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Artigo
A dor é inevitável. O sofrimento é opcional
Por Sebastião Carlos da Silva Junior
10/05/2007

"A dor é  inevitável.  O sofrimento é opcional"
Carlos Drummond de Andrade,
ao comentar o imponderável e a certeza da vida.


A Clínica da Alegria é um centro de convivência para pessoas com queixas de dor crônica e membros da comunidade, encaminhados por diferentes especialidades médicas de um hospital-escola e/ou convidados pelos participantes. Reúne-se semanalmente desde setembro de 1997 sob a coordenação de uma equipe multidisciplinar. Quem sofre de dor crônica, em geral, faz com que a maior parte da vida gire em torno da dor e das restrições subseqüentes. O centro de convivência tem o objetivo de compartilhar, cuidar e trabalhar pelas pessoas e não para elas. Em média, 30 pessoas de ambos os sexos e causas variadas de dor crônica participam das atividades durante noventa minutos, semanalmente. A equipe é composta: de médicos, fisioterapeutas, assistente social e terapeutas ocupacionais. Utilizam técnicas de respiração, visualização dirigida, relaxamento, atividades físicas e recreativas, música e dança. Evidências indicam que intervenções farmacológicas e psicológicas têm efeitos diferentes nas qualidades sensoriais e afetivas da experiência dolorosa. Melzack & Perry (1975), verificaram que uma combinação de biofeedback alfa e sugestão hipnótica levam à diminuição significativa dos componentes sensoriais e afetivos da dor, sendo que a dimensão afetiva foi a mais beneficiada.

O paciente com dor crônica priva-se de suas funções habituais no trabalho, na família, na sociedade e, até mesmo, das de lazer. Keef & Gil (1986) demonstraram que a dor provoca ansiedade que induz espasmo muscular prolongado no local doloroso assim como vaso-constrição, isquemia e liberação de substâncias que desencadeiam a dor.

Pacientes com dor crônica que têm maior suporte social são mais ativos, necessitam menor quantidade de medicação e sofrem estresse menos acentuado. Atividades positivas podem diminuir a dor ou aumentar a tolerância álgica. Sabemos que a percepção da dor é maior quando a pessoa encontra-se em situações de medo, tristeza, isolamento e insônia. Em contrapartida, a dor é menos acentuada e pode até desaparecer quando estamos em ambiente agradável, despreocupados, esperançosos e com tempo de sono suficiente (Chappman, 1985).

A dor crônica não tem significado de urgência, pode ser de duração prolongada, tem exacerbações numerosas que podem levar a comportamentos doentios e à dependência de tranqüilizantes. Em alguns casos causa incapacidade permanente e não tem possibilidade de recuperação.

A ansiedade e depressão podem perpetuar a dor e alterar a resposta aos estímulos(Romano & Turner, 1985; Katon, 1984). Diversos neurotransmissores são bem conhecidos por exercerem um efeito potente sobre os estados do humor e do ânimo, tendo assim uma atuação poderosa no comportamento doloroso do homem (Taenzer, Melzack & Jeans, 1986).

Pode ser muito significativo que a sobreposição de vias tradicionalmente consideradas como sendo relacionadas com mudança no comportamento afetivo estejam mostrando que exercem efeitos correlatos sobre a resposta organizada do animal aos estímulos dolorosos (Bandler, Corrive & Zhang, 1991).

Incentivamos a mudança e a adoção de atitudes que recompensem a saúde, atividades não relacionadas com a doença e, principalmente, fazer as coisas por si mesmos. Para alterar o estado físico trabalhamos com a emoção e a imaginação que fazem a comunicação entre a mente e o corpo. Se dermos muita atenção à dor, será que ela aumenta e assume o comando? E se a distrairmos? Distrair a atenção do indivíduo do estímulo doloroso tem mostrado diminuir a intensidade sensitiva, discriminativa e desagradável do estímulo térmico doloroso (Miron, Duncan, Bushnel, 1989).

Atitudes saudáveis elevam o otimismo, aumentam a esperança e melhoram o controle sobre os potencializadores da dor. Com isso a pessoa adquire expectativas positivas, adota medidas concretas e alcança as metas que visam reduzir o mal estar.

O controle da dor por estimulação intensa é explicado em termos de mecanismos no tronco cerebral que exercem um controle inibitório descendente sobre a transmissão através de corno dorsal assim como em níveis mais elevados do sistema de projeção somática (Le Bars, Dickenson, Besson &, 1983).

Independente da causa e da intensidade dolorosa, a vida pode ser vivida significativamente bem. A atividade física leva-nos a associar juventude, energia, vigor, felicidade e até desafio às condições adversas. Adotamos vários tipos de exercícios para o fortalecimento muscular, maior flexibilidade, para ter o controle sobre o corpo e, principalmente, elevar a produção de endorfina. Esta substância é produzida no cérebro, em vários locais e de maneira geral diminui a percepção da dor, aumenta a sensação de bem estar e até mesmo a de euforia (Farrel, 1985). Os exercícios também proporcionam relaxamento, diminuição da ansiedade e depressão, dos efeitos do estresse e melhora da auto-imagem (Harber & Sutton, 1984).

As técnicas de relaxamento muscular levam à diminuição da freqüência, intensidade e duração da dor. Aumenta o fluxo sanguíneo cerebral, eleva a produção de neurotransmissores, tipo endorfina, encefalina e serotonina. Relaxamento é uma resposta fisiológica integrada que é caracterizada por diminuição generalizada do sistema nervoso simpático e da atividade metabólica (Benson, Pomeranz & Kutz, 1984).

Meditação com visualização dirigida traz diminuição da excitabilidade e, como conseqüência, diminui a percepção álgica. Embora existam diferenças metabólicas entre corrida e meditação, a alteração do ânimo após essas atividades podem ser similares quando associadas com mudança hormonal similar. O ânimo fica elevado após as duas atividades mas sem diferença significativa. Ocorre aumento considerável de beta endorfina e corticotropina após a corrida e de corticotropina após a meditação, mas nenhuma diferença significativa em corticotropina entre os grupos. A corticotropina é correlacionada com o humor elevado após a corrida e a meditação (Harte, Eifert & Smith, 1995).

A aprendizagem é mais eficaz quando é divertida. Mímica, brincadeiras de salão e jogos variados fazem parte das atividades. As brincadeiras provocam risadas que melhoram a oxigenação, induzem o estar relaxado e ao aprender a se gostar. Um dos melhores resultados da brincadeira é o prazer, que é uma motivação poderosa em qualquer atividade humana.

Música e dança ajudam no processo de cura ao diminuir a fadiga crônica e a tensão e ao melhorar o metabolismo envolvendo a emoção e a relação mente-corpo (Guzzeta, 1989). Música lenta e suave diminui a resposta fisiológica associada com o estresse, enquanto ritmo mais acelerado eleva a resposta fisiológica ( Standley, 1896).

O apoio social proporcionado leva a um melhor enfrentamento dos processos casuais e a uma adequação do comportamento visando atitudes mais saudáveis. Nossa maneira de ajudar é encorajando a crença deles na própria capacidade de melhorar e nutrindo a sua confiança no amparo que a vida proporciona.

Sabemos que para curar temos necessidade de ir além de nossos condicionamentos e de nossas limitações. O mais importante é que o paciente “desfoca” a vida das dores e utiliza as técnicas aprendidas em seu ambiente familiar. O essencial é que aprendem estratégias e comportamentos saudáveis, eliminando e abstendo-se de atitudes nefastas que perduram a dependência medicamentosa e ou atividades anti-sociais.

O atendimento de uma pessoa com dor, independente da localização, avalia fatores que influenciam a experiência álgica.

A dor é pesquisada em relação a sua intensidade, localização, em qual horário é mais ou menos intensa e, principalmente, o que a desencadeia ou intensifica e se existe algo que faça com que ela diminua. Ricardinho, 6 anos de idade, ao cair devido um empurrão do irmão mais velho, perto da mãe, chora, esperneia e potencializa a sensação dolorosa. Essa mesma criança, em situação de queda, próximo aos amiguinhos, levanta-se, bate as mãos na roupa, dá a volta por cima e continua a brincar, sem mesmo um muxoxo. O que foi que ele pensou nas duas situações? Certamente a emoção, na segunda circunstância, fez com que ele enfrentasse a dor de maneira mais adequada, sem potencializá-la, valorizando-a na justa medida. Altamente subjetivo. O limiar da dor é aumentado em circunstâncias que envolvem ambientes agradáveis, despreocupados e que apresentem esperança em tempos melhores e também que envolvam tempo satisfatório de sono. O contraponto é o da diminuição do limiar da dor quando impera a tristeza, depressão ou ansiedade que evoluem para o isolamento e, finalmente, a insônia.

Quanto ao tempo de aparecimento: até 6 meses, dor aguda que pode ser útil por alertar a pessoa, cura com medicamentos ou cirurgia, medicação adjunta e cuidados, opiáceos, analgésicos, antinflamatórios, esteróides, causa incapacidade transitória e, principalmente, tem a perspectiva de recuperação. Dor crônica: após 6 meses torna-se uma doença em si, não tem significado de urgência, é de duração prolongada, uso de politerapias isoladas, exacerbações numerosas, induz comportamento doentio aprendido, medicação inapropriada incluido opiáceos, dependência de tranquilizantes, lesões de órgãos por analgésicos e, principalmente, sem recuperação com possível incapacidade permanente.

Na Clínica da Dor do Hospital de Base de São José do Rio Preto atendemos pessoas com dor crônica de origem e localizações variadas: oncológica, cefaléia, lombociatalgia, pós traumática, fibromialgia, pós acidente vascular cerebral, dor pélvica, pós herpética e outras mais. A equipe médica faz o atendimento inicial com acompanhamento de fisioterapeutas, nutricionistas, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentista, massoterapeuta e psicólogo. A seguir, reunimo-nos e discutimos a conduta para todos os pacientes. Pacientes ambulatoriais, em 70% dos casos queixam-se de dor, sendo 50% aguda e 50% dor crônica. Esse índice sobe para 80% das pessoas hospitalizadas.

Em 2004, a Organização Mundial da Saúde instituiu o tratamento da dor como direito humano, importantíssimo. No ano de 2005 iniciamos no Hospital de Base, de ensino acadêmico, a dor como quinto sinal vital, a ser avaliada constantemente, assim como a pressão arterial, a temperatura, a freqüência cardíaca e respiratória.

Algumas maneiras de avaliar a dor: escala numérica, zero significa sem dor e dez a dor máxima suportável. Uso de “caretinhas” que mostram desde faces inexpressivas até caretear dor extrema. Descritores verbais: dor ausente, leve, moderada e forte. O profissional não pode influenciar na informação do paciente, já que a percepção da dor é totalmente subjetiva e varia de acordo com muitos parâmetros. O relato do paciente deve ser considerado importante assim como a experiência dos profissionais da saúde. É de fundamental importância mensurar a dor para determinar se o tratamento é necessário, qual a prescrição mais eficaz e quando interrompê-lo. Pesquisa realizada com pacientes que recebiam alta do Hospital de Base detectou que a dor mal tratada foi a principal causa de insatisfação, além de piorar as condições clínicas, comprometer a qualidade de vida e aumentar os custos hospitalares. Os dados obtidos ajudam a equipe médica a adequar a medicação, aumentando-a, reduzindo-a e até mesmo modificando-a. Melhores resultados levam a diminuição do tempo de sofrimento e do tratamento. A valorização do paciente e o resgate de sua humanização ocorrem ao dizer e verbalizar a dor. Em UTI adulta e pediátrica, pacientes com dificuldade para comunicar-se, a mãe e acompanhantes são de fundamental importância, assim como as enfermeiras e médicos que avaliam as respostas comportamentais, as vocalizações, expressões faciais, movimentos corporais e reações ao ambiente. Kleber, enfermeiro do sexto andar, assim se expressou: “antes o paciente só se queixava da dor quando não a suportava mais, agora não”.

Concepções errôneas no tratamento da dor: subestimá-la, considerá-la inevitável e incontrolável, que a medicação opiácea causa dependência psíquica e tolerância, que o repouso é “útil” e a movimentação “deletéria”, e que não se deve importunar quem está sofrendo. Fatores que perpetuam a dor: erro diagnóstico, processos nociceptivos tratados parcialmente, analgésicos com dose inadequada e tempo de efeito não avaliado adequadamente, efeitos colaterais do medicamento, ansiedade e depressão. Algumas barreiras para o tratamento: preconceito, falta de conhecimento e habilidade do profissional médico e confusão quanto a tolerância e adição, relutância dos pacientes em se queixar, efeitos colaterais dos opiáceos e de outros medicamentos.

A terapêutica ideal involve a seleção de drogas, vias de administração, posologia, terapias adjuvantes, controle dos efeitos colaterais, ênfase na prevenção, e evolução monitorizada. O propósito do tratamento da dor é o alívio do sintoma, melhor qualidade de vida, minimizar o desconforto, modificar a simbologia da dor, restaurar o físico, psíquico, emocional e o social, maximizar potenciais, prevenir deterioração, encorajar a execução de tarefas e, finalmente, a independência do doente. Se a dor for infinita e intratável, ainda assim podemos e devemos brindar e celebrar a vida.

Sebastião Carlos da Silva Junior é médico e professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto