Há um consenso sobre a importância estratégica da presença de doutores
titulados para o desenvolvimento científico e tecnológico de uma região. “Os
recursos humanos são fundamentais para a inovação e a competitividade.
Doutorados e os detentores de qualificação não são apenas pessoas mais qualificadas,
em termos educacionais, mas também são os únicos treinados especificamente para
a pesquisa”, diz um estudo estatístico europeu, “Doctorate holders – statistics
in focus” (Eurostat), de 2007. A formação brasileira nesse segmento
profissional está ainda aquém da expectativa. Porém, a sociedade brasileira tem
avançado de forma sistemática na implementação de infraestrutura e recursos
humanos para reverter essa condição.
O país apresentou, em grande parte de sua história, políticas de gestão
correspondentes apenas às necessidades de um Estado agrário, oriundo da
exploração colonial e de governos oligárquicos, cujas ações conduziam,
principalmente, à exploração dos recursos naturais, agropecuários, e seu
rudimentar beneficiamento industrial. Entretanto, a necessidade de otimizar as
produções pecuárias e agrícolas, juntamente com os remanescentes problemas
nacionais de higiene, saúde e saneamento básico, fomentaram, no século XIX, a
formação dos primeiros centros de pesquisa, como é o caso do Instituto
Agronômico de Campinas, em São Paulo, fundado em 1887 para atender as
exigências da cultura cafeeira. Ações como essa guiaram o século seguinte à
implementação de infraestrutura e de escolas de nível superior, seguindo
rigorosos preceitos estrangeiros, como o Instituto Osvaldo Cruz, no Rio de
Janeiro, em 1912, originando os moldes da pesquisa biológica no país.
Mas a formalização do compromisso estatal com a pesquisa só ocorreu em
1942, quando foram criados os Fundos Universitários
de Pesquisa para a Defesa Nacional, devido ao ingresso do Brasil na Segunda
Guerra. Com esse programa de verbas, até 1946, foram investidos em torno de US$
60 mil. Essa medida orientou as ações da política nacional de desenvolvimento
para a formação de
órgãos de fomento, amparo e capacitação de profissionais. Os descendentes desse
fundo apareceram nas décadas seguintes: a fundação, em 1951, do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
e da Campanha Nacional de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – mais
tarde renomeada como Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – e a criação da Fundação de
Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em 1962, marcam a institucionalização da pesquisa científica e tecnológica em todo o território
brasileiro.
A questão do desenvolvimento científico e tecnológico se faz presente
nos programas de governo brasileiros desde a década de 1930. Mas apenas a
partir dos anos 1970, em pleno regime militar, as necessidades nacionais nessa
área foram formalmente abrangidas como prioridades, através do Programa das Metas e Bases para Ação do
Governo. Ali foram propostas mudanças de rumos nas políticas de
educação, agricultura, indústria e desenvolvimento científico e tecnológico
através de diretrizes específicas. Um exemplo dos investimentos desse programa
de metas foi a elaboração de projetos de captação e gerenciamento de energia,
como o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) criado em 1975, em meio à crise internacional do petróleo
iniciada nos anos anteriores. Nesse período, a Petrobras, cujo patrimônio
inicial contava com as refinarias de Mataripe, na Bahia, e Cubatão, em São
Paulo, com incentivos estatais, deixou de realizar exclusivamente operações de
exploração e produção de petróleo para também desenvolver tecnologias nesse
setor de energia alternativa.
Em 1985, o governo federal criou o Ministério de Ciência e Tecnologia
para centralizar a política científica e tecnológica do país. Por outro lado, a
Constituição de 1988 apresentou uma importante iniciativa de descentralização
da produção do conhecimento. Com essa medida, cada estado deveria assumir o
compromisso de estimular e gerenciar as pesquisas realizadas em seu território,
ou seja, promover a criação de suas próprias fundações de amparo à pesquisa.
A recorrente manutenção da política de investimentos em ciência e
tecnologia proporcionou uma condição bastante favorável ao país, de forma que o
número de pesquisadores (entre cientistas e tecnólogos) passou de nove mil em
1970, para 60 mil em 1990. Esse conjunto de esforços propiciou ao Brasil
o status de pioneiro em
pesquisas de energias renováveis e sustentáveis. Desde então, o Brasil manifesta
uma forte vocação para reconhecer e tratar grandes tendências internacionais.
Atualmente, a formação de doutores no país cresce à taxa de 15% ao ano e
o Brasil se destaca em 13º lugar no ranking
mundial da produção de artigos científicos. Contudo, o levantamento “Doutores
2010: estudos da demografia de base técnico-científica brasileira”, promovido
pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), aponta que a distribuição do
número de titulados no país entre 1996 e 2008 concentra-se em torno de 78%, no
Sudeste. Isso se deve ao número bem maior de programas de pós-graduação na região, principalmente no estado de São
Paulo, em comparação com outras unidades da federação.
“Essa tendência de se concentrar os programas de pós-graduação em
determinadas regiões não é um problema de subdesenvolvimento. A tendência da
ciência é concentradora, porque ela é um sistema que funciona por mérito. E
para isso se tem a política, para desconcentrar”, afirma Lea Velho, professora de estudos sociais da ciência e da tecnologia junto ao
Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Uma das consequências disso é o deslocamento dos estudantes
de centros de ensino de regiões ainda em desenvolvimento para as regiões mais
desenvolvidas. “Os que querem se qualificar escolhem os melhores centros”,
explica a pesquisadora. Segundo o estudo apresentado pelo CGEE, ainda não é
possível mapear esse movimento migratório vinculado a ciência e tecnologia no território nacional.
Lea Velho lembra que as políticas voltadas para a diminuição dessas
desigualdades regionais podem não apenas reverter essa migração intelectual, mas
inclusive afetar diretamente o setor produtivo. “Existe a tendência, por
exemplo, das empresas locais buscarem conhecimento nas universidades que estão
próximas. Então, é importante ter uma certa competência instalada. Além disso, há
a importância de se formar recursos humanos localmente, pessoas que sejam
comprometidas com a região, que conheçam os problemas da região ”, complementa a
pesquisadora.
A distribuição percentual
dos programas de doutorado por regiões no Brasil ainda está fortemente concentrada
na região Sudeste, com 72%; em seguida, vem o Sul, com 18,3%, e o Nordeste, com
13%: o Centro-Oeste tem só 5,6%, e o Norte, apenas 2,7%, segundo o levantamento
do CGEE. Contudo, o estudo aponta uma importante dinâmica de descentralização no
período entre 1996 e 2008: a região Sudeste, que era responsável por cerca de
90% da formação de doutores no país, sofreu uma redução de aproximadamente 20% nesta
contribuição ao longo de 12 anos.
“Esse declínio relativo foi
resultado do fato de as taxas de crescimento das demais regiões terem sido
muito superiores à da região Sudeste. Enquanto o número de titulados nessa região cresceu
198% durante o período, o da
região Norte cresceu 438%, e esse crescimento foi de 682% na região Sul e de 840% na Centro-Oeste. A região Nordeste,
no entanto, apresentou a excepcional taxa de crescimento de 2.487% no período”, diz o estudo.
Esse crescimento está diretamente relacionado à produção científica nacional como um todo, 85% da qual, segundo a Capes,
é realizada pelas pós-graduações. Já os indicadores do CNPq por regiões geográficas
mostram que a contribuição de cada região na produção de artigos também está mudando: enquanto no período
1997-2000, o estado de São Paulo sozinho contribuía com 64% da produção
nacional de artigos, no período 2005-2008, a região Norte respondeu por 3% do
total, a Centro-Oeste ficou com 7%, a Nordeste com 13%, a Sul com 21% e a
Sudeste com 56%.
Comparação
das taxas relativas de crescimento de pós-graduações por região no Brasil
(número de cursos avaliados nas Avaliações Trienais da Capes em 2007-2010). Fonte: Capes.
Essa mudança evidencia o apoio que cada região recebe do sistema
nacional de C&T como um todo, não apenas referente a infraestrutura e
equipamentos, mas principalmente pelo impacto resultante da formação de
recursos humanos que permanecem para desenvolver a instituição e,
consequentemente, a região. A autonomia de atuação e as garantias de
recursos financeiros são indicadores da importância dos órgãos de fomento locais. Segundo o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap),
o
orçamento executado pelo conjunto das fundações estaduais de amparo à pesquisa
no ano de 2009 foi de R$ 1,7 bilhão, sendo que a região Sudeste representa 72%
desse valor. Só a Fapesp responde por R$ 726 milhões. As FAPs do Nordeste somam
11% do total de recursos, as do Norte e do Centro-Oeste representam 6% cada
uma, e as do Sul somam 5%. O crescimento do orçamento total das FAPs para este
ano está estimado em 13%.
Para Lea Velho, da Unicamp, de certa forma, é injusto
querer comparar a Fapesp com as demais. “O contexto de criação delas é um
momento histórico totalmente diferente. O que se espera que uma FAP faça quando
ela é criada é diferente do que se esperava quando a Fapesp foi criada. Ela
teve tempo de traçar uma tragetória, amadurecer o processo de negociação da
comunidade com a política. E para as outras FAPs, as condições de contorno são
totalmente diferentes”, observa.
As FAPs têm importantes contribuições para a evolução daqueles índices apontados
pelo CGEE, pela Capes e pelo CNPq, sobre a demografia das pós-graduações e da
produção de artigos. Mas a ideia de sua criação não é apenas para estimular a
produção de conhecimento, e sim para desenvolver muitos papéis. “Uma FAP
específica pode, por exemplo, ser a intermediadora em um processo de
planejamento estratégico com ampla participação. Ela define seu locus de atuação como sendo a
instituição que vai fazer a intermediação entre os vários atores”, explica Lea
Velho.
Os avanços alcançados pelo Brasil nos últimos anos ilustram o fato de que o
desenvolvimento econômico origina-se a partir de diferentes graus de produção
de conhecimento. Dessa maneira, é importante que a formação dessa herança
consolide os investimentos e gastos relacionados com ciência e tecnologia de
maneira que se mantenha e se amplie o sistema de apropriação, criação, difusão e,
principalmente, de acesso ao conhecimento. O desafio está em continuar
diminuindo essas concentrações e as limitações intrínsecas de cada região
ligadas às suas histórias e culturas, propiciando o aproveitamento da expertise
para revelar o potencial significativo tanto nos quadros científicos
quanto no parque industrial.
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