Muitas de nossas atividades cotidianas mais importantes acontecem hoje
por meio de máquinas de uso pessoal (computadores, celulares, tablets) ou de
tecnologias como os controles remotos e os chips de identificação individual
(em carteiras funcionais e estudantis, em cartões de banco). Poderíamos
classificá-las como frutos de um crescente paradoxo, já que trazem consigo a
ideia de uma busca pela simplicidade cada vez maior para os usuários e de uma
enorme complexidade para os seus desenvolvedores. A maioria das pessoas
inseridas nesse mundo tecnológico espera que esses objetos funcionem da maneira
mais simples possível e reclama quando, por um instante que seja, cai o milagre
diário da comunicação instantânea e do acesso à informação.
Quando fazemos uma busca no Google – a maior empresa de serviços on-line
do mundo – por exemplo, os recursos do computador (o teclado, o monitor, o
hardware de rede e o software que conecta a sua máquina à rede, o navegador que
formata e encaminha seu pedido aos servidores do Google) desempenham um papel
secundário, por assim dizer. Num primeiro olhar, enquanto usuários, nos importa
a operação de busca e os resultados imediatos que conseguiremos a partir dessa
consulta. Se olharmos um pouco mais a fundo esse processo de interação, veremos
uma imensa infraestrutura técnica, de alcance mundial, com potencial para possibilitar
um “futuro permanentemente conectado”, no qual mergulhamos, muitas vezes, sem
refletir ou, ainda, pensando que o fazemos “intuitivamente”.
Em outras palavras, por trás do fato de os produtos
tecnológicos serem cada vez mais comuns em nossas vidas e cada vez mais simples
de se utilizar (ou mais interativos) está o aumento – não muito evidente para
todos – da complexidade das tecnologias presentes em nosso cotidiano. O
dinamarquês Jakob Nielsen, considerado um dos maiores especialistas em interação
humano-computador, já recomendava na década de 1990, em seu livro Engenharia de usabilidade, que o principal
ponto na construção de interfaces tecnológicas fosse o desenvolvimento da
utilização de elementos simples, sem rebuscamento, formatações ou gráficos que
pudessem dificultar ou enriquecer demais o produto, sobretudo quando ele é
direcionado ao público com menor experiência.
Nielsen também é considerado um dos precursores e expoentes
dos estudos sobre usabilidade. A ideia de usabilidade está vinculada à
simplicidade de operação, por mais complexo que seja o produto ou o processo desenvolvido.
Significa permitir que
o usuário alcance objetivos específicos com efetividade, eficiência e
satisfação, ou simplesmente, facilidade de uso do produto, programa de
computador ou website. Trata-se
de um conceito amplo, que vem sendo utilizado por pesquisadores da área desde meados
da década de 1980.
Nesse mesmo sentido, as empresas de alta tecnologia há muito
já atentaram para o fato de que um produto fácil de usar dá retorno financeiro.
Pesquisadores da arquitetura da informação e empresários com foco na inovação
tecnológica, como é o caso de Steve Jobs, concordam que os usuários desistem de
utilizar qualquer objeto quando se apresentam dificuldades de manuseio,
reforçando o argumento do consumidor: “Se
for difícil de usar, não uso tanto”.
“Ao pensarmos o projeto de um produto que alcance alto grau
de utilização, nós estaremos dentro do campo da engenharia da usabilidade. Ela
atua em conjunto com o modelo de comunicação escolhido, ligando-se diretamente
ao processo de produção que deve satisfazer o nível de expectativa e de
conhecimento do usuário/consumidor de forma a proporcionar um ambiente de
interface de uso confortável, eficiente e eficaz”, explicam Maicon Ferreira
Souza, José Luís Bizelli e Osmar Ambrosio no artigo “Usabilidade: um fator
crítico para a interatividade da televisão digital”, publicado este ano na revista
Comunicologia.
Os sistemas e tecnologias, em todos os tempos, se voltam ao
atendimento das necessidades dos usuários. Durante o processo de maturação de
uma nova tecnologia, há sempre necessidade de se pensar em quem está ou estará
fazendo uso dela, projetando um caminho entre a prática anterior e os impactos
e mudanças de comportamento resultantes das novas aprendizagens produzidas. Os
desvios que o usuário faz durante a interação e a quantidade de erros cometidos
podem servir para avaliar, por exemplo, o nível de eficiência de um site na
internet.
Da mesma forma, quando se trata de pensar a convivência do
usuário com a interatividade em um sistema como o de televisão digital, faz-se
necessário analisar sua interface através do controle remoto, que deve oferecer
opções de abordagem simples, fácil e com alta taxa de autoaprendizagem. Essas
condições são fundamentais para manter a satisfação do usuário, afirmam Souza,
Bizelli e Ambrosio.
O que significa essa simplificação
para o usuário?
Outra noção muito comum nas áreas de engenharia de usabilidade
e ciência da computação é a do “uso intuitivo”. Apesar de o termo remeter a
algo ligado a características naturais, na verdade, ele se refere mais a uma
característica cognitiva, adquirida de acordo com o meio cultural e a história
de vida do indivíduo. Raquel Zarattini Chebabi, doutora em cultura audiovisual e
mídia pela Unicamp, explica que o uso intuitivo de uma interface significa a “facilidade
de mexer, de usar tal ferramenta sem muita dificuldade, sem ter que fazer um
curso para isso ou ter que pedir muita ajuda a alguém; o uso intuitivo se dá na
medida em que você olha para a interface e consegue interagir minimamente com
aquela ferramenta”. O uso intuitivo estaria ligado, portanto, à ideia de fazer
com que o usuário compreenda e participe do que foi proposto, sem grandes
instruções.
“As ‘regras do jogo’ para a utilização de um equipamento ou
software estão implícitas no produto, embora possamos analisar e discutir o
quanto seus usos são mais ou menos intuitivos, pensando em delineamentos
culturais, geracionais, educacionais, de classe, gênero, por exemplo, dos
possíveis usuários”, lembra Adriano Premebida, doutor em sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Além disso, essa noção de
uso intuitivo, assim como a de usabilidade, traz consigo uma preocupação em
torno da aceitação mercadológica de um novo produto.
Embora
não tratasse diretamente de tecnologias, já em meados do século XX o economista
austríaco Joseph Schumpeter descreve o processo de inovação numa economia de
mercado em que novos produtos destroem antigas empresas e modelos de negócio. Esta
seria a destruição criativa, força motriz do crescimento do capitalismo.
Levando-se isso em conta, poderíamos nos indagar se toda essa aparente simplicidade
das interfaces vem carregada de uma aceitação passiva à incorporação das novas
tecnologias, sem o intermédio de uma reflexão mais profunda sobre suas
possibilidades, necessidades de uso e a apropriação de tal produto. Afinal, há
um fator mercadológico que estimula o consumidor a desejar uma novidade,
levando à classificação de produtos anteriores como obsoletos.
“Existe um impulso para o consumo tecnológico irracional e
desenfreado, incentivado pelo modismo ou pela distinção social e, ao mesmo
tempo, não há uma reflexão mais profunda sobre a questão do que seja realmente
uma necessidade”, avalia Fernando Ferreira de Barros, doutor em sociologia pela
Universidade de Brasília (UnB) e analista em C&T do CNPq.
Poderíamos nos questionar, ainda, até que ponto a
simplificação de uso é sempre algo evolutivo, de fato. Afinal, uma novidade
tecnológica é sempre mais simples de se usar do que uma tecnologia anterior a
ela? Os primeiros celulares são mais difíceis de se manusear do que um smartphone? O que seria mais fácil de se
utilizar: os primeiros ebooks ou os
atuais tablets?
Quando falamos de usabilidade e simplificação do uso de
ferramentas de informação, não podemos perder de vista que aquilo que é tido
como simples e intuitivo exige um aprendizado de algo que, de fato, é complexo.
Isso porque para que a interatividade seja efetiva, é preciso levar em conta
que ela também está condicionada à aceitação social e comportamental.
Exemplo disso seria o que Souza, Bizelli e Ambrosio afirmam
sobre a televisão analógica: trata-se de um produto popular que está
intimamente ligado aos atributos de aceitação social e comportamental, bem como
de facilidade de uso, já que seu funcionamento básico depende de que o
telespectador apenas conheça três funções básicas (ligar, alterar o volume e
mudar de canal). Em seu artigo sobre usabilidade, os pesquisadores complementam
que, diante dessa simplicidade, a televisão digital tem dificuldade em romper
com um costume de 50 anos de uso e parte disso está relacionado com os impactos
sociais e comportamentais dessa atualização para um sistema digital de alta
tecnologia e com inúmeras inovações.
“A naturalidade de uso dos artefatos não é algo tão direto e
intuitivo, mas mediado por níveis de educação imersos em determinada cultura.
Isso ajuda a explicar, também, os novos usos dados pelos usuários a
determinadas tecnologias, mas não previstos, inicialmente, pelos projetistas ou
fabricantes”, complementa o sociólogo Premebida.
Assim, devemos ponderar que essa facilidade e satisfação de
uso de um produto tecnológico pode não ser universal, variando, frequentemente,
de acordo com fatores como o objetivo da utilização, a bagagem cultural e técnica
da pessoa, além de outras questões subjetivas ligadas a preferências por este
ou aquele recurso.
Usabilidade e inclusão digital
Aprofundar a reflexão sobre as condições facilitadoras ou
não do manuseio do instrumento de interatividade constitui um desafio aos
pesquisadores que trabalham não só com produtos mercadológicos, mas também com
o processo de inclusão social através das tecnologias de informação e comunicação.
O usuário deve ser abordado conforme seu perfil digital
(bagagem técnica e cognitiva) e, consequentemente, de acordo com o seu nível
sociocultural. Souza, Bizelli e Ambrosio, em seu artigo, exemplificam que cada
faixa etária apresenta diferentes aspirações e diferentes abordagens sobre o
que usa e qual conteúdo deve ser atingido na interatividade por meio de
aparelhos portáteis. Estudos coordenados por
Jakob Nielsen também apontam para essa diferenciação de abordagem por faixa
etária, mostrando, por exemplo, que crianças hesitam mais que adultos em enviar
informações pessoais pela rede.
Raquel Chebabi, da Unicamp, observa que quanto mais as
interfaces estiverem próximas do ser humano, quanto mais facilidade para sua
utilização, maior será a inclusão das pessoas no mundo das informações
produzidas e disponíveis. “A tecnologia não é um fim, ela é um meio para
alcançar uma melhoria de processo ou uma facilidade”, conclui a pesquisadora.
Para os pesquisadores mais otimistas, o uso que se faz das tecnologias de
informação e comunicação pode ser transformador, e os exemplos mais citados são
os protestos contra governos que começam a ser organizados pelas redes sociais.
A facilidade de uso aliada aos investimentos na democratização da banda larga, ao
aumento do mercado consumidor, aos avanços tecnológicos digitais, tem o
potencial de romper com o paradigma do usuário passivo, transformando-o no que
Souza, Bizelli e Ambrosio chamam de “interagente”.
Premebida, por outro lado, pondera que muitos produtos de alta tecnologia
que consumimos têm sua obsolescência programada – não só em termos materiais,
mas principalmente simbólicos (moda) –, e isso significa um dispêndio imenso de
materiais, energia elétrica e mão de obra. Além disso, a maioria dos usuários
não faz a menor ideia de como tudo isso funciona, o que pode empobrecer uma
reflexão sobre até que ponto as novas tecnologias nos oferecerem liberdade e
possibilidades de convívio humano mais equilibrado e democrático. “Precisamos
pensar no substrato político que toda tecnologia carrega. Ela pode nos resolver
problemas de comunicação e deslocamento, mas pode criar novas necessidades,
incoerentes com alguns padrões de convívio social e ambiental”, reflete o
pesquisador.
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