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Entrevistado por Por Simone Pallone / Foto do entrevistado na capa: Brasília Confidencial.
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Artigo
Taxa de câmbio e desenvolvimento econômico no Brasil pós-crise
Por Pedro Rossi
10/05/2011
O câmbio é um dos temas mais espinhosos da economia. Consensualmente, ele é uma variável chave que tem impacto determinante na relação entre os preços domésticos e os preços externos e, por consequência, na distribuição de renda, na estrutura produtiva, na estrutura de emprego, na inflação, nos padrões de consumo, no crédito, nas estruturas de ativos e passivos privados, na dívida pública e nas contas externas de uma economia. Diante da sua importância inconteste, o conflito de ideias acerca da taxa de câmbio gira em torno da instituição responsável por manobrar sua trajetória: o Estado ou o mercado. Para alguns, ele deve ser usado como instrumento político para promover desenvolvimento econômico, sendo manejado pelo Estado. Para outros, ele deve ser uma variável isenta da interferência do Estado e levado à situação de equilíbrio pelas forças de mercado.

Ao longo da história, o debate se concentrou entre as extremidades representadas pela centralização do câmbio por parte do Estado e a plena liberdade dos fluxos financeiros. O primeiro grande período em que o mercado preponderou política e ideologicamente tem origens na industrialização inglesa e se desintegra com a crise de 1929. A grande depressão deu evidências eloquentes dos perigos da autorregulação dos mercados e da liberdade dos fluxos de capital, e fez com que a nova ordem do pós-Segunda Guerra adotasse o controle dos fluxos financeiros como um dos pilares fundadores. Já o período designado como globalização financeira em muito se assemelha com a primeira fase liberal da história do capitalismo. Em ambos os períodos, o volume de transações financeiras foram desproporcionalmente mais importantes em relação às transações comerciais. Por um breve período dos anos 1990, parecia que o mundo havia encontrado uma harmonia em seu sistema internacional, garantida pelas forças do mercado. Do ponto de vista ideológico, o debate político e econômico era, portanto, amplamente dominado por uma visão liberal do funcionamento do sistema.

O debate atual se encontra ainda inclinado para o lado do mercado, mas em um claro movimento rumo à outra extremidade. Como marco desse movimento coloca-se a declaração pública do Fundo Monetário Internacional – instituição tradicionalmente conservadora no debate econômico – que admite a importância dos controles de câmbio sobre os fluxos financeiros. Lentamente, alguns dogmas como o da capacidade de autorregulação dos mercados, a ideia de especulação estabilizadora e a eficiência do mercado de câmbio vão perdendo força até cair em desuso.

Na raiz dessa mudança estão os efeitos da liberalização financeira sobre a dinâmica econômica e, particularmente, sobre as taxas de câmbio. A história da globalização financeira é a história de instabilidades e desequilíbrios macroeconômicos que culminam com a crise deflagrada em setembro de 2008, em que se mostra definitivamente o potencial desestabilizador do mercado autorregulado. Tornou-se claro o processo de subordinação das trajetórias cambiais às decisões de portfolio de agentes financeiros. Em muitas das economias liberalizadas, a trajetória da taxa de câmbio se descolou por completo dos fundamentos econômicos.

No pós-crise, a situação se agrava na medida em que aumenta o volume de liquidez financeira do sistema internacional. Os países do centro do sistema, frente à estagnação econômica, levaram suas taxas de juros a patamares próximos a zero, gerando crédito farto para o sistema financeiro. Como ressaltou o economista americano Michael Hudson, vivemos o “padrão financeiro internacional da anarquia do crédito grátis”. Para ele, o jogo do banco central americano é o de dar subsídio à saída de capitais dos Estados Unidos para compra de ativos no exterior, criando oportunidades únicas de lucros para o sistema financeiro. O mecanismo básico, conhecido como carry trade, consiste em tomar empréstimos em dólar com juros próximos de zero e aplicar em ativos em outras moedas, como a brasileira, que rende taxas de juros de dois dígitos. Esse excesso de liquidez global pôs em pauta o uso de controles financeiros pelos governos e, com o agravamento das tensões, pode trazer o protecionismo comercial para plano da política internacional.

Além do impacto sobre as taxas de câmbio, o excesso de liquidez global tem ainda uma segunda consequência importante: o impacto sobre o preço de commodities. A ligação entre a liquidez internacional e o preço de commodities é intermediada pelo mercado de derivativos, que adquiriu uma importância fundamental no capitalismo contemporâneo. De um lado, ele oferece ao setor produtivo maneiras de se proteger de flutuações de preço; de outro, ele agrava a instabilidade do sistema, uma vez que é o locus da especulação financeira. Com excesso de liquidez no sistema, os especuladores reforçam suas apostas nos mercados futuros de commodities e, assim, geram bolhas de preços.

O “duplo choque” – de commodities e câmbio – coloca dois grandes desafios para a economia brasileira. O primeiro refere-se à convivência com um alto e volátil patamar de preços de energia e alimentos e sua decorrente pressão inflacionária. Como conciliar esse choque de commodities com o rigor do sistema de metas inflacionárias? Os aumentos de juros, usual instrumento de combate à inflação, aumenta a atração da liquidez internacional e provoca mais apreciação cambial. Por outro lado, as medidas alternativas para o combate à inflação, como as que controlam o mercado de crédito, são vistas com ressalvas pelo mercado.

O segundo grande desafio, refere-se ao patamar da taxa de câmbio: a sobrevalorização do real é incompatível com o desenvolvimento brasileiro de médio/longo prazo. A pergunta relevante a ser feita é “qual estrutura produtiva é a mais adequada para o país?” Uma taxa de câmbio apreciada tende a especializar a produção brasileira em recursos naturais, os quais têm larga vantagem competitiva. Os problemas dessa especialização são evidentes para uma economia de grande população urbana e altos níveis de pobreza. Já uma estrutura industrial diversificada proporciona uma estrutura de emprego urbana e mais qualificada, além de mais dinamismo econômico decorrente dos entrelaçamentos das cadeias produtivas, do uso mais intensivo da tecnologia e de uma maior agregação de valor. Contudo, para o desenvolvimento dessa estrutura industrial, é necessário uma taxa de câmbio mais depreciada.

Em conclusão, para enfrentar esses desafios que se apresentam como entraves para o desenvolvimento brasileiro, será preciso superar velhas convicções e readaptar o instrumental de política econômica. Para isso, urge um debate mais amplo sobre o papel da taxa de câmbio, do mercado financeiro e do Estado no projeto de desenvolvimento nacional. Tem-se a favor da realização desse debate um movimento geral, preconizado pela historia recente, de abandono das convicções liberais.

Pedro Rossi, economista, é pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da Unicamp.