10/03/2014
No início do século XX, duas teorias passaram a explicar todos os fenômenos que regem o Universo: a Teoria da Relatividade Geral e a Mecânica Quântica. A partir delas, a física entrou numa nova fase: a chamada física moderna. Essas teorias buscam explicar todos os fenômenos conhecidos, regidos pelas quatro forças fundamentais responsáveis pelas interações entre partículas: a força gravitacional, a força eletromagnética, a força forte e a força fraca. A Teoria da Relatividade Geral descreve a força gravitacional e a Teoria Quântica de Campos descreve as três outras forças não-gravitacionais, mas essas duas teorias parecem ser incompatíveis. Diante disso, os físicos da atualidade têm um desafio: encontrar uma única teoria capaz de explicar todas as quatro forças. Uma forte candidata já existe: a Teoria das Supercordas. No entanto, ainda existem desafios experimentais para que ela seja comprovada e, assim, plenamente aceita pela comunidade científica. Sobre esse assunto, conversamos com o físico Nathan Berkovits, professor e pesquisador no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e diretor do ICTP South American Institute for Fundamental Research. Berkovits trabalha atualmente com o chamado “formalismo de spinores puros”, desenvolvido por ele e seus colaboradores, que simplifica os cálculos feitos na Teoria das Supercordas.
Desde o final do século XIX e começo do XX até os dias de hoje, as duas teorias da física mais aceitas para explicar o universo são a Teoria da Relatividade Geral e a Teoria Quântica de Campos. No que consiste cada uma delas?
Teoria Quântica de Campos é a teoria usada para calcular correções quânticas previstas pela Mecânica Quântica para uma teoria clássica de campos. Teorias clássicas de campos incluem a teoria clássica do campo eletromagnético desenvolvida em 1861 por Maxwell e a teoria clássica do campo gravitacional desenvolvida em 1916 por Einstein (Teoria da Relatividade Geral). No caso do campo eletromagnético, a Teoria Quântica de Campos funciona muito bem. Ela consegue fazer previsões de correções perturbativas quânticas com uma precisão de até 12 casas decimais, e esta previsão de 12 casas decimais já foi verificada por medidas experimentais. A Teoria Quântica de Campos também funciona muito bem para calcular correções quânticas das outras forças não-gravitacionais, que incluem a força forte e a força fraca.
E em quais pontos elas são inconciliáveis?
Quando a Teoria Quântica de Campos é aplicada para o campo gravitacional na Teoria de Relatividade Geral do Einstein, ela sofre divergências e não consegue fazer nenhuma previsão. Tecnicamente, esse tipo de teoria se chama "não-renormalizável". Por isso, fala-se que a Teoria da Relatividade Geral é inconsistente no nível quântico. A interpretação mais correta, entretanto, é que a Relatividade Geral é "perturbativamente" inconsistente no nível quântico, por causa dessas divergências. Não temos certeza de que a Relatividade Geral também tenha inconsistências quânticas quando o campo gravitacional e as contribuições quânticas sejam grandes. Isso porque somente confiamos nos métodos de Teoria Quântica de Campos quando a contribuição quântica é pequena se comparada à contribuição clássica.
Fenômenos de ordens diferentes de grandeza não deveriam ser tratados por diferentes abordagens teóricas e interpretações? Por que existe a busca para unificar essas teorias? A unificação não seria uma utopia?
Historicamente, a ideia de unificar fenômenos de ordens diferentes de grandeza foi muito útil. Podemos pensar lá no início, na maçã caindo na cabeça do Newton, que foi capaz de entender que a mesma força responsável pela queda explicaria as órbitas dos planetas. Também podemos citar a unificação de todos os materiais. Existe um número infinito de moléculas possíveis, que são feitas das centenas de átomos na tabela periódica, que, por sua vez, são feitos das dezenas dos elétrons e quarks do Modelo Padrão das partículas. Neste momento, todas as observações experimentais (do tamanho de 10 -8cm até 10 15cm) são consistentes com a existência de somente quatro forças fundamentais que regem a interação entre partículas: a força gravitacional, a força eletromagnética, a força forte e a força fraca. Não sabemos se no futuro haverá sucesso nessa busca pela unificação. Em relação à Teoria das Supercordas, por exemplo, será muito difícil testar e comprovar futuras unificações porque as energias necessárias para fazer os próximos testes são enormes. Mas os cientistas estão procurando a verdade, e se a unificação funcionou no passado, seria razoável buscá-la no futuro. No entanto, não é unânime que a ideia da unificação será útil no futuro e muitos cientistas estão procurando outras ideias para construir novas teorias. Eu não creio, entretanto, que seja uma questão de utopia ou não. Um cientista bom sempre usa sua intuição, que pode estar correta ou não. Mas ele não está nunca lidando com utopias.
O senhor falou sobre “correções quânticas” e “cálculos perturbativos”. No que consistem esses conceitos?
Cálculo perturbativo é um método de aproximação, quando se tem uma correção pequena comparada a outro efeito. Um exemplo é o efeito de um planeta sobre a órbita de outro planeta ao redor do Sol. Como a massa de um planeta é muito menor do que a massa do Sol, o efeito de um planeta sobre a órbita de outro planeta é muito menor do que o efeito do Sol. Cálculos perturbativos foram usados, por exemplo, para prever matematicamente a existência do planeta Netuno antes de sua observação. Correções quânticas são cálculos perturbativos (aproximados) que podem ser feitos quando o efeito quântico é pequeno em comparação ao efeito clássico. Um exemplo já citado em eletromagnetismo é a correção quântica (calculada em até 12 casas decimais) de uma propriedade do elétron chamada “razão giromagnética”, ou simplesmente “g”. A contribuição clássica é g=2, e as correções quânticas mudam esse valor para g= 2,0023193043617.
Os “efeitos quânticos” que o senhor menciona são, grosso modo, os efeitos desses “ajustes” sobre essas propriedades descritas pelas teorias clássicas?
Sim, quando os efeitos quânticos são pequenos comparados aos efeitos clássicos. Mas existem também fenômenos onde os efeitos quânticos são grandes e não podem ser interpretados como um “ajuste” do efeito clássico. Um exemplo é o fenômeno do elétron orbitando ao redor do próton no átomo de hidrogênio. Na teoria clássica de eletromagnetismo, o elétron ia cair em cima do próton por causa da atração eletromagnética entre o elétron e o próton. Mas por causa dos efeitos quânticos, o elétron não pode cair e o átomo de hidrogênio é estável. Esta estabilidade por causa dos efeitos quânticos não pode ser entendida como um “ajuste” do colapso clássico do átomo.
E a Teoria das Supercordas? No que ela consiste e por que é tida como uma das mais bem sucedidas tentativas de unificação da Relatividade Geral com a Teoria Quântica de Campos?
A (Teoria de) Supercordas é, até o momento, a única generalização consistente da Relatividade Geral que permite o cálculo perturbativo de correções quânticas de espalhamento de ondas gravitacionais. Essas correções quânticas ainda não foram verificadas em experiências porque as energias necessárias para testar essas correções são enormes. No entanto, o fato de ser tão difícil construir uma teoria consistente de gravitação quântica nos dá confiança de que a Teoria de Supercordas é um passo na direção certa. Outra razão para nossa confiança vem do fato de que a teoria descreve corretamente várias propriedades quânticas de buracos negros e do fato de que foi utilizada para entender uma relação surpreendente entre teorias de gauge (como o Modelo Padrão de partículas) e a teoria de gravitação.
O que significa dizer que a Teoria de Supercordas é uma “generalização da Relatividade Geral”?
Significa que, para energias baixas (menores que as energias de Planck), as previsões da Teoria das Supercordas para gravitação são iguais às previsões da Relatividade Geral.
O que são ondas gravitacionais e por que é importante que a teoria consiga permitir o cálculo perturbativo de correções quânticas para o espalhamento dessas ondas?
Ondas gravitacionais são flutuações do campo gravitacional e essas flutuações interagem. Nenhuma outra teoria de gravitação quântica consegue calcular o espalhamento dessas ondas incluindo as correções quânticas. Então, é um teste da consistência matemática da teoria.
Quais as possibilidades de se testar em laboratório ou com observações astronômicas as previsões que a teoria faz sobre os cálculos?
Possivelmente, no futuro, poderemos testá-las usando dados do Universo jovem. Mas isso não é possível agora.
Que outras possibilidades há para se verificar previsões da teoria além dos cálculos do espalhamento de ondas gravitacionais?
É possível observar evidências para supersimetria ou dimensões extras. Isso pode vir dos aceleradores de partículas (como em Genebra) ou das observações cosmológicas.
O senhor mencionou que uma forte razão para a confiança na Teoria de Supercordas vem do fato de que “ela descreve corretamente várias propriedades quânticas de buracos negros”. Quais são essas propriedades e por que os buracos negros são fundamentais para testar as teorias modernas da física?
Buracos negros emitem quanticamente uma radiação e as propriedades dessa radiação podem ser estudadas usando a Teoria de Supercordas. Os resultados usando Supercordas, por exemplo, convenceram Stephen Hawking de que sua proposta original sobre a radiação emitida pelos buracos negros tinha que ser modificada. Os buracos negros são fundamentais para entender efeitos de forte acoplamento em gravitação. Na Teoria das Supercordas, são entendidos como objetos "não-perturbativos" e são muito importantes no estudo de dualidades que relacionam objetos "nao-perturbativos" com objetos "perturbativos". Nos últimos 20 anos, o estudo dessas dualidades envolvendo buracos negros gerou varias aplicações, incluindo a "correspondência AdS-CFT", que relaciona teorias gravitacionais com teorias de gauge. Neste momento, muitos físicos estão usando a correspondência AdS-CFT para investigar propriedades em teorias de gauge (por exemplo, confinamento na teoria de cromodinâmica quântica ou supercondutividade em matéria condensada) via as propriedades de buracos negros. Minha pesquisa não envolve isso diretamente, mas existem outros físicos trabalhando com isso no Brasil, como Diego Trancanelli (USP), Horatiu Nastase (Unesp), Jorge Noronha (USP), Dmitri Melnikov (UFRN), Nelson Braga (UFRJ), dentre outros.
O que significa dizer que os buracos negros são objetos “não-perturbativos”?
“Não-perturbativos” quer dizer que eles não podem ser estudados usando a aproximação de correções pequenas da teoria clássica. Buracos negros são objetos não-perturbativos porque seu campo gravitacional e os efeitos quânticos são grandes.
O senhor mencionou também que outra forte razão para a confiança na teoria vem do fato de que “ela foi utilizada para entender uma relação surpreendente entre teorias de gauge (como o Modelo Padrão de partículas) e teorias de gravitação”. O que é o Modelo Padrão e qual relação surpreendente é essa?
O Modelo Padrão é o modelo quântico para descrever todas as forças e partículas vistas até agora, menos a força gravitacional. O modelo foi construído há 40 anos atrás, mas sua última peça (o bóson de Higgs) foi verificada somente há dois anos. O que ficou conhecido na física como “conjetura de Maldacena” implica que uma teoria de gravitação quântica pode ser usada para estudar teorias de gauge envolvendo forças não-gravitacionais. A relação surpreendente é que objetos fortemente acoplados em teorias de gauge como o Modelo Padrão podem ser estudados usando objetos fracamente acoplados em teorias de gravitação. Dois exemplos de objetos fortemente acoplados no Modelo Padrão incluem a supercondutividade dos elétrons e o confinamento dos quarks, e a conjetura de Maldacena está sendo usada para estudar esses fenômenos.
Além das correções quânticas, quais os outros pontos da teoria que ainda precisam ser comprovados por experimentos? Existem pontos em que seria difícil tecnicamente se chegar a uma comprovação?
A Supercordas prediz várias propriedades, como supersimetria e dimensões extras quando as energias são da escala de Planck. Infelizmente, a teoria não prediz se essas propriedades estão presentes quando as energias são menores do que a escala de Planck. Talvez, se entendermos mais sobre a teoria, vamos eventualmente poder extrair previsões para energias baixas que poderão, ou não, ser verificadas em experiências. Mas até conseguirmos extrair previsões para energias baixas, vai ser muito difícil comprovar a teoria experimentalmente. No entanto, foram feitos vários cálculos teóricos que indicam a consistência matemática da Teoria das Supercordas. E, neste momento, não existe nenhuma outra teoria que conseguiu passar por esses testes matemáticos da consistência. Por esta razão, a maioria de físicos teóricos trabalhando nas melhores universidades do mundo acredita que a Teoria de Supercordas seja a teoria mais promissora para a física além do Modelo Padrão de partículas. Isso não quer dizer que, no futuro, não surgirá uma nova teoria que substituirá a Supercordas como a teoria mais promissora.
O que são as energias de Planck, onde podemos encontrar esse tipo de energia e por que as escalas de Planck são importantes?
Energias de Planck são energias muito altas, da ordem de 10 22 MeV (dez elevado a vinte e dois), onde 1 MeV é a energia emitida quando um elétron e um pósitron se aniquilam. Para termos uma ideia da dimensão dessa energia, uma lâmpada comum emite, em um ano, uma energia equivalente à energia de Planck. Podemos encontrar estas energias dentro dos buracos negros ou no Universo jovem perto do Big Bang. Elas são importantes porque são necessárias para testar as propriedades de gravitação quântica em distâncias pequenas da ordem de 10 -33 cm (dez elevado a menos trinta e três).
O que é a supersimetria?
É uma simetria que relaciona as propriedades de partículas chamadas "bósons" com partículas chamadas "férmions". O que são os bósons e os férmions e o que difere nas propriedades dessas partículas?
Todas as partículas conhecidas hoje são bósons ou férmions. Os bósons incluem as partículas que transmitem as quatro forças, as quais são chamadas fóton (eletromagnetismo), gluon (força forte), bóson vetorial (força fraca) e gráviton (gravitação), além do bóson de Higgs, que foi descoberto recentemente. Os férmions conhecidos hoje incluem o elétron, o quark, o neutrino e suas “anti-partículas”, que são chamadas pósitron, anti-quark, e anti-neutrino. Os férmions se diferem dos bósons na medida em que eles satisfazem um princípio de exclusão que implica que dois férmions do mesmo tipo não podem estar na mesma posição do espaço. Por esta razão, os elétrons num átomo formam “camadas” que não podem colapsar.
A Teoria das Supercordas postula muitas dimensões espaciais. Como estariam dispostas essas dimensões extras nas já conhecidas três dimensões espaciais que temos hoje? Seria possível que num futuro próximo essa teoria incorporasse também outras dimensões temporais?
A consistência matemática da Teoria das Supercordas exige a existência de nove dimensões espaciais. Três dessas nove dimensões seriam as dimensões usuais de altura, comprimento e largura. As outras seis dimensões espaciais poderiam ser muito pequenas, da ordem de 10 -33cm (dez elevado a menos trinta e três), o que implicaria que somente seriam percebidas se tivéssemos equipamentos com uma precisão muito melhor do que as dos equipamentos de hoje. A existência de outras dimensões temporais implicaria que a Mecânica Quântica estivesse errada. Não sabemos como definir a Teoria de Supercordas se a Mecânica Quântica estiver errada.
A existência de outras dimensões, proposta pela Supercordas, equivale a existências de universos paralelos?
Não. A existência de outras dimensões implica que hoje em dia não temos equipamentos com precisão suficiente para perceber as dimensões extras. Seríamos como formigas na Terra que não conseguem ver o céu e pensam que o mundo somente tem as duas dimensões espaciais da Terra. A existência de universos paralelos se refere à Mecânica Quântica, onde ela não pode fazer previsões com certeza absoluta. Por exemplo, tem uma experiência famosa com o gato de Schröedinger, em que, numa medida, o gato está morto e, em outra medida, o gato está vivo. A existência de universos paralelos implica que num dos universos o gato está vivo e em outro universo o gato está morto.
A teoria também considera as partículas fundamentais de maneira diferente, certo? O que muda na maneira como as partículas são vistas nas teorias usuais e na Supercordas?
Nas teorias usuais, os objetos fundamentais são pontuais e cada partícula diferente (por exemplo, elétron, quark, fóton) seria um objeto diferente. Na Teoria das Supercordas, o objeto fundamental é uma corda unidimensional. As partículas diferentes seriam vibrações diferentes do mesmo objeto. Usando a analogia com uma corda de violino, cada nota diferente da corda seria uma partícula diferente.
E o que determina as diferentes vibrações das cordas, originando as diferentes partículas?
As vibrações são determinadas pelas condições originais das supercordas e pelas interações entre as supercordas. Se não existissem interações entre as supercordas, a vibração de uma supercorda continuaria para sempre e a partícula descrita pela vibração nunca mudaria. Mas, por causa das interações entre as supercordas, as partículas descritas pelas vibrações interagem e formam novas partículas.
Qual sua opinião sobre a expressão “teoria de tudo”, usada por alguns cientistas para definir a Teoria das Supercordas?
Essa expressão é de cunho popular, não caracteriza uma expressão científica. É utilizada frequentemente nos livros para leigos para chamar a atenção, seja para elogiar ou desprezar a teoria. Nunca ouvi um cientista usar essa expressão em conversa com outros cientistas.
Podemos considerar que houve mudança no padrão de trabalho da física moderna em relação à física clássica, em termos de observação de fenômenos antes ou depois da elaboração das formulações teóricas e sua verificação/confirmação?
Acho que não há nenhuma diferença entre a verificação na física moderna e a verificação na física clássica. Mas, por causa das energias enormes necessárias para testar as teorias novas, está sendo mais difícil verificar teorias promissoras agora do que no passado.
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