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Artigo
A morte como tabu
Por José Carlos Rodrigues
10/11/2014
A angústia que sentimos diante da morte faz bastante sentido se considerarmos os modos de vida que acompanham o capitalismo. Nossos costumes e concepções acerca da morte situam-se entre os muitos passos que foram dados na direção do individualismo. A partir do Renascimento, tudo, desde a arquitetura residencial até os mobiliários domésticos, das regras de polidez e higiene aos modos de vestir, das concepções sobre saúde e educação das crianças até as teorias econômicas e políticas – absolutamente tudo no Ocidente foi submetido a um profundo processo de individualização. Trata-se de transformações muito lentas nas mentalidades e sensibilidades, que apenas o decorrer dos séculos pôde tornar visíveis: mudanças perfeitamente compatíveis com o sistema econômico que se constituía e que se desenvolvia tendo por base as ideias de propriedade privada, de iniciativa particular, de acumulação e de progresso.

A morte não pode ser aceita por quem pensa como individual a essência mais irredutível de si. Ela é exatamente o desaparecimento da individualidade, a diluição dos indivíduos na espécie. Esta última só pode viver porque os primeiros morrem. A morte, de certo modo, é a contrapartida lógica da ideia de indivíduo. Ela representa simultaneamente a fundação e o fim da individualidade, como Michel Foucault observou. Rigorosamente, a morte existe somente para quem concebe como individual a essência mais importante de si. De certo modo, ela não existia nos tempos medievais, pois os mortos estavam ali perto, convivendo com os vivos, dormindo nas sepulturas coletivas situadas no interior e no entorno das igrejas, centros da vida comunitária.

A morte não precisava ser recusada, simplesmente porque não havia ainda se afirmado; simplesmente porque não havia sido inventada como negação da vida. Na Idade Média, para lembrar as palavras de Bakhtin, a morte era “uma entidade da vida, na qualidade de fase necessária, de condição para sua renovação e rejuvenescimento permanentes”. Diferentemente, no modo de vida capitalista, seres humanos que se definem como indivíduos passam a testemunhar de modo crescente, quanto aos outros, que o destino do indivíduo ao se transformar em morto é deixar de ser uma pessoa e volatilizar-se no esquecimento. E isto ele não pode aceitar, pelo menos para si.

Pode-se ainda compreender a recusa da morte no âmbito dos modos de vida capitalistas, se levarmos em consideração que ela é a última coisa em que quer pensar aquele que se orienta na direção da acumulação e do progresso. Na sociedade capitalista, pelo menos durante a maior parte da história, fomos incentivados a viver sobre a base do adiamento do prazer, pois este postergamento era a condição material, ética e existencial do investimento, da acumulação e do progresso. Prometendo a felicidade, convenceram-nos de que esta é algo que está adiante, alguma situação que se atinge, um ponto aonde se chega, alguma coisa que se adquire, uma conquista que se efetua...

Nunca no sistema capitalista a felicidade foi concebida como aquilo que decorre do simples fato de viver e de conviver, como aquilo que faz pulsar alegrias e tristezas, como algo que impulsiona o ser por e para o transbordamento de si. Absolutamente não: na ética capitalística, a felicidade sempre foi essencialmente aquilo que falta, aquilo que se promete àqueles que se engajam em “conquistá-la”. Fingir ter “conseguido” a fugidia felicidade tornou-se requisito da negação do fracasso e da simulação de sucesso.

Mas a morte não é exatamente o que demonstra que nada disso tem sentido? Não nos ensina que todos estes princípios reduzem-se a um amontoado de equívocos existenciais? Alguém que pense um pouco sobre a morte poderá duvidar de que haja sempre mais um progresso a realizar quando se morre? De que morrer seja essencialmente aquilo que nos obriga a tudo desacumular? De que cada instante de vida seja também um instante de morte? De que a morte seja o que aguarda todos, inclusive aqueles que vivem do adiamento dos prazeres? Na nossa civilização do sorriso profissionalmente artificial, quem pensa seriamente sobre a morte logo descobre que a prometida felicidade é um logro. E que, diante da morte, o sonho de crescimento e de progresso material soçobra. Nesta cultura em que viver passou a representar um meio de capitalizar – e viver muito, um modo de acumular e enriquecer – o burguês, que inventou a morte, não tolera pensar que é mortal. Por isso, nesse sistema ninguém se conforma com a brevidade da vida.

Uma das principais estratégias que os capitalistas usaram para não se acreditarem mortais foi tentar petrificar o fluxo do tempo. Revolucionando as concepções medievais, os burgueses inventaram a concepção de tempo que hoje adotamos: linear, fugaz e irreversível. Agora, paradoxalmente, apavoramo-nos com a crueldade desta fugacidade e deste irreversível que parecem tudo digerir. É preciso então congelar o tempo. Para isso a burguesia construirá seus túmulos com a perenidade das pedras mais resistentes. Mais tarde, substituirá as flores naturais pelas de plástico: estas não murcham, permanecem sempre idênticas a si, são imitações cada vez mais perfeitas das naturais e vivas. Principalmente, elas permitem aos vivos se ocupar menos com os mortos (mas este é um efeito colateral que ele não deseja para si).

Antes de ir para o túmulo, na ilusão de permanecer, o capitalista procurará marcar o mundo com suas obras, com seus feitos e seus haveres. Inventará as biografias. Mais tarde, as autobiografias. Buscará permanência nas estátuas. Sonhará com a fixidez do tempo, encomendando retratos, numerosíssimos a partir do século XV. Pretendendo eternizar a própria visão de si, refletir-se-á nos autorretratos. Envolver-se-á de espelhos – antes raríssimos, principalmente os que capturam o corpo inteiro – e  olhar de si para si começará a rivalizar com o de outrem.

Mais perto de nossos dias, ele se iludirá com o simulacro de ciclicidade temporal permitida pelas fotos e pelos filmes. Fundará museus, arquivos, registros... Exibirá sua “originalidade”, mesmo (ou talvez especialmente) se esta for ininteligível para os outros. Com argumentos baseados no asseio e na higiene, querendo apagar qualquer evidência do transcurso do tempo biológico, acima de tudo procurará banir qualquer manifestação de apodrecimento.

Mas todo esse arsenal simbólico não será suficiente. E na impossibilidade de realizar o sonho de perenidade, cessará gradativamente de pensar e de falar na morte. Passará a viver como se ela não existisse. Viverá sem consciência de seus limites. Terá pouca noção de si mesmo, por mais paradoxal que isso possa parecer. Postular-se-á implicitamente amortal – para relembrar a expressão muito precisa de Edgar Morin.

Essa ilusão de amortalidade se manifestará de modo mais inequívoco nas práticas de algumas casas funerárias norte-americanas em que se praticam ritos fúnebres que encenam uma espécie de velório, ainda longe de serem dominantes, embora não raríssimos. Mais ou menos como em uma festa, um coquetel, um vernissage, as pessoas se encontram em torno do morto para uma patética cerimônia de culto à personalidade individual. Nessas ocasiões uma regra fundamental deve ser observada: a palavra morte está rigorosamente proibida, assim como tudo o que lhe esteja associado. O defunto aparece como vivo: maquiado, praticando algum gesto - lendo um jornal, assinando um cheque, sentado na poltrona, em pé e apoiado em uma escrivaninha de trabalho... As pessoas se “despedem” dele, pois se trata de uma festa de despedida. Mas é uma despedida de quem não partiu.

O patético é que esse vivo-quase-morto na verdade é um morto-quase-vivo: tenta falar ao telefone, mas não consegue; finge que assina um cheque, mas não o faz; abre ostensivamente as folhas de um jornal, mas não as lê... Os participantes vão embora, levando a imagem de alguém vivo – não a de um defunto – para mais facilmente poderem desprezar o fato de que uma morte teve lugar. Nas versões mais leves, temos os velórios em tempo real pela internet, de que se pode participar sem comparecer. Temos ainda os drive-thru funerals, estabelecimentos nos quais, na época do fast food, da fast spirituality e do fast sex, tornou-se possível assinar o livro de condolências sem sair do automóvel, certamente para esquecer bem rápido, antes do próximo compromisso agendado. Quanto ao morto, é possível que vá “confortavelmente” habitar uma dessas moderníssimas sepulturas equipadas com bateria solar, na qual, como diz o anúncio, poderá “escutar sempre” suas músicas prediletas.

Este postulado de amortalidade é um complô de silêncio. Os cemitérios tendem a desaparecer do cenário contemporâneo. Primeiro, foram cercados com muros. Depois, banidos das cidades. Mais próximo de nós, foram redesenhados na forma de parques em que o repouso dos mortos se associa a uma espécie de retorno à natureza, quase como férias ou aposentadoria na casa de campo tão sonhada, na ambiência do verde cada vez mais raro. Neste cemitério as sepulturas tendem a ser discretas e silenciosas, para que a morte seja maquiada e tenha escondida sua fisionomia: é um cemitério, mas pode perfeitamente não ser identificado como tal por um passante não avisado.

A localização da morte na velhice desempenha papel semelhante. Para as novas mentalidades o falecimento de uma pessoa jovem tornou-se inadmissível e mesmo escandaloso. No novo sistema de expectativas imagina-se que a morte deva atingir apenas pessoas de elevada idade, que nesta condição podem ser vitimadas por causas “naturais”. Uma consequência da localização da morte na velhice é que os não velhos poderão se sentir dispensados de pensar e de falar sobre a morte, autorizados a viver como amortais. Acontece que esta é uma sociedade que cultua o novo e a juventude. Paradoxalmente, admira nos velhos a jovialidade, não sua vivência. O resultado é que cada vez mais pessoas passam a se considerar jovens. E um número crescente de idosos tende a ver-se com mocidade. Igualmente silenciam sobre a morte.

Além disso, com o correr dos séculos a morte foi parecendo cada vez menos cotidiana. Na sociedade talvez mais mortífera que a humanidade já produziu – pensemos apenas nos seus armamentos e nas suas relações com o ambiente – o morrer tornou-se pouco familiar, deslocado para asilos e hospitais, afastado dos vizinhos e das crianças. A família já não é a mesma e muito frequentemente o doente já não encontra em casa quem dele se encarregue.

A família sonha oferecer às crianças um ambiente “psicologicamente sadio”, mas na nova mentalidade esta ambição não pode coexistir com seres decrépitos, enrugados, decadentes, fracos, tidos como capazes de produzir contaminações físicas e psicológicas. Ela também quer para si e para seus doentes ambientes assépticos. Mas a casa não é considerada suficiente asséptica para o doente, nem o doente bastante esterilizado para permanecer no recinto familiar. O resultado foi que a família transferiu o doente para as empresas de saúde, assim como acabará transferindo o morto para as empresas funerárias.

O hospital se transformou assim em asilo a proteger a família da doença e da morte, a abrigar o doente das pressões emocionais de sua família, a resguardar a sociedade da publicidade da morte. No hospital a morte não é mais a cerimônia pública que sempre a caracterizou na história do Ocidente, pelo menos desde aquela, medieval, que o moribundo presidia em meio a seus próximos, até as cenas de alta participação familiar de algumas décadas atrás. A tendência é que estes ambientes humanos tenham cada vez menos a dizer. O doente, idem.

O postulado de amortalidade diminuiu também a ritualidade funerária. Os cortejos fúnebres foram engolidos pelo ambiente urbano. Não constituem mais as pequenas procissões que a pé percorriam os pontos principais das cidades. Nem as carruagens puxadas por cavalos que, com ar solene, dominavam o ambiente. Também não são mais os clássicos carros funerários a motor, que ainda despertavam atenções. Quando existe, o atual cortejo fúnebre mal pode ser percebido. Os automóveis se perdem em meio a todos os outros e o carro funerário se identifica cada vez menos como tal. Tudo se passa como se tivesse havido o propósito de ocultá-lo.

Do mesmo modo, desaparecem progressivamente as condolências, as visitas, as últimas homenagens. As próprias famílias “enlutadas” às vezes passam a solicitar que não se façam visitas e que não se enviem flores: tentam talvez evitar o incômodo de fazer as pessoas pensarem por demasiado tempo que uma morte ocorreu. Coerentemente, também começam a disfarçar a expressão da dor, sobretudo quando em público. E crescentemente tratam o luto como uma questão individual, de foro íntimo.

José Carlos Rodrigues é antropólogo da PUC-Rio.

REFERÊNCIAS
Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1987.
Foucault, M. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1978.
Morin, E. L’homme et la mort. Paris: Seuil, 1970.