A epidemia de Aids no Brasil, em seu
início, na década de
1980, se caracterizava por afetar mais os homens. Acreditava-se que a
doença seguiria um padrão de
transmissão
restrito aos homossexuais masculinos, aos usuários de drogas
injetáveis e às pessoas que recebiam
transfusões
de sangue, como os hemofílicos. Antes mesmo de completar uma
década, a tendência crescente de aumento de
infecção
pelo HIV entre as mulheres já se tornava evidente. A chamada
feminização da doença revelava
também que
as relações heterossexuais haviam se tornado a
principal via de transmissão do HIV. Esse novo perfil da
epidemia trouxe desafios para a prevenção da
doença,
que passam pelas negociações, entre homens e
mulheres,
sobre o uso de proteção, e sobre o
desequilíbrio
de poder da mulher para negociá-la. Nesse contexto, surge o
preservativo feminino, a discussão sobre outras
opções
de proteção que não fiquem restritas
à
camisinha, e a necessidade de se considerar a complexidade da
sexualidade humana na elaboração de campanhas
oficiais
de prevenção.
Segundo
o último boletim epidemiológico
lançado pelo
Ministério da Saúde, em novembro de 2005, a taxa
de
incidência da Aids se manteve em 19,2 casos por 100 mil
habitantes devido à persistente tendência de
crescimento
de casos entre as mulheres que, nesse mesmo ano, atingiu 15 casos por
100 mil mulheres. A razão entre os casos masculinos e
femininos, em 2005, continuou decrescente, ficando em 15 casos
masculinos para cada 10 femininos. No início da epidemia, a
razão era de 16 casos em homens para 1 em mulher. Entre as
mulheres, a transmissão heterossexual representa quase a
totalidade dos casos em maiores de 13 anos: 94,8% dos casos em 2004.
A
idéia de que existiriam grupos de risco comprometeu as
avaliações iniciais sobre os rumos da
doença,
prejudicando as estratégias de
prevenção que,
hoje, tendem a operar com a idéia de vulnerabilidade. A
partir
dela, seria possível pensar num padrão da
epidemia de
Aids que opera em duas fases: num primeiro momento, afeta
coletividades em função de comportamentos
específicos
como a prática do sexo anal, uso de drogas
injetáveis
ou hemofilia. Numa segunda fase, atinge
populações com
riscos individuais relativamente baixos, mas de grande magnitude em
termos do número de pessoas vivendo em
situações
de vulnerabilidade, e é aí que se enquadra a
população
feminina.
Regina
Barbosa, médica sanitarista e pesquisadora do
Núcleo de
Estudos de População (Nepo) da Unicamp, ao
escrever
sobre a relação entre mulher
e Aids lembra
que “a maioria das mulheres que estão sendo
atingidas pela
epidemia não apresentam qualquer comportamento sexual
particular, mas, ao contrário, agem segundo o que se espera
que façam: são casadas, conheceram (sexualmente)
poucos
homens na vida, não costumam exigir nem fazer muitas
perguntas
a seus parceiros e, portanto, não usam camisinha”.
O
uso do preservativo masculino tem aumentado de maneira significativa
no mundo e no Brasil. Segundo dados do Ministério da
Saúde,
sua distribuição passou de 12 milhões
e 780
unidades, em 1994, para 2002 milhões de unidades em 2005. A
meta do governo federal é distribuir 1 milhão de
unidades em 2006. Mas esse aumento tem sido observado mais nas
relações casuais do que nos relacionamentos
estáveis,
segundo pesquisa nacional do Ministério (2000). É
também crescente na população adulta
jovem,
resultando na redução das taxas de
incidência da
Aids nas faixas etárias masculinas de 13 a 29 anos. Nas
faixas
posteriores, principalmente entre 40 e 59 anos, a taxa de
incidência
da doença têm aumentado.
Usar
ou não usar camisinha não é a
questão
“A
feminização da epidemia de Aids ocorreu
justamente por
conta de padrões de comportamento que permitem ao homem ter
uma vida sexual mais liberada, reservando às mulheres um
lugar
mais submisso nessa questão. Além disso, existem
diferenças de poder consideráveis nas
relações
entre homens e mulheres e ainda persiste o mito do amor
romântico
nas relações afetivas, onde cumplicidade e
fidelidade
seriam pressupostos inquestionáveis ”, diz Dirce
Guilhem,
professora da Faculdade de Ciências da Saúde da
Universidade de Brasília (UnB). A falta de poder e autonomia
das mulheres nas relações sexuais e afetivas se
deve
aos padrões culturais, à desigualdade de
gênero e
ao controle da sexualidade feminina que ainda persistem,
ultrapassando classes sociais e educação formal,
conforme lembra a pesquisadora.
Manter orelacionamento e o vínculo
amoroso motiva mais as pessoas do que a
manutenção da
saúde, a prevenção de
doenças ou
gravidez, segundo a tese de doutorado de
Maria Amélia Lobato Portugal, professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Em
seu trabalho, a psicóloga investigou as
negociações
entre homens e mulheres sobre o uso do preservativo feminino,
comercializado no Brasil desde 1997, e distribuído, na rede
pública de saúde, a partir de 2000. As escolhas
sobre
métodos de prevenção do HIV e das DSTs
envolvem
uma série de valores postos nos relacionamentos, que se
revelaram nas histórias de vida dos entrevistados e que
vão
além da questão da
proteção. Na rejeição
ao uso do preservativo masculino nas parcerias estáveis, por
exemplo, podem prevalecer, mais do que a noção de
risco, a idéia de uma prova de amor. “Se a
rejeição
da camisinha masculina pelo parceiro pode ter o sentido de marcar sua
virilidade e presumida fidelidade, a rejeição
pela
mulher pode ser um sinal de que ela confia nele, que existe um
'compromisso' transformador do ato sexual em algo sublime. Assim, o
ideal conjugal romântico fica mais próximo do
vivido”,
afirma a psicóloga.
O
uso do preservativo feminino, por sua vez, passa por
questões
que vão desde a explicitação do desejo
feminino
– através da iniciativa de
obtenção do
preservativo que denotaria uma
“preparação para o
sexo” considerada constrangedora por muitas das entrevistadas
–
até dificuldades de lidar com o próprio corpo
durante a
inserção do produto (que exige o auto-toque
vaginal do
qual muitas mulheres relatam “sentir vergonha”).
Mas o uso do
preservativo feminino também foi descrito como uma
experiência
positiva, em contraposição, muitas vezes, ao uso
da
camisinha: “Se eu tiver duas opções,
vou escolher a
feminina! Ela não aperta!”, afirma Guto, um dos
entrevistados na pesquisa.
“O
preservativo feminino é uma possibilidade de
prevenção
que pode ser um veículo para a autonomia das mulheres nos
relacionamentos afetivos-sexuais ”, afirma Dirce Guilhem. No
entanto, estudos têm demonstrado que o uso se
mantém
estável, mesmo diante da feminização
do
HIV/Aids, o que poderia ser explicado por alguns alguns fatores: o
preço superior ao do preservativo masculino; esteticamente,
ele pode causar constrangimentos para a mulher e negativa do homem; o
barulho ocasionado durante a relação sexual com
preservativos femininos tem sido relatado com
freqüência
como um impeditivo para sua utilização; nem
sempre os
serviços de saúde têm estoque para as
usuárias.
Seu uso tem sido recomendado para o caso de mulheres ou casais mais
idosos, quando o homem tem dificuldade de manter a
ereção
durante a colocação do preservativo masculino.
“A
disponibilização de recursos materiais como
artefatos
tecnológicos de prevenção como o
preservativo
feminino não garantem sua
incorporação na
prática cotidiana, caso não haja capital
simbólico
suficiente para gerenciar conflitos e dificuldades no processo
”,
lembra Amélia Portugal. Por isso, a chamada rede de apoio
(escola, amigos, profissionais da saúde, mídia,
parceiros sexuais, religião ou família) seria
importante no que diz respeito à
orientação,
trocas de experiências e acompanhamento adequado. Nesse
contexto, o sistema público de saúde é
importante. “Os bons programas de
prevenção priorizam
os indivíduos e suas trajetórias de vida, e
não
informações técnicas”.
Não basta,
portanto, só distribuir camisinhas. Tendo em vista essa
pluralidade de significados presentes nos relacionamentos sexuais e
afetivos, não existe método de
proteção
que seja universal, que valha para toda e qualquer pessoa.
“Usar ou
não usar camisinha não é a
questão, por
mais paradoxal que possa parecer. As questões principais
são
aquelas diretamente ligadas à sexualidade,
construção
social historicamente dada; mudanças de hábitos e
promoção da saúde”, lembra
Amélia
Portugal.
Campanhas
oficiais
Mesmo
com a modificação do perfil das pessoas
infectadas pelo
HIV, as campanhas publicitárias continuam basicamente
estruturadas no uso do preservativo masculino, quando a
intenção
é evitar a transmisssão da doença pela
via
sexual. Para Wildney Feres Contrera, professora da Universidade
Cruzeiro do Sul e membro do Conselho Consultivo do Grupo de Apoio
à
Prevenção à Aids (Gapa) de
São Paulo, a
incorporação do uso do preservativo masculino
é
uma forma de prevenção séria e que
dá
resultados. Ela acredita que focalizar as campanhas no uso da
camisinha é importante mas não é
suficiente: a
questão dos valores e do universo feminino e dos
comportamentos das mulheres também devem ser abordados. O
Estado tem desenvolvido pesquisas para focar as
ações
de prevenção nas mulheres mas esse
público tende
a ser visto de forma recortada, como no grupo das profissionais do
sexo e das mulheres de baixa renda, por exemplo. Contrera sugere um
olhar que perceba a mulher como uma “nova
categoria”. Uma saída
para esse impasse seria a camisinha feminina, que está longe
de ser aceita como uma prática corrente. Para isso,
é
preciso haver um investimento sistemático em campanhas de
massa.
Ao
analisar as campanhas do governo federal veiculadas na
televisão
entre 1986 e 2000, Luís Henrique Sacchi dos Santos,
professor
da Universidade Luterana do Brasil, do Rio Grande do Sul, destaca que
durante o período entre 1994 e 2000, as peças se
voltaram mais para as mulheres como, por exemplo, a campanha
“Quem
se ama se cuida” (1994). Sacchi dos Santos acredita que as
peças
não consideram a relação de
gênero ao
focalizar exclusivamente nas mulheres as
negociações
envolvendo o uso do preservativo ou ao negar a se submeter à
relação desprotegida. “É
preciso que se
invista também na saúde do homem, tornando-o um
agente
das ações preconizadas nos anúncios
televisivos
e nas campanhas de saúde de um modo geral”,
esclarece.
Trajetória
das campanhas no Brasil
Para
o pesquisador, as campanhas de prevenção
caracterizam-se pela seguinte trajetória. Entre 1986 a 1990,
os anúncios televisivos se propunham a falar de uma forma
mais
geral, procurando informar ao público. Anúncios
como “Eu não tenho cura” (1991)
nortearam um discurso mais
intimidatório, reforçando a
discriminação
contra os soropositivos nas campanhas de 1990 a 1994. Neste ano, o
Banco Mundial passou a financiar projetos na área da
saúde,
alavancando o primeiro programa nacional, marcado também
pela
participação das ONGs. De 1994 a 2000, os
anúncios
enfatizaram determinados tipos de comportamento, usando humor e
personalidades de prestígio (atores e cantores) para
persuadir
as pessoas, assumindo os princípios do marketing social.
O
governo federal apostou na fórmula estruturada na
prevenção,
no tratamento e no acompanhamento de pessoas com Aids. Foram
desenvolvidas campanhas publicitárias que priorizaram o
incentivo ao uso da camisinha nos diversos grupos sociais,
público-alvos das investidas
(população de baixa
renda, jovens, travestis, caminhoneiros, mulheres, homens, com
exceção dos viciados em drogas e
crianças). Em
geral, a televisão é considerada o agente
principal de
divulgação de massa e as campanhas veiculadas por
ela
têm um tempo limitado de exibição,
acontecendo
principalmente durante o Carnaval e o Dia Mundial de Luta contra a
Aids (1 de dezembro). Segundo Sacchi dos Santos, a campanha veiculada
na televisão apresenta a idéia principal do que
será
desdobrado em outros produtos (spots de rádio, cartazes,
folders, outdoors, por exemplo) e ações
(distribuição
de preservativos). Dessa forma, as campanhas não se
restringem
aos anúncios televisivos e nem ao Carnaval e ao primeiro de
dezembro: "há ações que não
são
visíveis para o grande público, de modo que se
considera que as campanhas se limitam a tais períodos
”,
justifica. Desde 2001, R$ 10
milhões são
investidos em campanhas publicitárias por ano, com
exceção
do ano de 2005, quando o governo federal gastou R$ 12
milhões.
Mas
até que ponto as campanhas de
prevenção
influenciam na mudança do comportamento das pessoas? Wildney
Contrera acredita que a publicidade consegue passar
informação,
mas não mudar diretamente o comportamento relativo
à
proteção. “As pessoas hoje
estão informadas
sobre a doença e suas medidas preventivas, mas
não as
usam. Elas não se identificam ou não se
vêem como
possíveis infectados, vulneráveis à
doença”,
indica. Segundo a pesquisadora, os trabalhos preventivos
estão
voltados a públicos específicos, a
prevenção
é adiada e o tratamento, priorizado. Dessa forma, seria
necessário retomar um discurso mais universal. Em seu estudo
sobre o discurso das campanhas governamentais sobre a Aids, ela
concluiu que, apesar de as pessoas não usarem a
informação
imediatamente, as peças publicitárias criam uma
esfera
social de discussão, que se dá na conversa
interpessoal, em lugares menores, que podem ter caráter mais
mobilizador.
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