REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
As designações da morte no Cafundó* - Carlos Vogt
Reportagens
Transplante de órgãos no Brasil: questões éticas e legais
Gabrielle Adabo e Roberto Takata
As histórias que os mortos contam
Cassiana Purcino Perez e Simone Caixeta de Andrade
A arte de festejar e ritualizar a morte
Ana Paula Zaguetto e Janaína Quitério
O direito à morte
Carolina Medeiros
Morte em números: as principais causas de óbito no Brasil e no mundo
Tatiana Venancio
Artigos
A morte como tabu
José Carlos Rodrigues
Uma nova forma de luto: os efeitos da revolução tecnológica
Regina Szylit Bousso, Maiara Rodrigues dos Santos, Fernando Bousso e Regis Siqueira Ramos
A morte: relações com a bioética e a religiosidade
Paulo Franco Taitson, Laura Raiany Tereza Freitas Gomes
Desigualdades na morte: narrativas de mulheres do Sertão Central de Pernambuco
Luciana Kind e Rosineide Cordeiro
Diálogos entre a vida e morte nos filmes de zumbis: aproximações e disrupções
Paula Gomes
Tanatografia e morte literária: decomposições biográficas e reconstruções dialógicas
Augusto Rodrigues da Silva Junior
Resenha
A dor em palavras
Juliana Passos
Entrevista
Maria Julia Kovács
Entrevistado por Patrícia Santos
Poema
Identidade
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
O direito à morte
Por Carolina Medeiros
10/11/2014
Primeiro de novembro de 2014, Portland, (Oregon - EUA), a jovem americana Brittany Maynard coloca fim à sua vida, aos 29 anos, por meio de suicídio assistido, decisão tomada em janeiro deste ano após descobrir que o câncer cerebral era irreversível. A história que ganhou as manchetes ao redor do mundo não é um caso isolado, e serviu para reacender o debate. Em países como Uruguai, Bélgica, Holanda e Suíça, onde a eutanásia e o suicídio assistido são legalizados, muitos são os casos semelhantes.

De acordo com um levantamento realizado por Leocir Pessini, professor de bioética na Universidade São Camilo e autor de diversos livros e artigos sobre a eutanásia, a Suíça recebeu, entre 2008 e 2012, 611 não-residentes, a maioria alemães e britânicos, para a prática do suicídio assistido. Esses pacientes sofriam de doenças como paralisia motor neural, Parkinson e esclerose múltipla, e tinham entre 23 e 97 anos.  Outro dado relevante apontado por Pessini é que, nesse período, o número de suicídios assistidos dobrou na Suíça, que registrou pacientes vindos da França (66), Itália (44), EUA (21), Áustria (14), Canadá (12), Espanha (8) e Israel (8).

Esse universo não é complexo apenas pelas polêmicas em torno do que é permitido ou não, mas também pela distinção de práticas. A eutanásia e o suicídio assistido é quando se coloca fim à vida para que o paciente não sofra. Do lado oposto está a distanásia, ou as intervenções médicas a fim de prolongar o processo de morte, ainda que gerem grande sofrimento ao paciente e que resultem em vão. Entre uma e outra estaria a ortotanásia, ou a “boa morte”, com garantia do bem-estar, na medida do possível, nos momentos finais, com a suspensão de procedimentos que estão prolongando a vida, sem chance de cura.

Ainda que no Brasil a eutanásia não seja permitida legalmente, muito se discute sobre o tema, como no Programa de Pós Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da ENSP – Fiocruz (Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca). De acordo com o médico e coordenador do curso, Sergio Rego, a bioética tem permeado essas discussões, e defende que a decisão de pôr fim à vida não pode ser exclusiva do médico. “Como médico, não cabe a mim resolver se o outro vai morrer, e mais, defendo que a família não pode contrariar a decisão do paciente. Nesses casos, depende-se do nível de confiança paciente – médico – família”, diz.

As delimitações entre a prática médica e a ética suscitam vários questionamentos. Diante disso, pode-se pensar na definição dada por Reinaldo Ayer, médico e professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP, para quem “em medicina não se pode fazer uma separação tão dramática ou tão pontual entre o que é a vida e o que é a morte, tudo é um processo. Em geral, o médico assume uma posição de enfrentamento à morte, considerada sua ‘maior adversária’. Desse posicionamento pode decorrer a luta desenfreada”.

Rego aponta que, dentre todos os procedimentos para pôr fim à vida, não existe o mais grave ou menos grave. “A ortotanásia, ou eutanásia passiva, é a menos agressiva, uma vez que consiste em apenas administrar cuidados paliativos, não fazendo uso de recursos que prolonguem a vida. Um exemplo de procedimento é o controle da respiração”, explica.

Há ainda outros pontos pertinentes sobre o assunto que, de acordo com os especialistas em bioética, devem ser levados em conta na hora de analisar a eutanásia, como o fato de a sociedade arcar com gastos médicos de uma pessoa que não vai viver muito tempo, ou prolongar sem nenhuma perspectiva de vida ou qualidade dela.

No campo jurídico brasileiro as posições são mais radicais, uma vez que o Estado condena qualquer tipo de método para colocar fim à vida como a eutanásia, considerado homicídio doloso pelo Código Penal, quando há intenção de matar. Logo, todo aquele que prestar assistência será responsabilizado pelo crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.

Já para a religião, discutir a questão da eutanásia é fundamental. Para Pessini, que além de especialista em bioética, é também padre, “são as religiões que dão significado ao processo de morrer, ou do além morte ou vida. A ciência descreve fenômenos vitais e/ou mortais, mas quem dá sentido, é o mundo religioso”, aponta. Para ele, a eutanásia deve ser encarada como uma questão importante no século XXI, uma vez que não temos mais uma instância "mística" que veja sentido numa vida marcada pela dor, sofrimento, dependência ou prostração. “A vida só vale ser vivida ser for marcada pelo prazer e com boa qualidade. O contrário é uma experiência dolorosa que não queremos nem conversar. Viver nessas condições não tem sentido, diz a ideologia corrente”.

Pessini lembra ainda que tem aumentado o interesse por humanizar o processo de morte, o que tem motivado os países a repensar suas políticas públicas acerca dos cuidados no fim da vida. Mas vale ressaltar que, tanto para a religião quanto para a Organização Mundial da Saúde (OMS), isso ainda significa apenas defender o uso de recursos paliativos no final da vida. A OMS aprovou, em maio deste ano, uma resolução que prevê “fortalecer os cuidados paliativos como um componente integrante do tratamento contínuo ao longo da vida”. Tal resolução encoraja os países membros a aumentar os cuidados paliativos em seus sistemas de saúde; ampliar a formação de profissionais especializados; assegurar medicação necessária, incluindo aquelas que aliviam a dor; e aumentar sua assistência para os países membros desenvolverem e implantarem os cuidados paliativos. Já o Vaticano se manifestou contrariamente em relação ao caso de suicídio assistido da americana e afirmou, por meio do monsenhor Ignácio Carrasco de Paula, chefe da Academia Pontífica para a Vida, que “dignidade é diferente de colocar fim à própria vida”.

A opção por cuidados paliativos reacende uma discussão proposta por Sergio Rego, que indaga se é correto a sociedade arcar com os gastos desmedidos e infrutíferos para manter alguém vivo. Por que prolongar uma vida sem perspectivas? E por que fazer qualquer coisa para manter o indivíduo vivo? Rego defende que o ideal é que todos fizessem uma declaração deixando claro para médicos e familiares a forma como deseja ser tratado ao fim da vida. E, claro, que a legislação permitisse essa liberdade de escolha.