A vinda do presidente norte-americano George W. Bush ao Brasil para discutir a formação de um mercado mundial de álcool pode ser considerada o marco de um projeto brasileiro de três décadas: vender para o mundo uma alternativa ao petróleo. O Programa Nacional do Álcool (Proálcool), iniciado pelo governo militar em 1975, foi uma resposta direta à primeira crise do petróleo, em 1973, quando os preços do produto quadruplicaram subitamente. O objetivo principal era substituir as importações da gasolina, mas foi além, e tornou-se o maior programa comercial no uso de biomassa para fins energéticos até final dos anos 80. Agora, com a preocupação ambiental do planeta, petróleo caro e boa aceitação no mercado, o álcool é o combustível do momento, ao lado do biodiesel. E o Brasil, o país com maior potencial para produzir e exportar etanol.
O uso direto de óleos vegetais como combustível foi rapidamente superado pelo uso de óleo diesel derivado de petróleo no início do século XX. Naquela época, os combustíveis renováveis não foram considerados relevantes. Em 1925, aconteceram os primeiros testes de etanol misturado à gasolina. No entanto, a importância que o petróleo adquiriu pôde ser vista com a crise desse bem não-renovável, que elevou os preços em mais de 300% entre 1973 e 1974. Muitos esforços foram dedicados à superação do problema, entre eles a economia de energia e o uso de fontes alternativas.
O primeiro choque do petróleo – quando o preço médio do barril aumentou de US$ 2,91 em setembro de 1973 para US$ 12,45 em março de 1975 – e uma grave crise no mercado internacional de açúcar elevaram os gastos do Brasil com importação de petróleo de US$ 600 milhões para US$ 2,5 bilhões em um ano, o que influiu na dívida externa brasileira e na inflação. Nesse contexto, o álcool, até então subproduto do açúcar, adquiriu papel estratégico na economia brasileira, quando o futuro presidente da República, Ernesto Geisel, aliou-se ao setor privado, Instituto do Açúcar e do Álcool e Coopersucar, planejando o aproveitamento das destilarias nacionais, anexas às usinas.
A primeira fase do Proálcool foi adicionar álcool anidro à gasolina. O governo investiu sete bilhões de dólares até 1985 em subsídios. A Petrobras era responsável pela compra de toda a produção, transporte e distribuição, enquanto as indústrias recebiam incentivos e tecnologia para fabricar carros a álcool. O objetivo era diminuir a dependência externa de energia, mas também propiciar melhora no balanço de pagamentos, expandir a produção de bens de capital e gerar empregos e melhor distribuição de renda, além de reduzir a poluição nos centros urbanos. Um êxito inegável do programa foi exatamente o de promover sinergias, aliando indústria e instituições de pesquisa, sempre com apoio governamental no desenvolvimento de tecnologia, política industrial, planejamento energético, agricultura.
Para André Furtado, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, o Proálcool foi bem sucedido, embora passível de críticas: “A locação dos recursos não era muito racional. Por exemplo, muitas destilarias foram construídas e abandonadas, os recursos públicos foram mal empregados”. Furtado também critica o elitismo do Proálcool: “O programa, ao contrário do que muitos historiadores afirmam, não foi um programa de distribuição de renda. Houve intensificação do trabalho no campo e grande concentração no Sul e Nordeste. Não houve desenvolvimento no interior do país. A idéia inicial do Proálcool era ajudar a pequena propriedade, o que também não aconteceu. A monocultura sempre tomou esse espaço, desde os primórdios da história do Brasil”, critica o pesquisador.
Em 1979, após o segundo choque do petróleo, ocasionado pela paralisação da produção iraniana, o Brasil, lançou a segunda fase do Proálcool, a partir de destilarias autônomas e álcool hidratado. Os financiamentos chegavam a cobrir até 80% do investimento fixo para destilarias e os primeiros veículos a álcool já eram comercializados no mercado nacional. O lobby canavieiro garantiu o Proálcool, mas o desenvolvimento de outros combustíveis alternativos, como o biodiesel, não tiveram a mesma sorte.
No entanto, o crescimento acelerado dos EUA e da economia mundial, assim como o declínio do preço do petróleo, aumentou o consumo de derivados do produto. Com isso, o governo brasileiro foi obrigado a bancar a diferença aumentando o preço da gasolina. Em 1986 a produção de carro a álcool chegou a 95% do total e a produção do combustível atingiu 12 bilhões de litros, sem condições de suprir toda a demanda. “O resultado foi falta de álcool e a conseqüente necessidade de importação, o que causou uma crise de confiança no produto. As montadoras voltaram a fazer carros à gasolina e o Proálcool entrou em colapso”, explica Furtado.
Após dez anos de estagnação da produção de veículos a álcool, o etanol voltou à cena no início desta década, com a criação dos veículos de tecnologia flex fuel ou bicombustíveis, cujo motor tem sensores que reconhecem os teores da mistura e se ajustam automaticamente. O primeiro veículo bicombustível foi lançado em 2003 e hoje mais de 80% dos automóveis novos vendidos no país seguem a linha. O país produz 17,5 bilhões de litros de álcool combustível e exporta 17% desse total, o que revitalizou a demanda pelo álcool. Com o mercado brasileiro abastecido, o mercado se volta agora à exportação, principalmente em decorrência da Convenção da ONU sobre questões climáticas e do Protocolo de Quioto. A evidência do caos ambiental é científica e geral. Por conta disso, no Brasil, o “renascimento” do Proálcool é pauta de muitas discussões.
A nova escalada não é um movimento comandado pelo governo, como a ocorrida no final da década de 70, mas sim movida pela iniciativa privada. O Proálcool está sendo revitalizado, porém com preocupações também voltadas para o meio ambiente e o aspecto social. Antonio de Pádua Rodrigues, membro da União da Agroindústria Canavieira de SP (Unica) aponta desafios para o crescimento sustentado do açúcar e do etanol, como a racionalização de impostos e o combate à adulteração dos combustíveis. Estudos da Unica apontam que o setor terá que atender até 2010 uma demanda adicional de 10 bilhões de litros de álcool, além de sete milhões de toneladas de açúcar. Isso exige desafios tecnológicos e ousadas políticas governamentais para aproveitar os 90 milhões de hectares de área agriculturável
Para Paulo Graziano Magalhães, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp, o Brasil passa por um momento favorável. “O país tem capacidade de produzir álcool e açúcar com preços altamente competitivos. No caso do álcool como combustível, o que faltou por um período foi confiança na disponibilidade do produto. Nesses 30 anos a cadeia produtiva amadureceu. Veja o sucesso dos carros flex entre os consumidores”, observa.
Sérgio Bajay, professor do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica, também da Unicamp, relaciona a boa aceitação dos flex com o crescimento das exportações brasileiras: “Políticas contra o efeito estufa vão aumentar a frota dos bicombustíveis em alguns países, o que aumenta a demanda de álcool no exterior, que será parcialmente atendida com produção local e parte com importações. Hoje o Brasil é o país com menores custos de produção do etanol, sendo competitivo para atender as importações. Conforme proposto pelo presidente norte-americano George W. Bush, Brasil e EUA, maiores produtores de etanol do mundo, podem ter importante papel na produção nas regiões mais pobres. Sem dúvidas, a produção de etanol no Brasil é um grande sucesso tecnológico e econômico. Só o lado social, que criou expectativas no lançamento do Proálcool, deixou a desejar”, afirma Bajay. No entanto, para André Furtado, nada será tão simples assim: “O Brasil tem grande potencial, mas a negociação com os países desenvolvidos não será fácil. Eles farão exigências como a abertura de nossos mercados protegidos. Não teremos regalias e ninguém vai querer ficar em nossas mãos. A política deve agir com muito realismo no mercado internacional”, conclui.
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