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O Modernismo de Lévi-Strauss - Carlos Vogt
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A abordagem da morte de Lévi-Strauss pela imprensa nacional
Fernanda Vasconcelos
Entre o universal e o relativo
Danilo Albergaria
Os desafios de (d)escrever povos
Alessandra Pancetti
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Relações com o Brasil: saudades dos trópicos
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O demiurgo de Lévi-Strauss e a metáfora do caleidoscópio
Cleide Elizeu
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Arte e mitos: a busca de estruturas
Renata Rossi
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A lição de sabedoria das vacas loucas
Claude Lévi-Strauss
Traduzido do francês por Nádia Farage
Entre o claro e o escuro: Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss1
Maria Lúcia de Santana Braga
O estruturalismo de Lévi-Strauss e o sistema de castas indiano
Josefina Pimenta Lobato
Parentesco e família
Cynthia Andersen Sarti
Claude Lévi-Strauss, Michel Pêcheux e o estruturalismo
Eni Puccinelli Orlandi
Resenha
O simples e o complexo
Por Danilo Albergaria
Entrevista
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Entrevistado por Por Danilo Albergaria
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Resenhas
O simples e o complexo
Livro-entrevista com Lévi-Strauss é leitura fácil, descomplica e humaniza o personagem. +Múltiplas leituras
Por Danilo Albergaria
09/12/2009

Uma entrevista, pela informalidade que intrinsecamente carrega, costuma desnudar aspectos antes obscuros, mal-explicados, mal-entendidos, que circundam a figura do entrevistado. Se este for, ainda por cima, um pensador cujas ideias são motivação de debates acalorados, polêmicas longevas e confusões históricas, o potencial de esclarecimento e revelação é ainda maior. E se estamos tratando de um personagem honesto nas respostas como Claude Lévi-Strauss, trata-se de um livro delicioso.

É verdade que contribui, e muito, para as mais de 250 ótimas páginas de De perto e de longe, com seus depoimentos a Didier Eribon, o fato de seu entrevistador ser bem informado, preparado para atravessar questões espinhosas e, quando possível, pescar sutilmente arestas mal-aparadas, frestas em que podemos surpreender um Lévi-Strauss humano, apesar de demasiadamente polido.

Veja-se um exemplo. Jacques Lacan, o sumo sacerdote da psicanálise nos anos 1960 e 1970, era amigo de Lévi-Strauss. Didier Eribon, o entrevistador, pergunta ao antropólogo (ou etnólogo, segundo a tradição francesa) o que ele acha dos trabalhos do psicanalista. E ele responde: “Precisaria compreendê-los. E sempre tive a impressão de que, para os seus ouvintes fervorosos, ‘compreender’ não queria dizer a mesma coisa que para mim. Eu precisaria de umas cinco ou seis leituras”. A acusação de incompreensibilidade da obra de Lacan aparece velada, cuidadosamente polida, mas perceptível – como uma resposta polida deve ser. Mas Eribon levanta uma incongruência: afinal, o antropólogo citou Lacan. “Acho que uma única vez”, tangencia Lévi-Strauss, para entregar logo em seguida: “Sobretudo, por amizade”.

Por amizade, mas também por reconhecimento dos evidentes méritos de Lévi-Strauss, o filósofo Maurice Merleau-Ponty foi decisivo no fundamental jogo político que deu a Claude uma cadeira no Collège de France – talvez o Olimpo do mundo acadêmico e intelectual na França de então. Merleau-Ponty – que também, diga-se de passagem, reconhecia uma certa “falta de tempo” para compreender Lacan – escreveu cartas, fez visitas, “empenhou-se tão bem que não houve proposta contrária”, conta Lévi-Strauss.

Aprovado em 1959, Lévi-Strauss lembra, com certo amargor, das duas ocasiões em que foi preterido na escolha por um professor no Collège. Em ambas, tal como quando foi eleito, a influência pessoal e a política falaram alto. Em ambas, Lévi-Strauss era o candidato do lado derrotado de uma disputa política muito mais ampla do que a escolha de uma cadeira.

Preterido no Collège de France, ele conta, pensou não servir para a vida acadêmica e decidiu praticar um pequeno delito contra a ciência: interromper a produção da ambiciosa sequência (jamais levada a cabo) da tese “As estruturas elementares do parentesco” para escrever, sem filtros, sem papas na língua, aquilo que realmente pensava sobre sua vida intelectual até então. Surge, dessa breve e profícua libertação, o clássico Tristes trópicos, construído num estilo inteiramente diferente de suas obras estritamente antropológicas, e em que faz um balanço de suas viagens e conta sua célebre passagem pelo Brasil, no período de formação da Universidade de São Paulo. Lévi-Strauss revela que o livro só não ganhou um dos prêmios mais cobiçados da literatura francesa porque não era, claro, literatura. Mas era algo próximo. (Nosso antropólogo diz que se ressente do fato de não ter produzido nenhuma obra literária e revela que gostaria de ter escrito as obras de Joseph Conrad, ou alguma peça dramática).

A entrevista envereda, é claro, por detalhes engraçados ou que beiram o pitoresco – ou ambos. Por exemplo: no período em que viveu nos Estado Unidos, Lévi-Strauss resgata duas histórias relacionadas ao antropólogo germano-americano Franz Boas. Um “titã” de obra essencial para Lévi-Strauss, Boas guardava em sua casa uma arca esculpida de indígenas americanos. Admirado, Lévi-Strauss observou que deveria ter sido uma experiência única ter vivido com indígenas capazes de produzir tal obra-prima. Boas era um dos bastiões do relativismo cultural e respondeu ao deslize: “São índios como os outros”. Lévi-Strauss conta, também, a inusitada e súbita morte de Boas com um sabor inevitavelmente tragicômico. Por fim: a piadinha que fazem dez entre dez pessoas que ignoram o intelectual Lévi-Strauss quando são perguntadas por seu nome é comicamente abordada. Diz Lévi-Strauss, o intelectual, que nos Estados Unidos, ele tinha que viver com um sobrenome mutilado. O professor Claude L.-Strauss havia sido avisado pelo pessoal da New School of Social Research de Nova York, refúgio de pensadores europeus durante a Segunda Guerra, de que seria vítima constante de piadas infames sobre as calças jeans homônimas. O que não evitou que um garçom brincasse, ao chamar seu nome numa fila de espera: “As calças ou os livros?”. Lévi-Strauss termina a história com um reconhecimento bem-humorado à cultura dos garçons americanos.

Deixando de lado os meandros pouco louváveis do meio acadêmico francês e os saborosos detalhes das memórias de Lévi-Strauss, e entrando em questões um pouco menos mundanas – que, para este resenhista, é o que de fato interessa em De perto e de longe –, o livro passeia pelos principais nós do pensamento de Lévi-Strauss. O antropólogo é de tal estatura intelectual, e sua vida acadêmica acabou sendo tão profícua e longeva, que os problemas levantados ou abordados em suas obras tendem a se confundir com a própria história do pensamento no século XX: a relação entre natureza e cultura, biologia e cultura; a reação feminista a algumas de suas considerações; seus embates com o existencialismo; a incorporação de ferramentas da linguística em sua obra; mito e história; o racismo.

E, também, a questão mais célebre: o estruturalismo (veja reportagem e entrevista sobre o tema). A entrevista para o livro De perto e de longe foi feita quando Lévi-Strauss contava 80 anos, em 1988. Já era um tempo em que o pós-estruturalismo dava as cartas e dava-se o estruturalismo de Lévi-Strauss como superado. A imagem de um racionalismo ingênuo e dos sonhos de matematização e cientificidade do pensamento antropológico já havia se colado à obra de Lévi-Strauss. Permanecia, contudo, um forte resíduo da importância e da amplitude que o termo ganhou nos anos 1960 e, em Lévi-Strauss, um desgosto por seus usos e abusos. Ele se mostra revoltado com a transformação do estruturalismo numa “etiqueta” que se cola em “qualquer mercadoria”. Revela, sobretudo, descontentamento com a incompreensão do estruturalismo e de algumas de suas consequências. Esclarece, por exemplo, que seu estruturalismo nunca foi uma tentativa de reduzir a complexíssima realidade humana em termos matemáticos ou inteiramente racionalizáveis – apesar de reconhecer praticar um estruturalismo ingênuo até tomar contato com a linguística de Jackobson –, pois admite a enorme quantidade de variáveis e de contingências históricas que as relações sociais implicam.

Nesse quesito, o Lévi-Strauss de 1988 parecia responder já a algumas das reações que os historiadores teriam à onda estruturalista. Não Braudel, que parece fazer concessões ao estruturalismo com a sua concepção da longa duração. Mas a historiografia francesa posterior, das décadas de 1970 e 1980, e a onda da micro-história italiana, desse mesmo período, apontam para visões particularizadas que se opunham às grandes análises da antropologia estrutural. A atenção às contingências e aos detalhes, os recortes espaço-temporais minúsculos e a recusa de explicações e generalizações para história, características dessas ondas historiográficas, certamente fizeram Lévi-Strauss reconsiderar algumas de suas conclusões estruturalistas mais radicais. Ou, pelo menos, considerá-las um mal-entendido: “Ao restabelecer a velha noção de natureza humana, eu apenas lembrava que o cérebro humano, em qualquer lugar, é constituído da mesma forma, e que, portanto, coações idênticas atuam sobre o funcionamento do espírito. Mas este espírito não trata, aqui e lá, dos mesmos problemas”, que são criados e propostos “sob formas extraordinariamente diversas”.

Nessa discussão, Lévi-Strauss joga para a quadra dos historiadores uma bola venenosa, fruto de uma observação muito perspicaz: quem recusa qualquer imobilidade na história humana deveria se perguntar, então, como é que se acredita, ao mesmo tempo, poder “reconstituir o que se passava pela cabeça das pessoas que viveram há dois ou três séculos, se não começassem por postular que existe alguma coisa em comum entre elas e nós, e que, fundamentalmente, os homens pensam da mesma forma”?

Em resposta às críticas de sua obra como excessivamente baseada em erudição e pouco sustentada por evidências empíricas coletadas em campo, Lévi-Strauss reconhece-se, assume-se como antropólogo de gabinete. Apesar de confessá-lo, procura argumentar que o material antropológico reunido pela civilização ocidental até então era vastíssimo, mas pouco organizado, sem uma teoria que os explicasse. E que as contingências históricas o levaram a abandonar o campo em favor dos livros: com a guerra, foi para o Estados Unidos como parte do programa da Fundação Rockefeller para salvamento dos intelectuais europeus, e lá encontrou o enorme acervo da Biblioteca Pública de Nova York. A impressão que fica é que trabalho de campo e de gabinete são caricaturas, exageros que na verdade se mostram entrelaçados e interdependentes. Tais críticas ao trabalho de Lévi-Strauss parecem, realmente, baseadas numa querela, uma disputa pouco importante que remete, no mínimo, àquela entre os naturalistas de campo e os de gabinete no início do século XIX, e que pouco ajuda a entender as conclusões de um trabalho científico.

Por fim, Lévi-Strauss não parece se incomodar com o fato de que seu pensamento pode e deve ser (e foi, de fato) superado no espaço de algumas décadas. Sobre isso, mostra-se bastante bem resolvido: “Seria infantilidade” se revoltar contra a perspectiva de ser ou estar ultrapassado. Sua consciência chega a ser cortante, por vezes. Lévi-Strauss vê sua obra como resultado de algo que passou por ele. O pensador, o homem não teria sido muito mais do que um meio em que as ideias e as teorias se manifestaram, e não se sente exatamente dono de seus escritos. (Os iniciados poderão enxergar, aqui, uma fidelidade canina ao pensamento estruturalista duramente aplicado ao indivíduo, a si mesmo). Ele encara a escrita com angústia, e o contentamento com a conclusão de uma obra se dá apenas pela próprio fato de tê-la terminado, para depois enxergá-la como excreção – não era de sua prática ficar revisando, aumentando e melhorando suas obras.

Mesmo assim, traindo sua postura distante – “pouco me importo com minha influência”, diz ele – Lévi-Strauss afirma ter a “sensação de que um certo número de problemas não poderá ser tratado melhor do que o fiz, a não ser passando pelo que escrevi, mesmo que seja para demoli-lo; a sensação de que meus livros marcaram uma fase da reflexão etnológica e de que isso será levado em consideração”. Sobre isso, como este dossiê da ComCiência sugere, ele deve estar coberto de razão.

Leia também a resenha Múltiplas leituras, de uma coletânea sobre Lévi-Strauss publicada pela editora da UFMG.