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Editorial
Os astros não mentem jamais
Por Carlos Vogt
10/08/2007
Não é de hoje que astronomia e astrologia se separaram e até que a separação foi amigável. Na verdade, decorreu da própria evolução e transformação dos estudos dos astros, dos corpos celestes e da busca das leis que regem o seu desempenho no espaço. Como essas leis são físicas, foi também a evolução dessa ciência e de suas descobertas o que concretizou a separação que, ao longo dos séculos, desde a mais remota antiguidade histórica de que se tem notícia, foi se anunciando como inevitável.

Além de todas as diferenças conhecidas e reconhecidas entre a astronomia e a astrologia, a que mais salta aos olhos é que a primeira é uma ciência  exata e a segunda não é exatamente uma ciência.

Ser uma ciência exata significa que a sua prática requer grande capacidade de observação e disciplina experimental alicerçados em um forte domínio da física e da matemática somados, é claro, a um espírito obsessivamente escrutador da imensidão do cosmo.

À consolidação da astronomia como ciência correspondeu, em grau talvez equivalente ao hiato cada vez maior que a separou da astrologia, a enorme popularização e crescente popularidade desta última.

Não que as duas não trabalhem ambas com a noção de causalidade. Apenas que o seu entendimento, função, papel e funcionamento é diferente num caso e noutro.

Para a astrologia a causalidade do mundo, isto é, sua necessitação causal é finalista, no sentido que a ordem do cosmo, do macrocosmo, determina a ordem dos acontecimentos da vida do homem, no microcosmo. O alinhamento ou desalinhamento dos astros organiza ou desorganiza a vida das pessoas no cotidiano de seus enfrentamentos. Não é possível deixar de pensar nessa forma de entender a causalidade sem pensar na noção de destino que domina, de um modo geral, uma visão que poderia dizer-se clássica da existência humana, independentemente do alcance popular que ela tenha e que sabemos ser grande.

Com o romantismo e o surgimento do drama em substituição à tragédia como forma de representação das novas dinâmicas da vida humana e de suas condições de relacionamento político, social e econômico, o homem deixa de ter destino e passa a ter destinação.

É o momento também de afirmação da ciência como instituição e o momento da consagração da física de Newton e da descoberta científica das leis que regem a mecânica dos corpos, celestes ou na Terra.

O século XIX viria exacerbar o ardor da crença na ciência até que,  quando tudo parecia resolvido, vem o pessoal da física quântica e da teoria da relatividade e vira o templo das convicções estabelecidas de pernas para o ar. E a ciência dá um salto qualitativo, no começo do século XX, tão grande e importante que as suas conseqüências perduram até hoje nas mais diversas formas de sua manifestação e expressão: na ciência propriamente dita, na tecnologia, na tecnociência e nas grandes revoluções das tecnologias da informação, da biologia molecular e da biotecnologia.

Com isso a astronomia tem também desenvolvimentos notáveis, inclusive graças aos instrumentais que as novas tecnologias vão criando para a observação de situações e de fenômenos antes impossíveis de serem  alcançados pelas nossas limitações naturais.

Aqui a causalidade também está presente, mas sem finalismo, determinando, contudo, uma ordem racional do cosmo, organizado segundo leis que é preciso estabelecer, testar, provar, falsear, negar e, assim, avançar no conhecimento do conhecimento do mundo e de suas (in)diferenças.

Entre a astronomia e a astrologia há ainda o fato curioso de que, em geral, os astrólogos são leigos totais em conhecimento científico, embora iniciados nos segredos que o comportamento dos astros escondem e revelam para os homens; do outro lado, a curiosidade é que, embora se tratando de uma ciência altamente sofisticada com inúmeras ramificações em torno da física, da matemática e mesmo da biologia, há uma grande quantidade de praticantes da astronomia totalmente amadores na ciência e amadores apaixonados do conhecimento que ela possibilita e proporciona.

No Brasil, país em que a astronomia tem uma longa tradição e um grande desenvolvimento, em particular, desde a criação do Observatório Nacional, em 1827, o nome-ícone do amadorismo astronômico qualificado é nada menos que o do imperador D. Pedro II. Devoto da ciência, culto, poliglota, viajado. Um amador especialmente preparado no amor do conhecimento. Um amador iniciado.

Há um episódio na história da física moderna que a liga de maneira indelével ao Brasil, através da ocorrência de um fenômeno natural, um eclipse solar, de sua observação astronômica, ou no caso específico, astrofísica, e da decorrente comprovação de uma teoria revolucionária do conhecimento das leis do universo.

Como tive oportunidade de escrever aqui mesmo, há algum tempo atrás, no artigo “Ciência e contingência” (ComCiência, n. 32, jun., 2002, www.comciencia.br), em 1911, com a teoria da relatividade restrita já consagrada, Einstein que vinha trabalhando na sua teoria da relatividade geral, na verdade, uma nova “teoria da gravitação”, enuncia, no artigo “Sobre o efeito da gravidade na propagação da luz” que o campo gravitacional deveria provocar a curvatura da luz.

É nesse momento que, nas urdiduras do acaso, o Brasil, mais especificamente Sobral, no Ceará, começa a entrar em cena.
    
A previsão de Einstein de que a luz sofreria desvios ao passar por um campo gravitacional, dada a pouca intensidade do efeito, só poderia ser verificada, experimentalmente, observando-se a passagem da luz por um corpo de grande massa.

Isso se deu em 1919, durante o eclipse solar, cujas observações registradas em Sobral, no Ceará, foram definitivas para a comprovação da sua teoria.

O próprio Einstein tivera a idéia de fotografar estrelas próximas às bordas do sol   – possível apenas numa situação de eclipse total –, fotografar as mesmas estrelas à noite e comparar as fotos para verificar se houve ou não mudanças em sua posição relativa.

Várias foram as tentativas de realização dos experimentos fotográficos, em diferentes partes da geografia terrestre e muitos foram os astrônomos, de origens diversas, que se associaram ao esforço dessa comprovação.

Em 1914, estava previsto para o dia 21 de agosto um eclipse solar, organizando-se, com apoio financeiro da família Krupp, obtido pelo próprio Einstein graças ao seu prestígio como cientista, uma expedição alemã que da Criméia, na Rússia, deveria tentar obter as tão desejadas fotos estelares.

Um fator não climático, mas histórico e político impediu de vez a observação do eclipse: a deflagração da Primeira Guerra Mundial, com a invasão da Sérvia pelo Império Austro-húngaro, em 28 de julho de 1914.

Os integrantes alemães da equipe foram aprisionados, os americanos tiveram de sair do país, deixando para trás os seus instrumentos de observação e de fotografia.

Em 1918, no dia 8 de junho, novo eclipse do sol, dessa vez observado dos EUA, no estado de Washington, sem poder contar com os instrumentos que haviam permanecido retidos na Rússia.

A guerra interferiu novamente no processo de verificação da teoria retardando a observação do efeito de curvatura da luz para a dupla expedição inglesa de 1919, na ilha de Príncipe, possessão portuguesa na costa ocidental da África, e em Sobral, no nordeste brasileiro. Ambas as expedições foram preparadas pelo astrofísico inglês sir Arthur Eddington, que comandou as de Príncipe, que já estivera no Brasil, em Minas gerais, em 1912, e que adotara, com devota convicção, a teoria da gravitação de Einstein, empenhando-se a fundo na sua demonstração.

As fotos tiradas pelo grupo, do qual também, em Sobral, faziam parte brasileiros, entre eles, Henrique Morize, diretor do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, foram definidoras e definitivas, já que o tempo na ilha de Príncipe no dia 19 de maio de 1919, não ajudou muito no esforço da equipe que lá se encontrava para a mesma finalidade de observação  e fotografias do eclipse solar.

No dia 6 de novembro do mesmo ano, o Joint Eclipse Meeting, ocorrido em Londres, coroava a teoria de Einstein em substituição à teoria da gravitação universal de Isaac Newton, que reinara soberana no mundo da ciência da natureza e de suas leis por mais de dois séculos.

Desse modo, quem sabe o fato de ter vindo na equipe de Pedro Álvares Cabral, em 1500, um fidalgo espanhol de nome João Emeneslau, mestre João como era conhecido, por especialidade físico e cirurgião, que anotou em sua carta para o rei de Portugal a observação do Cruzeiro do Sul, ali registrado sob a designação de Crux, não pudesse ser interpretado por muitos como uma  conspiração astrológica benfazeja que, conjurando astros tão expressivos em tão bela constelação, ordenou nos céus primórdios da história brasileira o nascimento vigoroso da nossa moderna astronomia.