Vivemos num contexto em que os dispositivos eletrônicos de comunicação em rede são cada vez mais presentes em nossas vidas, tanto nas tarefas profissionais, como nas atividades do não-trabalho. De fato, talvez o computador seja o objeto que melhor agencie a superação da distinção entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho, muitas vezes realizando misturas e interpenetrações entre eles, tornando cada vez mais difícil a delimitação. Um dos slogans mais comuns nos anúncios dos novos computadores pode ser traduzido na seguinte frase: “ o trabalho e o lazer no mesmo lugar! ”.
A superação dessa fronteira talvez seja uma das grandes transformações provocadas pela combinação dos dispositivos eletrônicos-digitais à comunicação do tempo-real. Do ponto de vista econômico, trata-se da possibilidade de codificação de todas as ações mediadas pelo computador em uma informação passível de ser mensurada (ou assimilada como valor afetivo) e transformada em valor monetário. Tal transformação dá-se num contexto de profunda mutação do capitalismo, em que as atividades de caráter imaterial (cognitivas, comunicacionais, relacionais) adquirem maior importância nos processos de geração de valor (Gorz, 2005). Ora, a combinação de uma existência cada vez mais mediada pelas tecnologias de comunicação em rede, somada às tendências de apropriação privada do commons1 inaugurado pelo digital, cria a possibilidade de transformar quase a totalidade de nossas vidas em mercadorias, bem como transformar as mercadorias numa economia de afetos, intercambiáveis e descartáveis.
O risco existe, justamente, sob uma forma de convergência de três tendências em curso: a) quando nossas vidas (ou parte de nossas ações, comportamentos, relacionamentos) tornam-se passíveis de serem traduzidas e codificadas sob a forma digital, na medida em que qualquer ação no computador é geradora de informações sobre seu usuário; b) quando a esfera macropolítica se reduz à manutenção da governabilidade, esvaziando a política através do predomínio de uma lógica gestionária, transformando o cidadão político em consumidor ou em categorias biopolíticas (Foucault, 1997) – a articulação das tecnologias digitais e biopoder, através da modulação infinitesimal gerada pela informação digital, permite o refinamento do controle; c) quando o estatuto do humano é dissolvido pela sua redução a um princípio informacional que fundamenta sua constituição psíquica, social, cognitiva e afetiva (Santos, 2003).
O desenvolvimento das tecnologias de informação digital é um dos elementos que une essas tendências. De um lado, o digital coincide com a emergência das novas formas de produção e acumulação econômica, que dão forma ao capitalismo cognitivo e que, para aqueles que estão inseridos via trabalho ou lazer nas redes telemáticas (na realidade, aqui essa distinção implode), se traduz numa existência de “trabalho total”, com a consequente possibilidade de mercantilização da própria existência. De outro lado, o digital coincide com a emergência das novas formas de exercício do poder: biopoder aplicado pela tecnocracia nos moldes das sociedades do controle (Deleuze, 2007); o império como sistema de convergência estatal-corporativa que integra as tecnologias de comunicação e cria os próprios mecanismos de auto-produção de legitimidade (Hardt; Negri, 2001); as sociedades “protocolares”, como expressão tecnológica da gestão imperial realizada através das redes telemáticas (Galloway, 2004); ou então nas diversas formas de governança sem governo, ou dos estados de exceção (Paoli, 2007; Agamben, 2002).
Ao mesmo tempo, é graças à importância adquirida pelas tecnologias digitais no interior desses diversos processos sociais que o ciberespaço e o universo da simulação visual (como o domínio do virtual) tornam-se um importante palco das disputas políticas.
Atualmente, as conflitos em torno das condições de comunicabilidade no ciberespaço versam sobre as condições de produção do futuro. Na medida em que, tanto o imaginário como os macroprocessos econômico-financeiros estão imbricados através da estrutura comunicacional digital, gerir as possibilidades de intervenção, nessa esfera, significa disputar as possibilidades de fazer emergir comportamentos desejados e convergentes que passam a definir o que é o real (fenômenos de emergência e/ou enxame). O melhor exemplo disso é a relação entre os “estados de humor” do mercado financeiro, e as expectativas que definem o comportamento dos consumidores e investidores.
Se, por um lado, as tecnologias de simulação ampliam as possibilidades de imaginarmos e compartilharmos “outros mundos”, por outro, a simulação dirigida converte-se numa potente máquina de produção de realidades e, ao nível psíquico, numa máquina abstrata de pensamento. Essa é a tensão que dá forma à política do regime de simulação.
Outro desdobramento dessa centralidade adquirida pelas tecnologias digitais é a virtualidade (no sentido de “em potência”) do ciberespaço como um espaço-tempo que cria uma nova partilha no mundo sensível, uma outra composição do espaço social. Só para citar alguns exemplos: a divisão entre esfera privada e esfera pública, trabalho e não-trabalho, produtores e consumidores, difusores e receptores, os novos modos de existência, relacionamento e subjetivação num contexto de elevada conectividade. Ou mesmo na modificação da relevância e hierarquia dos atores que atuam no ciberespaço, em termos das condições de sua visibilidade (por exemplo o blog de um indivíduo e o portal de uma grande empresa de notícias; o sítio oficial de um governo e os sítios de ativistas dissidentes).
A formação desse ciberespaço estará, em parte, determinada por condicionantes sociotécnicos: os protocolos de comunicação; pela propriedade dos meios de acesso à rede e da sua infraestrutura; pelo regime de propriedade sobre os bens imateriais que circulam através dela; e pelo regime jurídico que define os direitos e deveres dos atores que atuam nesse território. Trata-se, em parte, de um problema relativo à disputa pela linguagem (o código) e seus usos, posto que é ela que define o campo de visibilidade e de comunicação. É por isso que interrogar as condições de produção e a configuração dos dispositivos técnicos que asseguram a comunicação na rede torna-se uma batalha eminentemente política. Assim, a luta pela linguagem e pela liberdade de comunicação, face às tendências de apropriação dos novos bens imateriais inaugurados pelas redes digitais, ganham novas proporções.
Se a convergência das tendências de apropriação imaterial e controle social – representadas pelo capitalismo cognitivo, pelo biopoder tecnocrático e pela “ metafísica da informação ” (Martins, 2006), presente na versões mais ortodoxas das ciências cibernetizadas da mente – apontam para a possibilidade de mercantilização e domínio da totalidade da vida, só resta afirmar a potência da vida em sua totalidade. Nos dizeres de Foucault e Deleuze: contra o poder sobre a vida, afirmar o poder da vida! Trata-se de assumir a potência da vida em sua integralidade (como um campo de possibilidades indeterminadas) e a própria linguagem como territórios políticos.
Tensionar a linguagem significa questionar a própria formação do campo de enunciação e visibilidade. É a linguagem, tanto a palavra como o código na programação digital, que define o que entra ou não no campo visível. Cada palavra, cada conceito, introduz uma nova “entidade” no mundo, uma nova “dobra” ou composição do sensível. Em se tratando da emergência do capitalismo cognitivo, é o próprio pensamento (antes interiorizado) que se torna passível de ser exteriorizado e de ser convertido em força de trabalho distribuída (aqui nos referimos ao general intellect de Marx2), graças aos mecanismos de captura-protocolar das redes telemáticas.
No entanto, as condições de “visibilidade” ou “exteriorização” desse pensamento não estão pré-definidas. A possibilidade de apropriação desse commons e sua conversão em força de trabalho dependem de uma capacidade de “ler” e “interpretar” as informações. Finalmente, somente quem detém o acesso ao código que define a fronteira entre o visível e o invisível é que pode se apropriar (exclusivamente ou não) desse bem. É por isso que as discussões em torno da liberdade de conhecimento e do livre acesso à informação se tornam tão centrais, pois é aqui que reside a disputa pela configuração do médium, as definições da fronteira do visível e do dizível e, portanto, o campo de capturas, resistências e também de criações.
Conforme problematizado por Agamben, a “ política é a exibição de uma ‘medialidade', ela torna visível um meio enquanto tal. Não é a esfera de um fim em si, nem de meios subordinados a um fim, mas a de uma ‘medialidade' pura e sem fim como campo da ação e do pensamento humano ” (Agamben, 1995). Da mesma forma, essa é a razão que faz com que a constituição do ciberespaço – como uma “superfície” medial de outra qualidade, capaz de produzir uma nova partilha do mundo sensível – colida, frontalmente, com os fundamentos que legitimam as instituições do mundo material (propriedade, cidadania, território-nação).
Ao analisar o ganho de autonomia e centralidade da esfera comunicacional, em sintonia com sua transformação em fator central do ciclo produtivo, Agamben afirma que a comunicação como tal se torna o principal problema. O quê está em jogo não é a “comunicação enquanto destino e fim específico do homem ou como condição lógico-transcendental da política (o que é o caso nas pseudo-filosofias da comunicação), mas a única experiência material possível do ser genérico (isto é, a experiência da comparution ou, em termos marxistas, do general intellect)” (Agamben, 1995). Ao colocar a própria linguagem como o plano de imanência, onde a experiência política contemporânea se dá, Agamben afirma que as disputas pela definição do uso do “comum” se tornaram o problema político essencial:
Somente se conseguirem articular o lugar, os modos e os sentidos dessa experiência do evento da linguagem como uso livre do Comum e como esfera dos puros meios, é que as novas categorias do pensamento político - "comunidade dos sem obra", "igualdade", "fidelidade", "intelectualidade de massa", "povo por vir", "singularidade qualquer" – poderão dar uma forma à matéria política que nos encara (Agamben, 1995).
A definição em torno dessa(s) “forma(s)” talvez seja um dos problemas mais desafiantes para o pensamento político contemporâneo. Em se tratando das expressões e formas de vida da existência cibercultural, que estão surgindo nesse incipiente momento de transição medial, há diversas experiências no campo artístico, cultural e social que reivindicam outras formas de uso e compartilhamento do commons que foi potencializado pelas tecnologias digitais, assim como há importantes exemplos que fazem um uso renovado da linguagem e das possibilidades de organização social inauguradas pelas redes telemáticas. Todavia, trata-se de uma situação de fronteira em que apenas somos capazes de vislumbrar as frágeis fagulhas de modos de vida que, por hora, situam-se num limiar instável entre a precariedade e as novas institucionalidades, entre a servidão, a sujeição e a emancipação, a expropriação, a captura e a livre produção do commons.
Henrique Zoqui Martins Parra é graduado em ciências sociais (USP), mestre em sociologia (USP) e doutor em educação (Unicamp). Atualmente, dedica-se a investigar as condições de produção de conhecimentos no contexto de expansão das tecnologias digitais de informação e comunicação. Destaque para a relação homem-máquina (interfaces e linguagem visual); as configurações sociopolíticas da tecnologia; e para a relação entre instituições sociais, economia e conhecimento.
Notas
1 Inspiramo-nos aqui na conceituação, elaborada por diversos atores, em que um commons surge como bem público intangível, não-rival e não-exclusivo, continuamente produzido e partilhado por uma determinada comunidade através das redes digitais (Benkler, 2005; Boyle, 20003).
2 Sobre o general intellect, Paolo Virno: “By general intellect Marx means science, knowledge in general, the know-how on which social productivity relies by now. The politicization of work (that is, the subsumption into the sphere of labor of what had hitherto belonged to political action) occurs precisely when thought becomes the primary source of the production of wealth. Thought ceases to be an invisible activity and becomes something exterior, "public," as it breaks into the productive process” (Virno, 2004, p.64).
Referências
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_____. Notas sobre a política. Tradução Mauricio Rocha. 1995. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 de maio de 2008.Texto original publicado em: Moyens sans fins, notes sur la politique. Paris: Payot et Rivages, 1995. p. 121-130.
Benkler, Yochai. The wealth of networks: how social production transforms markets and freedom. Yale University Press, 2006.
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Deleuze, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2007.
Foucault, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France 1970-1982. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
Galloway, Alexander. Protocol: how control exists after decentralization. Cambridge: MIT Press, 2004.
Gorz, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.
Hardt, Michael; Negri, Antonio. Império. São Paulo: Record, 2001.
Martins, Hermínio. Reflections on the metaphysic of information and the prospects for the human condition. In: Proceedings of the International Congress on Digital Culture and Citizenship, Madrid, 2004. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid, 2006.
Paoli, Maria Célia. O mundo do indistinto: sobre gestão, violência e política. In: OLIVEIRA, Francisco; RIZEK, Cibele. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 221-256.
Santos, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003.
Virno, Paolo. A grammar of the multitude: for an analysis of contemporary forms of life. Semiotext(e). MIT Press, 2004. Disponível em: www.semiotexte.org. Acesso em: 25 de março de 2006.
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