As discussões sobre a maneira como os nossos representantes políticos são escolhidos fazem parte da democracia. Não existe um sistema perfeito e ajustes e alterações podem ser necessários à medida que a sociedade e as instituições se modificam. Após o fim da ditadura militar, novas regras para o sistema político brasileiro surgiram com a promulgação da Constituição em 1988 e toda a legislação eleitoral e partidária precisou ser adaptada às novas normas. Dentre as leis aprovadas depois da redemocratização estão a Lei dos Partidos Políticos, de 1995, e a Lei Eleitoral, de 1997. Mas as discussões sobre o sistema político nunca se encerraram.
No Congresso Nacional, existem inúmeros Projetos de Lei (PL) e Propostas de Emenda Constitucional (PEC) que datam desde o início dos anos 1990 até os dias de hoje, sobre os mais variados aspectos do sistema político e com diversas opções de arranjo. Entretanto, as mudanças concretas até o momento são escassas e pontuais, como a aprovação da reeleição em 1997.
No artigo “Astronomia e reforma política”, publicado na revista Em debate em 2013, o cientista político Bruno Speck, professor da Universidade de São Paulo (USP), observa que as discussões sobre a reforma tem um “caráter perene”, girando sempre em torno dos mesmos tópicos e com poucos resultados efetivos. A partir da análise de notícias no jornal Folha de S. Paulo sobre o tema no período de 1994 a 2013, Speck identifica um padrão no debate: torna-se mais intenso de dois em dois anos, no primeiro semestre dos anos em que não ocorrem eleições. À medida em que as eleições se aproximam, o debate vai perdendo a força.
O professor da USP também aponta no artigo as condições que dificultam a implementação de uma reforma mais ampla: falta de consenso sobre temas centrais, o impacto que uma mudança pode trazer para o futuro político daqueles que devem aprová-la e a escassez de tempo para a aprovação no Congresso, em especial quando se trata de emenda constitucional. Este último motivo relaciona-se ao calendário eleitoral: o tempo hábil para votar as leis e emendas seriam os três primeiros trimestres dos anos não eleitorais, pois precisam ser aprovadas até um ano antes para valer para as eleições seguintes.
Cenário atual
Atualmente, a reforma política está sendo discutida nas duas casas do Congresso Nacional. No Senado, a PEC 58/2013, que dificultaria a criação de novos partidos políticos, foi votada e rejeitada, enquanto a PEC 40/2011, que proíbe as coligações em eleições proporcionais (para deputados federais, estaduais e vereadores), foi aprovada e encaminhada para a apreciação dos deputados. Em fevereiro, foi criada na Câmara dos Deputados uma comissão especial de reforma política para analisar PECs referentes ao tema: são mais de 150 propostas (a mais antiga é de 1994) agrupadas por semelhança. A PEC de destaque é a 352/2013, que trata do voto facultativo, do tipo de voto para o legislativo, do financiamento de campanha, da coincidência de eleições para vários cargos, entre outros. A expectativa é que até maio seja emitido o parecer, que resultará em uma única PEC dividida em capítulos. Para ser aprovada, deverá obter maioria qualificada (3/5 dos parlamentares) em dois turnos, tanto na Câmara quanto no Senado.
Paralelo a isso, foi instalada, em março, uma outra comissão de reforma política na Câmara para analisar projetos de lei infraconstitucionais (leis que que não alteram a Constituição) e agilizar a sua aprovação, já que não dependem da maioria qualificada. Os integrantes das duas comissões são praticamente os mesmos, e os temas também. A ideia é fazer um levantamento de todos os projetos de lei que estão em tramitação na Câmara e buscar uma concordância entre as duas comissões.
Dentre os projetos que serão analisados por essa nova comissão está o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da “Coalizão pela reforma política e democrática e eleições limpas”, movimento composto por mais de cem entidades e movimentos sociais do país, que tem entre suas lideranças a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Os principais pontos da proposta são o fim do financiamento de campanha por empresas e o aumento do financiamento público, eleições proporcionais em dois turnos, paridade de gênero em lista pré-ordenada e o fortalecimento de mecanismos de democracia direta (como é o caso da lei de iniciativa popular).
Outro mecanismo de democracia direta é o plebiscito, que também faz parte das discussões. O movimento “Plebiscito Constituinte” surgiu em 2013 e demanda a realização de um plebiscito oficial para decidir sobre a convocação de uma constituinte específica para realizar a reforma política. Participam do movimento mais de 500 organizações e movimentos sociais, alguns, inclusive, que também fazem parte da “Coalizão pela reforma política”. Não há uma proposta fechada de reforma, mas o movimento defende o fim do financiamento empresarial das campanhas, um sistema eleitoral que aumente a representação de minorias no legislativo e promova a qualificação dos partidos políticos, além da intensificação do uso de instrumentos de democracia direta.
Financiamento de campanha
Um dos temas mais debatidos e controversos é o modelo de financiamento das campanhas eleitorais. Hoje, no Brasil, os recursos para cobrir gastos de campanha vêm majoritariamente de empresas, havendo uma concentração das doações em algumas poucas empresas que financiam diversos partidos e candidatos e se beneficiam das relações estabelecidas com os representantes eleitos, através de contratos e licitações (casos das construtoras), empréstimos do BNDES e até mesmo influência nas decisões políticas que podem favorecer um determinado grupo econômico.
Durante o regime militar, o financiamento de campanhas eleitorais por empresas foi proibido, regra que continuou valendo para as primeiras eleições no período de redemocratização, mas sem muita eficácia. As denúncias que levaram ao impeachment do presidente Collor eram relativas aos recursos de caixa 2 vindos de empresas. Como resposta, o Congresso legalizou as doações empresariais, na Lei dos Partidos, de 1995, e na Lei das Eleições, de 1997. Foram estabelecidos limites para as doações privadas: de 10% do rendimento declarado à Receita Federal para pessoas físicas e 2% do faturamento para pessoas jurídicas (empresas).
Essas regras causam distorções na representação política: “provoca-se uma desigualdade política a partir de uma desigualdade econômica”, analisa Wagner Romão, cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Se eu sou uma grande empresa, vou doar até 2% do meu faturamento. Se sou uma pequena empresa, com um pequeno faturamento, também posso doar só até 2%”, completa. Com o crescente aumento dos custos das campanhas, naturalmente os partidos vão buscar as empresas de maior faturamento, que podem fazer uma doação maior de uma só vez. Por sua vez, as empresas, que determinam a distribuição dos recursos, investem naqueles candidatos que lhes interessam. “Hoje, no Congresso, há a bancada dos bancos, a bancada do agronegócio, compostas de deputados que podem até representar uma parcela da população, mas que têm uma atuação muito maior em representar grupos econômicos”, diz Renato Morgado, especialista em democracia participativa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Observatório Cidadão em Piracicaba (SP). Para Bruno Speck, o financiamento por empresas não é necessariamente ruim, o problema está na modalidade, “que no caso brasileiro permite volumes ilimitados de aportes e uma concentração muito grande dos recursos em pouquíssimas empresas”.
A constitucionalidade desse tipo de financiamento foi questionada pela OAB através de uma ação no Supremo Tribunal Federal, segundo a qual, pessoas jurídicas não são cidadãos e, portanto, não teriam o direito de interferir nas eleições dos representantes do povo. Apesar de já ter recebido seis votos favoráveis e conquistado a maioria (são 11 ministros no total), a votação da ação está parada há um ano, após o ministro Gilmar Mendes pedir mais tempo para analisar o processo. Até o momento, Mendes não o devolveu, embora já tenha sinalizado em entrevistas que seu voto será contrário. Enquanto isso, na comissão de reforma política da Câmara, o PMDB defende a introdução do financiamento privado na Constituição, através de emenda, estabelecendo que cada empresa só poderia doar para um partido e um candidato por cargo. Mas essa limitação não traria melhoras, segundo Romão. “A tendência é que a empresa espere cada vez mais para decidir a doação, para ver quem tem mais chance de ganhar. Haverá uma concentração maior de recursos nas mãos daqueles que têm mais chance de serem eleitos”.
Umas das soluções defendidas por alguns setores, inclusive o PT, é instituir o financiamento público exclusivo, que poderia tornar a disputa eleitoral mais igualitária e acabar com o poder de influência do setor empresarial. No entanto, esse modelo, de acordo com Romão, poderia levar a um distanciamento ainda maior entre sociedade e partidos: “De um lado, temos a sociedade e, do outro, o Estado. Os partidos políticos estão no meio, mediando a relação. Com o financiamento público exclusivo, a tendência é que os partidos se desloquem para o polo do Estado, tornando-se uma espécie de serviço público prestado pelo Estado”. Além disso, como a distribuição dos recursos seria definida, em grande parte, a partir dos mandatários eleitos de cada partido, haveria uma manutenção do status quo. “Qual é a única maneira do cidadão incidir sobre esse processo? Votando”, afirma o professor da Unicamp. “Não sou contra o financiamento público, mas acho que ele não pode ser determinado por uma regra que reforça o status quo e que reforça esse afastamento dos partidos políticos de sua base social”.
Os cientistas políticos da USP e Unicamp, Speck e Romão, defendem a necessidade de aproximar a população de seus representantes. Os dois propõem um modelo de financiamento em que o Estado incentivaria a doação de pessoas físicas por meio de renúncia fiscal e complementaria com recursos públicos de acordo com as doações recebidas. Tudo com um teto nominal, para evitar distorções de renda. Com esse modelo, os pesquisadores acreditam que os partidos seriam obrigados a “sair da toca” e dialogar com a sociedade, para convencer as pessoas a realizarem doações. Isso também pulverizaria as fontes de financiamento, evitando concentrações.
Sistemas eleitorais
Outra vertente das discussões são os sistemas eleitorais, que referem-se à maneira como se traduzem votos em cadeiras e o tipo de voto conferido ao candidato, se personalizado ou em lista. Os debates giram em torno de manter a eleição proporcional nos legislativos ou transformá-la em majoritária, com a criação ou não de distritos. No sistema majoritário, são eleitos os candidatos que mais recebem votos, caso das eleições para presidente, governadores, prefeitos e senadores. Para deputado federal, estadual e vereador, é utilizado o modelo proporcional, em que o número de cadeiras a que um partido ou coligação tem direito corresponde a uma proporção do total de votos recebidos pela coligação.
No projeto de lei de iniciativa popular da “Coalizão pela reforma política”, há a proposta de mudança das eleições proporcionais para uma eleição em dois turnos, que seria uma combinação dos modelos majoritário e proporcional. No primeiro turno, os eleitores votariam nos partidos, que apresentariam uma lista de candidatos, com alternância entre homem e mulher. A partir da votação recebida, seria calculado o número de cadeiras que o partido teria direito e, então, os eleitores votariam nos candidatos da lista para preencher as vagas. “É um sistema complexo, mas é tão complexo como o nosso atual. Acho que seria melhor, pois obrigaria não os indivíduos, mas os partidos a disputarem votos num primeiro momento. Então, cada partido teria que demonstrar claramente a que veio, havendo maior clareza programática”, acredita Renato Morgado.
A proposta do PMDB na Câmara é pelo voto distrital puro, em que as eleições proporcionais se transformariam em eleições majoritárias e seriam eleitos aqueles que têm mais votos no estado (para deputado federal e estadual) ou no município (para vereadores). Na visão de Romão, esse modelo levaria os candidatos a evitar temas polêmicos em suas campanhas, como aborto, legalização das drogas, casamento gay. “Qual é a essência das eleições proporcionais? Que você consiga captar a diversidade existente na sociedade. Seja a diversidade moral, política, de gênero, religião etc. E me parece que o modelo que temos hoje não é de todo ruim. As pessoas falam que o Bolsonaro foi campeão de votos no Rio de Janeiro, mas logo atrás dele veio o Jean Willys”. O maior problema atual, para o pesquisador, são as coligações, que não têm unidade ideológica, correndo-se o risco do eleitor eleger um deputado que defende o oposto do que ele acredita. Nesse sentido, a aprovação da PEC 40/2011, que proíbe as coligações em eleições proporcionais, representará um avanço.
Além da proposta de eleições majoritárias para os parlamentos, há um outro tipo de proposta de voto distrital, a qual prevê que estados e municípios seriam divididos em distritos e cada distrito elegeria apenas um candidato, configurando-se também um sistema majoritário. Há outras propostas, como o voto distrital misto, modelo em que cada eleitor teria direito a dois votos: um para o candidato do distrito (sistema majoritário) e outro para o partido (sistema proporcional). Para Renato Morgado, a divisão em distritos pode ter vantagens, pois a população conheceria melhor seu candidato e as eleições se tornariam mais baratas, mas traria efeitos negativos, como a sub-representação de minorias. “Imagine um candidato que tem como bandeira a defesa dos deficientes físicos, a defesa ambiental, ou dos professores. São candidatos que têm uma votação difusa, que se espalha por todo o estado. Pelo sistema de distrito, seria mais difícil um candidato desse ser eleito”. Outra crítica é que esse sistema incentivaria o paroquialismo eleitoral, pois privilegiaria os deputados que trazem verba para sua região.
E será que a reforma sai?
Inúmeros outros temas também fazem parte do debate da reforma política, como o fim das reeleições, a coincidência de mandatos (que faria com que todas as eleições acontecessem juntas) e o estabelecimento de cláusula de barreira para os partidos. Esses temas também apresentam diversas possibilidades, com seus pontos negativos e positivos, e divergências de opiniões dentro do Congresso e na sociedade. É preciso notar também que a escolha de um modelo em um determinado tópico poderá interferir nas decisões de outros, levando a um leque gigantesco de caminhos possíveis. E tudo isso permeado pelos diferentes interesses, sejam daqueles que querem manter o status quo, semam dos que defendem uma mudança radical.
Para o movimento em defesa do plebiscito, uma reforma política só seria viável por meio da convocação de uma constituinte exclusiva para debatê-la. “A proposta do plebiscito parte da compreensão de que o Congresso atual, eleito pelas regras atuais, com uma série de representantes que têm a perspectiva de serem reeleitos, não fará as mudanças na intensidade que precisam ser feitas”, explica Morgado. A questão que se levanta é como seria a eleição e quem seriam os candidatos para essa constituinte. De acordo com Morgado, “seria contraditório se fossem eleitos pelo modelo atual. Idealmente, seria uma campanha com financiamento público, onde poderiam haver candidatos dos partidos atuais e também candidaturas avulsas. Mas esse é um debate que precisa ser aprofundado”.
Bruno Speck tem outro ponto de vista e acredita ser mais prudente realizar mudanças graduais e ir ajustando, sem fazer uma grande reforma de uma vez. Ele também vê com preocupação a politização constante do debate sobre as regras do jogo democrático. “O que se instalou nos últimos dez, quinze anos é um questionamento permanente da viabilidade da democracia nas regras atuais. Para o sistema funcionar, é preciso um fundo de regras que não sejam permanentemente questionadas”. Apontar as regras do sistema como a causa de todos os males, segundo ele, acaba servindo como desculpa para os casos de corrupção, ao mesmo tempo que deslegitima a política. “É possível fazer política e política limpa dentro das regras atuais”, avalia. Além disso, Speck acredita ser improvável que saia a reforma política. “O contexto é desfavorável. Primeiro, porque o governo não tem a força política que tinha em períodos anteriores; segundo, há uma divisão entre o projeto do governo e o projeto do legislativo; terceiro, a economia é mais importante agora; e quarto, a posição a favor do financiamento empresarial ficou mais consolidada agora”.
O que parece consenso é que mudanças são necessárias, sejam grandes ou pequenas. O debate há de continuar e provavelmente em 2017 estaremos discutindo reforma política de novo. E quem sabe com alguma mudança concreta já para a próxima eleição, caso a Câmara aprove o fim das coligações nas eleições proporcionais.
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