasil tem uma formação profissional de aproximadamente 5 mil horas. Um curso universitário exige uma carga horária de 3,6 mil horas. “É mais do que o tempo de uma faculdade, então os poucos que tentam estudar, no máximo freqüentam a escola, mas não são realmente estudantes”, diz.

Se todo garoto que abandonasse a escola para seguir carreira no futebol desse certo, pelo menos financeiramente o futuro da família estaria garantido, mas segundo o professor do Departamento de Educação Física da Unesp de Rio Claro, Walter Gama, a realidade não é essa. “Ser selecionado nas peneiras treinos que os clubes fazem para descobrir novos talentos é difícil, depois conseguir um contrato com algum clube grande é mais difícil ainda”, diz. Gama ressalta que apenas uma pequena minoria consegue contratos milionários.

Segundo dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) dos 14.678 jogadores profissionais registrados em 2004, 8.930 ganhavam até 1 salário-mínimo (s.m.), 3.338 ganhavam entre 1 e 2 s.m., 4.311 entre 2 e 5 s.m., 414 entre 5 e 10 s.m., 393 de 10 a 20 s.m. e 631 acima de 20 s.m. Mais de 60% dos jogadores ganham até 1 salário-mínimo.

Alvito chama a atenção para o fato de os garotos não serem preparados corretamente para a carreira do futebol e muito menos para uma outra carreira. “Com o abandono da escola, as possibilidades de serem bem sucedidos em outra carreira são mínimas. Então cada chance que um garoto perde nas peneiras é uma derrota para ele e para a família. É uma carga muito pesada para um adolescente”, diz. Mesmo os que conseguem iniciar no futebol profissional muitas vezes se decepcionam com os salários. “Todos acham que vão assinar contratos milionários”, diz.

De acordo com Gama, são poucos os clubes que têm um psicólogo, ou assistente social dando apoio aos garotos que chegam, o que faz com que os atletas fiquem alheios à realidade do futebol e não saibam, por exemplo, que as chances de terem contratos milionários são pequenas. Além disso, a alta carga horária exigida pelos clubes pode causar outros problemas a esses garotos. De acordo com Alvito, as contusões são freqüentes em jogadores que treinam excessivamente, e os clubes não assumem a responsabilidade quando os jovens atletas se machucam.

Mercado inflacionado

Mesmo que a realidade para a maioria dos jogadores brasileiros seja precária, os elevados salários pagos para alguns poucos jogadores reforçam e incentivam os jovens a escolherem essa carreira. Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, recebe por ano mais de 10 milhões de euros. De acordo com Proni, a inflação do mercado de futebol está atrelada à globalização dos mercados econômicos. “A livre circulação de capital e a descoberta do esporte como uma atividade altamente lucrativa, mudou a forma de organização do futebol”, diz. “Nos últimos anos, as grandes empresas e instituições financeiras passaram a investir no esporte e muito dinheiro foi injetado tanto em clubes como em jogadores”, completa. Desse modo, os salários dos principais jogadores atingem patamares exorbitantes.

Para se ter uma idéia, os jogadores da seleção brasileira que foi campeã da Copa de 1994 ganhavam, na época, salários muito maiores que os jogadores da também campeã seleção de 1958. Romário ganhava um salário mensal de aproximadamente US$ 1 milhão, já Pelé ganhava US$ 61 mil. Bebeto ganhava US$ 570 mil, enquanto Garrincha recebia US$ 56 mil.

Talento S/A

Com a profissionalização do futebol, os empresários passam a assediar os garotos cada vez mais cedo como é o caso de Juan Carlos Chera, de 9 anos, que saiu de um pequeno clube do Paraná e assinou contrato com o Santos, mas já recebeu propostas do Porto, Bordeaux e Manchester United. Segundo Alvito, existe um esquema para cooptar novos jogadores e negociá-los com clubes grandes, que funciona assim: clubes de fachada são montados para atrair novos talentos. O objetivo do clube não é ganhar títulos nem participar de campeonatos, mas treinar atletas e servir de vitrine para os “olheiros” pessoas contratadas pelos grandes clubes nacionais e estrangeiros para descobrir novos jogadores. Em alguns casos, ao invés de abrir um novo clube, a empresa “aluga” times pequenos que já possuem uma infra-estrutura. Quando um time grande se interessa por algum jogador, os representantes do clube de fachada fazem a intermediação entre o time e a família do garoto. “As empresas de grande porte descobriram esse filão e estão investindo muito dinheiro nisso”, diz Alvito. O pesquisador chama a atenção para o fato de que o jogador é tratado como um produto que gera lucros altos.

Muitas vezes, os jogadores são negociados ainda crianças. A legislação brasileira proíbe vínculos empregatícios aos menores de 16 anos, o que obriga os clubes estrangeiros a contratarem a família do jovem. “Em alguns casos, a família toda se muda para o país estrangeiro e o garoto passa a jogar nas divisões de base do clube”, diz Alvito. O pesquisador ainda chama a atenção para o fato de que muitas vezes o jovem não tem um bom desempenho no time e o empresário rompe o contrato sem dar qualquer assistência à família. “Há casos em que as pessoas ficam sem dinheiro até mesmo para a passagem de volta”, completa.

Além disso, existem suspeitas de falsificações de documentos para esconder a real idade do garoto que está assinando o contrato. Um dos capítulos do relatório da CPI do Futebol analisa casos de falsificação de passaporte e identidades de jovens que foram transferidos para pequenos times da Bélgica. Com a falsificação, o time não precisa gastar dinheiro contratando a família do jogador.



A conseqüência é a transferência cada vez mais freqüente de jogadores para o exterior. Em 1989, 132 jogadores se transferiram para times do exterior. Já em 2004, esse número subiu para 857, mais de dois jogadores transferidos por dia (confira o crescimento no gráfico acima). A grande maioria dos atletas vai para times da Europa, mas também para clubes da Ásia, Oriente Médio, Oceania e América do Norte, ou seja, para todos os continentes. Somente na Liga dos Campeões da Europa, há 71 brasileiros, que representam 7% do total de jogadores, o mesmo percentual da Itália, com o detalhe de que os italianos têm quatro clubes inscritos. Isso sem falar dos clubes pequenos que não participam desse torneio.