No verão de 1907, Pablo Picasso fez diversos estudos sobre pintura e percepção em Paris. Já conhecido de Gertrude Stein, que financiou o início de sua carreira, o pintor espanhol tomou contato com novas ideias. O bairro de Montparnasse reunia então muitos artistas que entrariam para a história, como os poetas Andre Breton e Guillaume Appolinaire.
Nesse grupo, as discussões artísticas eram constantes. Sozinho, em esboços, Picasso procurou abandonar a perspectiva tridimensional, vigente nas artes plásticas desde o Renascimento, por traços em múltiplas dimensões. Dos esboços resultou Les demoiselles d´Avignon.
Não era uma modificação sem fundamento. Tratava-se de fazer os quadros artísticos refletirem o zeitgeist (“o espírito do tempo”) da época. Época em que a relação da percepção própria com a do outro se tornou o centro de discussões em diversas áreas, como a psicologia.
Ao alterar o padrão de perspectiva para uma arte mais livre, Picasso provocou no espectador um choque visual imediato. Era o início do cubismo. Na biografia A vida de Picasso – o prodígio, o autor, John Richardson, escreve que Les demoiselles d'Avignon é o quadro mais inovador desde as pinturas de Giotto, o inventor da técnica da perspectiva no Renascimento.
A revolução que Picasso promoveu ocorreu também na literatura. A percepção do outro, em forma de múltiplas vozes no mesmo texto, pode ser vista nas poesias de W. B. Yeats e Ezra Pound. O modernismo juntou o tempo: o passado, o presente e o futuro no mesmo quadro, na mesma poesia. Juntou também percepções de pessoas distintas.
A literatura e as artes plásticas ajudaram a iluminar o mundo moderno, no qual não havia mais uma única verdade. Ser sociável passou a significar o respeito pelas opiniões e características dos outros. As Convenções de Haia, de 1899 e de 1907, marcam uma época de fortalecimento dos direitos humanos e da proteção do próximo, e maior respeito às diferenças entre os indivíduos.
Como afirma a americana June Carbone, professora de direito, “o respeito pela visão dos outros” é “um dos principais legados do Iluminismo e fundamento das sociedades modernas”. A convivência é uma arte.
Psicanálise, psicologia e Teoria da Mente
Na mesma época em que as artes contemplavam a multiplicidade de visões, a psicanálise e a psicologia deram importantes passos para entender como o ser humano se relaciona em sociedade. Os trabalhos de Sigmund Freud acerca do inconsciente datam do início do século XX, bem como os primeiros escritos de Jean Piaget.
Nos seus primeiros textos, Piaget trata da infância e de como a criança deixa aos poucos de ser egocêntrica para se tornar sociocêntrica. O sociocentrismo é o primeiro passo para o diálogo e a cooperação em sociedade. Em vez de se considerar como centro do mundo, a criança passa a se ver como parte de um grupo, que assume papel central para ela.
De acordo com o psicólogo John Flavell, da Universidade de Stanford, o trabalho de Piaget foi o início do desenvolvimento de diversas áreas ligadas ao estudo da cognição. Entre elas, a da Teoria da Mente, que procura mostrar como o indivíduo identifica e entende a subjetividade de seus pares.
A Teoria da Mente ganhou força nos últimos 30 anos. Desde o fim da década de 1970, neurocientistas, psicanalistas e psicólogos, entre outros pesquisadores, estudam o tema. É uma tarefa complexa, que consiste em pesquisar como as pessoas atribuem a si e aos outros crenças, desejos e conhecimentos. Como, portanto, entendem elas mesmas e os demais.
Quanto mais hábil for a pessoa nessa tarefa, melhor será a sua vida em sociedade. Melhor, portanto, será também a sua qualidade de vida. Não desenvolver esse potencial pode ser sinal de distúrbios mentais sérios, como o autismo.
A Teoria da Mente pode ser desenvolvida por meio de ferramentas importantes. A experiência de vida em sociedade e o contato com grupos é a maior delas. Outras atividades, porém, contribuem para esse desenvolvimento cognitivo, como a literatura.
Na revista Science do último outubro, David Kidd e Emanuele Castano, ambos da New School for Social Research, publicaram um artigo sobre a relação entre literatura e Teoria da Mente. Após uma série de experimentos, concluíram que ler ajuda a entender a subjetividade dos outros. “Ler ficção aumenta a empatia”, escrevem os autores.
A ficção como estímulo
No texto, Kidd e Castano apontam que a ficção contribui para que entendamos a vida dos outros. Dizem também que a mudança ocorre não apenas no que pensamos sobre os outros, mas em como pensamos, porque ensina o cérebro a construir personagens. Indicam que o efeito é temporário – a empatia aumenta logo depois da leitura.
Ao lembrar Roland Barthes, afirmam ainda que a ficção capaz de provocar essas mudanças não é a de textos readerly (prescritivos), mas sim writerly (escrevíveis). Ou seja, a ficção que mais contribui é mais complexa, e não foi feita apenas para entreter, mas também para refletir.
Ao fim, os autores enfatizam a importância da ficção no processo educacional. Para eles, não é a toa que a leitura de ficção já foi empregada em políticas de bem-estar social e para desenvolver habilidades sociais entre presidiários.
A professora Eunice Piazza, coordenadora do Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), afirma que a “ficção é a forma privilegiada de conhecimento da experiência”. Para ela, que estuda, entre outros temas, leitura e processos cognitivos, “os seres humanos contemplam, por meio da narrativa, crenças, culturas e experiência imediata”.
Eunice diz, entretanto, que não defenderia a tese de Kidd e Castano. “É possível que a leitura de ficção desenvolva habilidades sociais”, acredita. “Mas também é possível que isole o indivíduo, porque o mundo da boa ficção pode ser bem mais interessante que o mundo lá fora”.
A leitura se desenvolveu na sociedade ocidental mais acentuadamente após a invenção da prensa, por Gutenberg, por volta de 1452-1455. Livros como A divina comédia, de Dante Alighieri, escrito ainda no século XIV, só puderam ser amplamente difundidos após a redução do custo de impressão, permitido pela tecnologia.
Essa difusão levou a um grande crescimento da leitura. Mas foi apenas após a Revolução Industrial que os livros se tornaram acessíveis para todas as classes sociais. Em países de menor poder aquisitivo, contudo, o preço do livro representa ainda hoje uma barreira para potenciais leitores.
Nos últimos tempos, a neurociência tem decifrado como o cérebro funciona no momento da leitura. O cérebro é formado por bilhões de neurônios, que tem a plasticidade como uma de suas principais características. A plasticidade permite que essas células cerebrais, especialmente quando mais novas, se especializem em algumas atividades, dados os corretos incentivos.
O cérebro que lê
Em Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler, o neurocientista Stanilas Dehaene, do Collège de France, explica que a leitura só pode ser desenvolvida por meio de interações entre elementos culturais e biológicos.
“O cérebro não é uma tábula rasa”, escreve ele. “É um órgão fortemente estruturado que faz o novo com o velho”, complementa. O “novo”, ou seja, a habilidade de ler, se estrutura por meio do “velho”, os circuitos neuronais, presentes desde o princípio na ancestral biologia humana.
No processo de leitura, a área cerebral que mais responde aos estímulos culturais externos é a região occípito-temporal ventral, localizada no hemisfério esquerdo. Estudos feitos por meio de ressonância magnética mostraram que essa região é a única ativada por meio de palavras escritas que não responde às palavras faladas.
Entretanto, diversas outras regiões funcionam quando a leitura ocorre. A região parieto-temporal está relacionada ao som da palavra. Ela aproveita os sentidos da visão e audição e promove algo como um “olhar para o som da palavra”.
Áreas à frente do lobo temporal (como a “área de Broca”) parecem estar ligadas a combinações de significados. A região frontal inferior faz a seleção de um significado entre vários. Por isso, é ativada no caso de frases ambíguas.
A leitura, portanto, contribui para que o cérebro desenvolva certas especializações que não são inatas ao ser humano. Ao contrário, por exemplo, do instinto de sobrevivência, característica natural do homem, ler é um processo que exige aprendizado. Aprendizado que leva à empatia temporária, de acordo com a pesquisa publicada na Science.
Repercussões e consequências
O estudo repercutiu na imprensa americana. O New York Times recomendou, um tanto de brincadeira, a leitura de um pouco de Chekhov antes de uma entrevista de emprego. A The Atlantic expressou que agora há provas científicas de que ler melhora a qualidade de vida.
As críticas mais severas ao estudo partiram da revista Slate. Em dois textos, a pesquisa foi criticada. No mais impactante deles, o jornalista Mark O´Connell afirmou que o estudo busca uma legitimação reducionista para o poder da leitura.
“Existe o risco de pensarmos literatura de um modo moralista e instrumental, como se o seu valor pudesse ser medido por meio da capacidade de nos melhorar”, escreveu. Talvez a ficção não possa nos melhorar, mas, como a neurociência mostra e alguns especialistas defendem, contribui para desenvolver habilidades.
“Defendo a ideia de que a leitura de narrativas é muito eficaz para a formação de leitores competentes”, afirma Eunice. “Mas não sei se as escolas pensam do mesmo jeito”, complementa, quando perguntada se os resultados ruins de alunos brasileiros em exames que medem a compreensão de texto não seria um prejuízo para a população.
Hoje, de modo muito diferente de quando Picasso passeava pela Montparnasse, não é preciso ir a Paris para se inteirar da literatura contemporânea. As novas tecnologias oferecem no cotidiano uma avalanche de informações. O mais difícil parece, por vezes, decidir ler. As distrações à leitura são muitas.
“A tecnologia ocupa o tempo das pessoas de modo excessivo, na maior parte do tempo com banalidades”, comenta Eunice. “Por outro lado, quem gosta de ler não vai se preocupar com o meio em que a leitura é apresentada”. Além disso, diz ela, “a leitura é um direito. Não é um dever”.
|