É apropriado falar em cultura animal, entendendo o termo cultura, entre tantas acepções que lhe são atribuídas, como designação do processo de transmissão, por aprendizagem, do conjunto de valores e comportamentos que não só se dão na vida em sociedade mas que da sociedade precisam para se dar e transmitir.
Durante a maior parte dos anos que conhecemos de nossa história, em particular na tradição do que ficou convencionado chamar cultura ocidental, firmamos a convicção de que a cultura, como a linguagem, era um traço distintivo da nossa humanidade relativamente à animalidade de outras espécies viventes.
Essa convicção fortaleceu-se com o racionalismo iluminista, e as pesquisas científicas em vários campos, em especial nos da linguagem e suas adjacências, revigoraram as hipóteses e as demonstrações da singularidade do homem, criador e criatura de linguagem e de cultura.
Mais recentemente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, a etologia, a primatologia e a própria antropologia foram apontando, primeiro para uma desconfiança em relação à exclusividade humana daqueles traços distintivos e, depois, para a formação de uma nova convicção: a de que os animais também têm cultura, linguagem e, em vários casos, capacidade para aprender e dominar o uso de signos, com estruturas de relativa complexidade, em processos dinâmicos de comunicação.
Na verdade, desde muito antes, Darwin já havia anotado que a ética nasce dos instintos sociais e que “todo e qualquer animal dotado desses instintos bem marcados, incluindo os afetos de pais e filhos, adquirirá inevitavelmente um senso ou consciência moral, assim que suas faculdades intelectuais se desenvolvam tanto ou quase tanto quanto no homem”.
Ernest Mayr no livro O desenvolvimento do pensamento biológico, de 1982 (publicado no Brasil em 1998 pela editora da Universidade de Brasília) considera que o darwinismo compreende não uma, mas cinco teorias independentes: a da evolução propriamente dita, a da origem comum de todos os seres vivos, a do gradualismo do processo evolutivo, a da especiação populacional e a da seleção natural.
No caso da origem comum das espécies, nos livros Origem do homem e a seleção sexual, de 1871, e A expressão das emoções no homem e nos animais, de 1872, Darwin busca argumentos para mostrar que também a mente humana é parte e resultado do processo evolutivo, de modo a vencer as trincheiras dos que, seus contemporâneos, mesmo aceitando a evolução para os aspectos físicos do homem, ainda defendiam e propugnavam a origem divina e espiritual de sua alma e de sua mente.
Com isso, abre-se toda uma linha de estudos e pesquisas no campo da biologia, da etologia e mesmo, mais recentemente, da filosofia, da antropologia, da sociologia e da linguística, que busca aprofundar os estudos que, como diz Frans de Waal (ver a edição da ComCiência – Nós, primatas, n. 94, 10, dez, 2007), levem a “entender, por exemplo, a evolução da moralidade” e, pela observação e análise de comportamentos de chimpanzés, “se eles possuem algum grau de empatia, altruísmo”, buscando estudar “outros tipos de comportamento associados ao caráter humano, como a capacidade de transmissão cultural”. (Ver reportagem de Rafael Garcia e Reinaldo José Lopes “A hora e a vez dos chimpanzés”. Folha de S.Paulo, Ilustríssima. Domingo, 6, nov., 2011, p. 4-5).
André Luis de Lima Carvalho e Ricardo Waizbort no artigo “O cão aos olhos (da mente) de Darwin: a mente-animal na Inglaterra vitoriana e no discurso darwiniano” (Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p. 36-56, jan/jun, 2008), observam que, ao longo do livro Origem do homem e a seleção sexual, vão se compondo os traços do animal darwiniano, dotado de racionalidade, com uma vida mental rica e possuidor até mesmo de instintos precursores da moral humana (p.46).
No mesmo artigo, os autores enumeram os predicados da complexidade subjetiva que Darwin atribui ao cão, ao cavalo e a outros animais, destacando entre eles a simpatia, a sociabilidade, o afeto, o sentimento amoroso que funcionaria como “uma espécie de cimento social, capaz de conferir a consistência necessária à formação dos vínculos de compromisso mútuo” (p.48), e, com os outros atributos e comportamentos dos cães apontados e analisados no livro, dar também consistência à tese de continuidade da mente animal e da mente do homem.
Tratava-se, como foi dito, de derrotar o último bastião criacionista dos que, aceitando a evolução física das espécies para a explicação também da origem humana, apegavam-se às causas divinas para a explicação de sua mente, e com ela, para a afirmação da singularidade do homem entre as espécies.
Se a origem é a mesma para todas as espécies e se a seleção natural é que as diferencia, sem romper os elos da cadeia evolutiva, também o que vale para o corpo físico vale para a mente, de modo que o reconhecimento de atributos comuns, sob todos os aspectos, ao homem e ao animal, reforça a teoria evolucionista e ao nos aproximar, humanos, dos animais e, animais, dos humanos, encurta a distância da polaridade clássica entre natureza e cultura. Como escreve Darwin, a diferença, do ponto de vista da mente, entre o homem e os animais superiores, por maior que seja, é certamente uma diferença de grau e não de tipo.
Se as diferenças são, pois, de quantidade e não de qualidade, isto é, se os atributos da mente humana se encontram também na mente dos animais superiores, o que pode o homem fazer com o que lhe capacita sua mente, no grau em que ela o capacita, pode também o animal, proporcionalmente, fazer, no grau de sua capacitação. Sendo isso verdade, o animal é capaz de linguagem, de moral e de cultura.
A literatura há muito desconfiou dessa proximidade e foi, desde a Odisséia, no reconhecimento de Ulisses por seu cão Argos, depois dos anos de ausência, estreitando os laços dessa desconfiança simpática entre homens e animais.
O próprio Darwin reproduz, de certa forma, a experiência emocional e afetiva do reencontro com seu cão depois dos cinco anos de sua viagem a bordo do HMS Beagle, anotando no livro sobre a Origem do homem e a seleção sexual que, no reencontro, o cão se comportou, obedecendo-o, como se estivessem estado juntos sem o longo intervalo de ausência.
Há uma grande quantidade de livros sobre as relações entre homens e animais e alguns deles, obras, sem dúvida, maiores na literatura mundial de todos os tempos. É o caso de Quincas Borba, de Machado de Assis, Vidas secas, de Graciliano Ramos, “O burrinho pedrês”, e “Meu tio, o iauratê”, de Guimarães Rosa, Cão como nós, de Manuel Alegre, O cão e o dono, de Thomas Mann, Flush – memórias de um cão, de Virgínia Woolf, Um cão de caráter, (na tradução francesa de Csutora), de Sandor Marai, Niki – a história de um cão, de Tibor Déry, Argo e seu dono, de Italo Svevo, Fup, de Jim Dodge, Timbuktu, de Paul Auster, Patas na Europa, de Antonio Costella, Platero e eu, de Juan Ramon Jimenez, Da dificuldade de ser cão, de Roger Grenier, só para citar alguns títulos ao acaso de leituras afetivas, sem ordem cronológica, nem de emissão, nem de recepção.
Sempre me lembro da crônica emocionada e emocionante que escreveu Carlos Heitor Cony a propósito da morte de sua cachorra Mila e de quanto o registro dessa perda nos ensina sobre nossas relações e sobre nós mesmos nas relações com os animais, dos animais conosco e de cada um de nós conosco e com outros semelhantes e dessemelhantes.
Humberto Eco na crônica “Da inteligência canina”, publicada recentemente pela Folha de S.Paulo, Ilustríssima (Domingo, 9, out., 2011, p. 6), e que traz, em linha fina, o subtítulo “Quando o cão elabora um plano complexo”, faz um breve e longo passeio, no espaço e no tempo, para, a propósito de um incidente em que a cadela Queen vai em busca de ajuda para salvar sua dona que havia sido picada por uma vespa tendo em decorrência um choque anafilático, evocar “uma literatura antiquíssima e vasta sobre as capacidades de raciocínio dos cães”. Cita, então a História natural de Plínio, do ano 77 d.C., Crisipo, três séculos antes, Sexto Empírico cinco séculos depois, Plutarco, Eliano e Porfírio com argumentos em favor da inteligência e da racionalidade desse animais. Projeta esses temas sobre os nossos dias e termina a crônica com a desconfiança sagaz de que os cães estão, pela razão e pela emoção, mais próximos de nós do que sonha a nossa vã filosofia.
E conclui (e nós com ele): “Ainda que não se consiga definir bem a inteligência canina, deveríamos ser mais sensíveis a esse ministério. E se for muito difícil virar vegetariano, pelo menos que donos menos inteligentes que eles não abandonem seus cães nas estradas.”
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