Três condições
necessárias se conjugam e se reforçam mutuamente no processo de desenvolvimento
econômico e social: a) a aceleração do crescimento econômico e sua permanência
em trajetórias sustentáveis por um longo período de tempo – no caso brasileiro,
no mínimo por três décadas; b) distribuição de renda e acesso ao estoque de
riquezas (terras agricultáveis, recursos naturais e demais ativos produtivos e
financeiros) de forma equitativa por todos os membros da sociedade – o
pressuposto é o de que a desigualdade de renda e de oportunidades de ascensão
social é um resultado da elevada concentração de ativos em poder de uma minoria
de proprietários e detentores de capital, pois a renda e a riqueza disponível
provêm precisamente desses ativos; e c) implementação de estruturas de
bem-estar social através da oferta pública, ampla e universal de serviços de
saúde, transporte, educação e seguridade social (previdência e assistência
social) – porém, essas estruturas devem basear-se, principalmente, em valores
de solidariedade e compromisso social e não em valores puramente mercantis e
individualistas.
Essas três condições
precisam, no entanto, de recursos para seu financiamento adequado e a variável-chave
que as impulsiona é o investimento produtivo ou formação de capital fixo. O
investimento produtivo corresponde à aquisição de máquinas, equipamentos e
construções não-residenciais que materializam as estruturas de produção e de
distribuição do produto em um país ou região. Quanto mais alta a taxa de investimento
– razão entre o investimento e o PIB – maiores serão as taxas de crescimento
econômico e de geração de renda e de emprego, necessárias ao desenvolvimento
social.
Apesar de seu indubitável
potencial produtivo, derivado de sua dimensão geográfica continental e das disponibilidades
de recursos naturais e de força de trabalho, atualmente o Brasil apresenta
grande dificuldade para elevar suas taxas de crescimento e mantê-las altas e estáveis
por longos períodos. O próprio modelo econômico e a política econômica que
pressupõe, periódica e deliberadamente, abortam as expansões fortes da
economia, pois elas são tidas como arriscadas demais por seus supostos impactos
sobre a inflação e sobre as contas externas. Mas o principal motivo é a
existência de fatores internos à sua própria economia que tornam o investimento
pouco atrativo aos detentores de capital e não, como alardeado pela vulgata,
uma insuficiência de poupança interna ou a existência de um setor público
ineficiente e perdulário. Na realidade, dentre os principais fatores de
bloqueio do desenvolvimento brasileiro, encontra-se a vigência de um processo
particular de financeirização de sua economia. Mas o que significa financeirização
e quais suas consequências? As próximas seções procurarão expor suas
características e as formas que assume numa economia como a brasileira.
O fenômeno
da financeirização
O conceito de
financeirização – financialization,
em inglês – é relativamente recente na literatura econômica internacional. As
primeiras análises que o utilizaram apareceram nos anos 1990, e uma simples
busca na internet revelará a profusão de trabalhos que já versam sobre o tema,
com estudos sobre esse fenômeno para muitos países do mundo. A financeirização
manifesta-se pela vigência de um padrão de funcionamento das economias onde a
acumulação de riquezas desenvolve-se, de forma preponderante, por canais
financeiros e não através das atividades diretamente produtivas (indústria,
comércio e agricultura).
A possibilidade de
acumulação de riquezas a partir de operações bancárias e financeiras está
sempre presente em toda economia capitalista que apresente um grau mínimo de
desenvolvimento financeiro. No entanto, quando é generalizada mediante a
criação de um leque amplo de ativos financeiros que concorrem vantajosamente
com os ativos produtivos no que concerne à liquidez, risco e rentabilidade,
diz-se que a economia está sujeita a um processo de financeirização. Nessas
condições macroeconômicas e estruturais, os detentores de capital podem, com
facilidade e garantia do próprio Estado, revalorizar seus recursos através da
alocação em títulos e valores mobiliários (títulos da dívida pública, títulos
privados, ações, fundos, etc.), permanecendo líquidos e praticamente sem riscos
consideráveis em suas operações. A questão-chave, por suas consequências para o
desenvolvimento social e econômico, é que essa maior atratividade das operações
financeiras tende a reduzir as mobilizações de capital nos setores produtivos
da economia, já que estas são tidas como arriscadas demais em comparação às
alternativas de aplicação financeira das poupanças de famílias e de empresas.
Do ponto de vista do
debate acadêmico, a noção de financeirização tem o objetivo de proporcionar uma
perspectiva crítica aos pressupostos fundamentais da teoria econômica
convencional. Para esta teoria, os mercados financeiros são sempre eficientes,
ou seja, são sempre capazes de se auto-equilibrar e de compatibilizar os
interesses dos detentores de capital com o que é melhor para o conjunto da
economia e da sociedade. Porém, os estudos de caso têm mostrado que não é
exatamente isso o que ocorre. De fato, o aprofundamento dos processos de
financeirização, que a própria liberalização das finanças promove em escala
global, tem aumentado a frequência das crises bancárias e financeiras e
impedido as economias de alçarem trajetórias sustentáveis de alto crescimento
com distribuição equitativa da renda. Diferentemente do que ocorre com os
mercados de produtos, cuja demanda varia inversamente com os preços de venda –
nos mercados financeiros, quando os preços sobem, a demanda por ativos também
sobe. Por exemplo, a subida dos preços das ações estimula a sua compra e a
demanda por esses ativos cresce. Isso significa que as posições de equilíbrio
desses mercados de ativos financeiros, tão caras aos economistas, frequentemente
encontram-se no limite do estouro das bolhas especulativas e das crises
financeiras de alta intensidade, como a crise americana atual, e então já é
tarde demais.
O
caso brasileiro: financeirização e acumulação rentista
As pesquisas recentes sobre o atual
padrão de crescimento no Brasil apresentam evidências empíricas de vigência de
um processo particular de financeirização por juros, que subordina o Estado e
mantém a economia refém das expectativas dos mercados financeiros. Neste país,
o processo de financeirização reproduz-se, predominantemente, por ativos de
renda fixa e derivativos conectados direta ou indiretamente ao endividamento
público e sob as mais altas taxas reais de juros do planeta. A lógica de
valorização financeira e sua elevada rentabilidade sobrepõem-se aos setores
produtivos, afetando-lhes as formas de gestão e induzindo-lhes à contenção
salarial e ao baixo investimento em ampliação da capacidade produtiva
instalada. Paralelamente, a autonomia da política econômica e as margens de
manobra do Estado tornam-se muito reduzidas. As expectativas econômicas
voltam-se, prioritariamente, para o curto prazo, explicando-se assim a grande
importância atribuída às análises de conjuntura, nos últimos 20 anos.
Em consequência, horizontes temporais
mais longos, mas necessários aos projetos de investimento produtivo que
promovem o desenvolvimento econômico e social, são naturalmente postos em
segundo plano ou simplesmente descartados pelas decisões empresariais. Tais
investimentos de longa maturação são normalmente deslanchados apenas com o
apoio institucional e financeiro do Estado, a exemplo dos financiamentos públicos
do sistema BNDES. Nessas condições de elevado peso político do capital
financeiro sobre o aparelho de Estado, e dado o controle que possui sobre a
grande mídia, a formatação e condução da política econômica sofrerá forte
ingerência dos interesses das classes rentistas e do sistema
bancário-financeiro. Daí a ênfase unitária no combate à inflação e na
manutenção da estabilidade das finanças, convertendo o emprego e o crescimento
econômico em variáveis de ajustes para o alcance desse objetivo. Em outros
termos, menos crescimento e menos emprego são os remédios amargos da ênfase na
estabilidade financeira e de preços, quando a economia está sujeita à lógica da
acumulação rentista sob condições estruturais da financeirização por juros.
Consequências
da financeirização da economia brasileira
Entre os diversos impactos
prejudiciais ao desenvolvimento econômico e social, podem ser destacados os
seguintes:
a) Esterilização
da poupança de famílias e de empresas por seu
uso improdutivo – Mesmo que haja recursos disponíveis não consumidos que
poderiam ser canalizados para as atividades geradoras de renda e de emprego
(caso em que tais recursos convertem-se em poupança produtiva), as finanças
permanecem muito mais atrativas por seus ganhos rápidos, com baixo risco e alta
liquidez das operações. Em termos keynesianos, a financeirização exacerba e eleva a um paroxismo a preferência pela
liquidez dos agentes econômicos, afastando-os das imobilizações de capital nas
atividades produtivas, precisamente aquelas necessárias ao desenvolvimento
econômico e social. Esta característica expressa-se como mais uma das
contradições das políticas neoliberais: a pretensão de reduzir os papéis
econômicos do Estado choca-se frontalmente com a maior demanda por seus
serviços: por exemplo, a demanda de financiamentos a custo subsidiado e a demanda
por benefícios de seguridade social, já que o nível e a duração do desemprego serão
necessariamente maiores.
b) Perda
de autonomia da política econômica – A opção por um padrão de inserção
internacional que prioriza a liberalização financeira focada nas demandas de
valorização rentista dos capitais de curto prazo promove a expansão da dívida
pública interna. Isso ocorre porque o Estado tem que esterilizar o grande
volume de reservas internacionais e o faz mediante emissão de mais dívida
pública. O Estado é premido a tornar-se o “fiador” desse tipo de adesão neoliberal
aos mercados financeiros globais. Mas para isso, ele promoverá uma expansão sem
precedentes da carga tributária sobre as atividades produtivas e sobre o
trabalho, já que tem de pagar fluxos de juros sempre generosos ao setor
financeiro e às classes rentistas. Em consequência, a política fiscal e
monetária perdem eficiência e deixam de ser instrumentos de promoção do
crescimento econômico e de geração de emprego para tornarem-se instrumentos a
serviço da estabilidade financeira sob liberalização profunda da conta de
capitais.
c) Tendência
à forte apreciação real da taxa de câmbio – Se a excessiva valorização do real
frente ao dólar pode contribuir para a estabilidade de preços, o desenvolvimento
industrial e dos setores de alta tecnologia fica comprometido. Os dados mostram
que os setores que mais investem hoje no Brasil são os intensivos em recursos
naturais e em escala, pois são setores pouco sensíveis ao câmbio. Não é à toa
que, atualmente, as commodities representam mais de 60% da pauta de exportações
brasileiras, enquanto que os produtos de maior conteúdo científico-tecnológico e
valor agregado são supridos pelos países asiáticos, que sabem o quão importante
são esses bens para o seu desenvolvimento.
d) Pressões
recorrentes sobre o equilíbrio externo – A apreciação cambial, decorrente da
liberalização dos fluxos de capitais, gera perda de competitividade externa e
isso pressiona o balanço de pagamentos (registro contábil de todas as
transações econômicas e financeiras do Brasil com outros países), exigindo mais
aumentos das taxas de juros para manter atrativa a economia brasileira. Mas isso
conduz novamente a mais apreciação cambial e, em seguida, a mais aumento das
taxas de juros, num círculo vicioso que se reproduz endogenamente.
e) Intensificação
da concentração funcional e setorial da renda – O atual modelo econômico
subordinado à lógica e natureza da acumulação financeira em mercados globais
utiliza de forma recorrente os aumentos de taxas de juros, numa economia onde
esta variável já se encontra muito acima dos padrões internacionais. A elevação
dos juros transfere renda dos devedores (em geral assalariados) para os credores
(detentores de capital e classes rentistas, proprietárias de títulos da dívida
pública), aprofundando ainda mais a concentração funcional da renda em favor
dos lucros. Além disso, juros mais altos também promovem a transferência de
renda das atividades produtivas para as empresas financeiras, contribuindo para
a concentração setorial da renda.
Embora
a valorização e a acumulação de riquezas na órbita financeira sejam legítimas
nos quadros das economias capitalistas, pois suas operações obedecem à mesma
lógica mercantil que comanda as demais atividades econômicas, a financeirização
elevou o poder político das classes rentistas e do sistema financeiro sobre os
governos. A hegemonia das finanças privadas, subordinando as finanças públicas
e influenciando as decisões de política econômica, torna-se flagrante. Basta observar como os mercados
financeiros monitoram tudo, todos os passos do governo, como se a economia
tivesse de se estruturar apenas ou prioritariamente para eles, e não para o
mundo do trabalho, da produção industrial, da agricultura e dos demais serviços
também. Além disso, as principais características institucionais do atual
modelo econômico brasileiro lhes são bem vindas e contam com o amplo apoio da
mídia para a sua sedimentação ideológica e perenidade.
Na medida em que a financeirização reproduz
os limites estruturais do desenvolvimento brasileiro, como sair dessa armadilha
econômica que conspira contra o futuro do país? A saída é difícil, mas não
impossível. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que esse fenômeno e a dominância
financeira que implica reproduzem-se mediante estruturas institucionais
específicas. A própria forma de inserção internacional sem controles
significativos sobre os fluxos de capitais e com mercado de derivativos
profundo é uma componente-chave na arquitetura institucional que define esse
padrão de acumulação de riquezas. A política econômica baseada no tripé
superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação é outra peça que lhe é
complementar e necessária à sua reprodução.
Um novo modelo ou padrão de crescimento
econômico pode surgir a partir de nova institucionalidade que promova o
investimento produtivo, ao garantir um ambiente macroeconômico com baixas taxas
de juros e câmbio competitivo. Estudioso dos padrões de desenvolvimento econômico,
o economista francês Robert Boyer percebeu uma diferença crucial: no período de
prosperidade do pós-guerra (1945-1975), as finanças privadas estavam a serviço
do crescimento e do desenvolvimento econômico. Na atualidade, voltam-se prioritariamente
para os ganhos fáceis com operações especulativas e de curto prazo, aumentando
o potencial de crise e seus efeitos destrutivos sobre a economia e a sociedade.
Seriam, então, necessárias novas regras para o jogo das finanças,
readequando-as às necessidades sociais e a um futuro melhor para as nações.
Miguel Bruno é
coordenador na Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea, professor Adjunto
da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e professor e pesquisador
licenciado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE.
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