A palavra enoturismo deriva da união do termo grego oînos, que significa vinho, e do turismo, termo que carrega um significado de errância, de nomadismo, de um eterno ir e vir. O enoturismo tem nos deslocamentos motivados pelo universo do vinho seus pressupostos e, embora pareça uma prática relativamente recente, quando se analisa por um viés temporal, é uma das formas de deslocamento mais antigas da humanidade, não com a interpretação turística moderna, mas do ponto de vista do comércio da bebida – a exemplo da economia romana, das migrações, explorações e das peregrinações religiosas.
O enoturismo permite várias possibilidades de interpretação, desde o ponto de vista cultural, patrimonial e econômico dos territórios produtores, até os aspectos simbólicos do consumo e as representações dos espaços vividos pelos turistas. Como definição, trata-se de um fenômeno que pressupõe o deslocamento de sujeitos motivados pelas propriedades organolépticas e por todo o contexto de degustação e elaboração, bem como a apreciação das tradições, cultura, gastronomia, paisagens e tipicidades das regiões produtoras. É um fenômeno dotado de subjetividade, em que a principal substância que o configura é o encontro com quem produz uvas e vinhos (Valduga, 2012).
Pode-se afirmar que há um componente pedagógico intrínseco a toda atividade turística e, quando relacionada ao vinho, os aspectos que permitem um ganho cultural são evidenciados. Nesse sentido, o enoturista, ou o turista do vinho, não é obrigatoriamente um consumidor, mas poderá vir a ser. Da mesma maneira, deslocamentos relacionados somente à compra de vinhos não podem ser, necessariamente, classificados como enoturismo.
Trata-se de uma prática turística recente, tanto no chamado “velho mundo” do vinho – França, Espanha, Itália, Portugal, entre outros – quanto no “novo mundo” – América Latina, Estados Unidos, Austrália. O Brasil foi um dos pioneiros no desenvolvimento da atividade turística motivada pelo universo do vinho no novo mundo, com deslocamentos datados das primeiras três décadas do século XX, quando eventos agrícolas foram realizados no Rio Grande do Sul com o objetivo de mostrar o que era produzido regionalmente. A atividade foi fortalecida a partir dos anos 1930, com um evento que serviu de base para um conjunto de grandes eventos no país, a Festa da Uva de Caxias do Sul. O fortalecimento da atividade se deu a partir de meados dos anos 1960, com a abertura de algumas vinícolas à visitação na Serra Gaúcha, com destaque para o município de Bento Gonçalves (Valduga, 2014), que criou em 1967 a Festa Nacional do Vinho – Fenavinho.
Os modelos de exploração do enoturismo no Brasil e no mundo, em geral, tendem a seguir os modelos de produção local do vinho, isto é, as regiões que trabalham com produção em larga escala e que atendem ao mercado global trabalham uma oferta de atividades turísticas que visam a atender grandes massas de turistas do vinho. Nesse contexto, pode ser exemplificado o caso das regiões vinícolas da Califórnia, nos Estados Unidos, que chegam a receber 4,5 milhões de enoturistas por ano, perdendo em público apenas para a Disneylândia (Hall et al, 2004). Por outro lado, regiões de produção de escala menor tendem a acolher os turistas de outra maneira, em grupos menores e com maior relação entre produtores e turistas. Nesse caso, pode-se citar o exemplo do Vale dos Vinhedos, a principal região vinícola brasileira, que recebe anualmente mais de 280 mil pessoas.
O Brasil é o 15º maior produtor de vinhos do mundo em volume (OIV, 2015), porém, contrariamente à maioria dos países tradicionais produtores, o Brasil segue tendo um incremento anual na produção, que pode ser evidenciado a partir da consolidação e desenvolvimento de novos polos produtores, desde a metade sul do estado do Rio Grande do Sul até o nordeste brasileiro. Essa ampliação geográfica da produção se reverte em novas práticas de enoturismo a partir da compreensão das potencialidades que a atividade tem com a venda direta de produtos, divulgação das marcas, educação do consumidor e geração de empregos e renda. Nesse contexto, cabe apresentar as principais regiões e a sua oferta turística, iniciando pela principal região brasileira, o Vale dos Vinhedos.
O Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, foi a primeira região brasileira demarcada com Indicação Geográfica de Procedência, em 2001, e a certificação de Denominação de Origem, em 2009. Essas iniciativas de patrimonialização local, além de qualificar a produção, visaram a proteção e valorização das práticas desenvolvidas localmente, entre elas a do enoturismo. Atualmente são 27 vinícolas abertas à visitação, 15 restaurantes, hotéis, lojas de artesanato e produtos locais, totalizando uma cadeia integrada de 70 empresas, que oferecem distintas experiências turísticas. Entre as principais destacam-se: visitas com degustação; passeios e trilhas de bicicleta ou a pé; tratamentos vinoterápicos; meia maratona (wine run); colheita de uvas e pisa; degustações especiais, almoços e jantares harmonizados.
A contemplação das paisagens vitícolas (winescape) é um atributo importante do Vale dos Vinhedos e das regiões produtoras em geral, configurando-se em elemento essencial do enoturismo. Os aspectos paisagísticos são tão importantes a ponto de, nos últimos 15 anos, 11 regiões vinícolas terem suas paisagens classificadas pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio da Humanidade (Pérard et al, 2014). Na Serra Gaúcha, 28 municípios desenvolvem atividades turísticas ligadas ao vinho, com destaque para Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Caxias do Sul, Farroupilha, Garibaldi e Monte Belo do Sul. Somente Bento Gonçalves recebe mais de um milhão de turistas por ano, tendo como principal motivação o universo do vinho.
A metade sul do Rio Grande do Sul, berço da vitivinicultura no estado, ampliou sua produção a partir dos anos 1970, porém, somente a partir dos últimos 15 anos é que houve uma qualificação importante da produção e a estruturação de serviços visando ao turismo. Os principais municípios produtores são Bagé, Candiota, Dom Pedrito, Itaqui e Santana do Livramento. Apresenta uma paisagem de grandes extensões, com vinhedos que partilham espaços com a pecuária e a produção de arroz. Entre as peculiaridades regionais está a característica de fronteira com o Uruguai e Argentina, a cultura do gaúcho e da lida com o gado, e o potencial importante de atração de público internacional. Diversas vinícolas nesses municípios oferecem visitação com degustação, passeios entre os vinhedos, espaços para eventos, restaurantes entre outros atrativos.
Santa Catarina também passa por um processo de ampliação da vitivinicultura, iniciado nos últimos 15 anos, e implantação e desenvolvimento do enoturismo. Destacam-se as regiões que têm na altitude sua principal característica, nos municípios de Água Doce, Videira, Treze Tilias, Lages e São Joaquim. São Joaquim apresenta uma concentração de vinícolas importantes, com oferta de atrativos turísticos, restaurantes e passeios entre os vinhedos. O frio intenso no inverno faz dessa região a mais fria do Brasil, com seguidas ocorrências de neve, conformando uma paisagem única no país.
O estado do Paraná tem desenvolvido atividades ligadas ao enoturismo no curso dos últimos 10 anos. Contudo, a maior parte da matéria-prima para a elaboração de vinhos é produzida no Rio Grande do Sul. O município de Colombo tem o Circuito Italiano de Turismo Rural, e mescla atividades agroindustriais com produção de hortaliças orgânicas com o comércio de vinhos. O município de São José dos Pinhais tem o roteiro turístico Caminho do Vinho, em que nove vinícolas recebem os visitantes. A oferta é complementada ainda por quatro cafés coloniais, chácaras de produção de hortaliças, pesque e pague, entre outras atividades. A maior parte dos vinhos produzidos são comuns, provenientes de uvas vitis labrusca, e o público visitante é, sobretudo, regional. Piraquara e Araucária, municípios da região metropolitana de Curitiba, apresentam experiências singulares no enoturismo paranaense. Em Piraquara há uma empresa que faz o processo de maturação de espumantes num túnel de trem desativado, num maciço de granito com 65 metros de profundidade. A empresa ainda oferece restaurante e um café/sala de chá numa litorina desativada e preparada para acomodar as pessoas. Em Araucária, uma vinícola elabora vinhos e espumantes com vinhedos próprios, e é possível visitá-los mediante agendamento. No oeste do Paraná, em Toledo, há um empreendimento que elabora vinhos finos e recebe pessoas para visitação, sendo referência regional.
Em São Paulo, importantes iniciativas de enoturismo ganham força a partir do incremento da qualidade de produção e da estrutura turística. O município de São Roque, de colonização portuguesa, é referência regional no enoturismo, aliando a gastronomia de qualidade, produção de alcachofra roxa e vinhos. Tem diversos roteiros turísticos como o Roteiro do Vinho, o Roteiro Cultural, o Roteiro de Lazer e Aventura. Oferece 22 opções de hospedagem, complexo gastronômico, passeios a cavalo, entre outras atividades. Também em São Paulo, Jundiaí e Louveira têm produção significativa de uvas e integram o Circuito das Frutas, com oferta turística como parques temáticos, agroturismo, festas de diversas frutas, como a uva. Jundiaí é um dos maiores polos de produção de uvas de mesa para consumo in natura do país.
No nordeste há um polo emergente na vitivinicultura e no enoturismo do Brasil. Trata-se do Vale do Rio São Francisco, que une Bahia e Pernambuco. O sertão semiárido proporciona um sistema de cultivo de uvas distinto de quase todas as regiões vinícolas mundiais, e, com irrigação, os vinhedos podem produzir até três safras por ano. Nesse cenário, um enoturista, independente da época do ano em que se deslocar, encontrará uvas in natura e colheita, o que não ocorre em outras regiões mundiais. Outras frutas são produzidas e exportadas como manga, coco, abacaxi, e as uvas são exportados para quase todos os continentes. Do ponto de vista do turismo, 30 a 40% do público que visita é estrangeiro, motivado pelas peculiaridades locais e pela tecnologia agrícola.
As principais vinícolas estão localizadas nos municípios de Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, em Pernambuco, e no município de Casa Nova, na Bahia. Lagoa Grande tem sete vinícolas, que tem como característica as paisagens do semiárido e o rio São Francisco. Nesse município é realizada a Vinhuva Fest, Feira do Vinho e da Uva do Nordeste. O município de Casa Nova tem no queijo de cabra seu produto cultural, aliado mais recentemente ao vinho. Nesse município, há um roteiro turístico denominado Vapor do Vinho, um passeio de barco que passa por diversos municípios e empreendimentos, oferecendo música regional, poesia e degustações de vinhos, espumantes e destilados nos empreendimentos vinícolas por onde passa.
Do nordeste ao sul do Brasil existem experiências distintas de enoturismo. Certamente há outras iniciativas nesses e em outros estados, contudo, nessa breve exposição foram apresentados alguns casos mais significativos. O enoturismo no Brasil vai desenvolvendo e diferenciando a sua oferta na medida em que as regiões vinícolas, novas e tradicionais, incrementam sua produção e ampliam a sua participação no mercado nacional e internacional.
Contudo, o patrimônio e a cultura do vinho no Brasil de maneira ampliada requerem investimentos em pesquisa e ensino de qualidade, a exemplo de outros países, como França, Portugal, Espanha, entre outros. Há carência de informações, dados e conhecimentos nesse campo, e o patrimônio do vinho no Brasil, com poucas exceções, vai se perdendo a cada ano. O enoturismo, da mesma maneira, requer atenção especial de órgãos governamentais, dada a sua capacidade de gerar empregos, renda e satisfação pessoal, tanto de turistas quanto de quem atua na área profissionalmente. Existe a necessidade de criação de um observatório do enoturismo no Brasil, que permita somar esforços para a atividade e para as regiões vinícolas, integrando e compartilhando experiências exitosas no fortalecimento da cadeia produtiva.
Vander Valduga é mestre em turismo e doutor em geografia. É professor do PPGTUR/UFPR e coordenador do Grupo de Pesquisa Enoturismo, Cultura, Gastronomia, Patrimônio do Vinho e Desenvolvimento. vandervalduga@gmail.com
Referências
Hall, C. M.; Sharples, L.; Cambourne, B. & Macionis, N. (Eds.). (2004). Wine tourism around the world, development, management and market. Oxford, Hardcover.
OIV – Organisation Internationale de La Vigne et du Vin (2015). Bilan de l'OIV sur la situation vitivinicole mondiale. Disponível em www.oiv.int/oiv/info/fr_vins_effervescents_OIV_2014? lang=fr. Acesso: 27 de maio, 2015.
Pérard, J.; Gravari-Barbas, M.; Gândara, J. M. G.; Valduga, V. & Jacquet, O. (2014). “Edition spéciale: Vin, patrimoine, tourisme et développement: convergence pour le débat et le développement des vignobles du monde”. Revista de Cultura e Turismo - CULTUR, ano 08 - nº 03.
Valduga, V. (2012). “O desenvolvimento do enoturismo no Vale dos Vinhedos (RS/Brasil)”. Revista de Cultura e Turismo. Cultur: ano 06, nº 02.
Valduga, V. (2014). “El enoturismo em Brasil: un análisis territorial en el Estado de Rio Grande do Sul (Brasil) desde 1870 hasta 1970”. Estudios y Perspectivas en Turismo. V. 23, pp. 278-304.
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