09/05/2007
A dor pode acontecer de diversas formas. "Dor visceral, somática, neuropática. Freqüentemente o paciente apresenta mais de um tipo de dor. Dificilmente um único fármaco vai oferecer analgesia ampla e total ao paciente. Precisa haver combinação de fármacos distintos, com mecanismos de ação diferentes para o tratamento da dor em um paciente”. Graduada pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP), onde atualmente leciona, a anestesiologista Gabriela Rocha Lauretti fez especialização em dor e mestrado na Universidade de Manchester, na Inglaterra, antes de retornar à USP para desenvolver o doutorado e a livre-docência. No Hospital das Clínicas da universidade, ela é responsável pela Clínica para o Tratamento da Dor, trabalhando com temas como dor aguda pós-operatória e avaliação de diferentes medicamentos para o controle da dor. Além do trabalho na USP, Lauretti é professora colaboradora da Wake Forest University e da Universidade de San Diego, nos Estados Unidos, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo, onde cuida da Estruturação do Serviço de Dor. Ela foi mentora, em 2004, do projeto Ribeirão sem Dor e da criação do Hospital da Dor de Ribeirão Preto, centro de excelência para o tratamento da dor.
ComCiência – Em fevereiro deste ano, pesquisadores da Harvard Medical School publicaram em um boletim da American Medical Association os resultados de um estudo em que associam o uso de analgésicos como a aspirina ou a dipirona, amplamente usados tanto para o alívio de simples dores de cabeça quanto na prevenção de infartos, ao risco de desenvolvimento da hipertensão em homens sadios. De que forma a senhora avalia estudos como esse e que balanço faz entre os benefícios e os riscos desses medicamentos de consumo expressivo? Gabriela Rocha Lauretti – O interesse sobre este assunto iniciou em 2001, quando Kathryn Rexrode e colaboradores da Divisão de Medicina Preventiva, em Boston, nos Estados Unidos avaliaram de forma retrospectiva a ligação entre uso de analgésicos como a aspirina, o paracetamol entre outros, em relação ao risco de desenvolver disfunção renal. Segundo esses autores, esse risco não foi significante. A respeito do risco de desenvolver hipertensão arterial, propriamente dita, em 2002, Gary Curhan e colaboradores da Harvard Medical School, nos Estados Unidos avaliaram de forma prospectiva mais de 80 mil mulheres, as quais utilizavam aspirina, paracetamol, e outros antiinflamatórios. A conclusão dos autores foi que o uso da aspirina não resultou em aumento da probabilidade de desenvolver hipertensão arterial, porém este risco ocorreu com o uso de paracetamol. Estes dados foram posteriormente confirmados por John Forman e colaboradores. Recentemente, o mesmo autor, Forman, que antigamente estava vinculado à Universidade de Boston, e agora encontra-se vinculado à Harvard Medical School, avaliou mais de 16 mil homens durante 4 anos, em relação à ingestão de analgésicos ou antiinflamatórios e o desenvolvimento de hipertensão arterial. Agora, esses autores relatam que o uso de aspirina diariamente, para dor de cabeça, ou outras dores, (e principalmente relacionado ao número de comprimidos ingeridos por dia) está relacionado com maior risco de desenvolver hipertensão arterial.
A respeito do uso de doses pequenas de aspirina para a prevenção de infarto do miocárdio, essas doses pequenas oferecem mais ganhos e segurança para o paciente do que o seu não uso, e os pacientes devem seguir a orientação médica prescrita e manter sua ingestão diariamente. Acredito que o maior problema seja em relação ao uso abusivo de aspirina ou paracetamol, e isto ocorre porque a população se automedica e esses fármacos estão disponíveis em qualquer farmácia. A auto-medicação de analgésicos é que deve ser evitada, e não as prescrições de analgésicos pela classe médica.
Já a relação entre dipirona e hipertensão arterial não foi avaliada até o momento. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, a dipirona não está disponível no mercado, acredito que mais por problema cultural. Por conseguinte, não há nenhum dado sobre o uso de dipirona e o risco de desenvolver hipertensão arterial.
ComCiência – A senhora mencionou a auto-medicação para o combate à dor como um problema a ser evitado, e a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor trata da importância da investigação e combate às causas das dores e da sua relação com aspectos emocionais, com as condições do ambiente físico, com as relações sociais e com a postura e o estilo de vida das pessoas. É complexo pensar em mudança de comportamento em relação à dor? Lauretti – Mudanças de comportamento sociais são historicamente lentas, pois envolvem interesses diversos como do empregador, do empregado já que a má postura, o esforço repetitivo ou o acidente que podem causar dores ocorrem muitas vezes no local de trabalho e do governo. É um tema prolixo, muito longo, para discussão.
ComCiência – O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas e a Universidade Federal de São Paulo realizaram um simpósio em 2004, no qual sugeriu-se a reclassificação da Cannabis sativa (maconha), tida como “extremamente perigosa” pela Convenção Única de Entorpecentes de 1961, feita pelas Organizações das Nações Unidas. O objetivo da sugestão é facilitar a descriminalização e possibilitar o avanço das pesquisas sobre usos medicinais da maconha, entre outros, como analgésico. O que as pesquisas já revelaram sobre o potencial dos compostos dessa planta e qual a perspectiva para que algum princípio ativo seja sintetizado, produzido e comercializado legalmente? Lauretti – As posições sobre o uso da maconha como droga legal no tratamento da dor são divergentes. Eu, pessoalmente, sou contra o uso da maconha em si, porém não de seus derivados ou outros fármacos que possuam mecanismo de ação semelhante. Existem outros analgésicos como o paracetamol, que é um precursor canabinóide interno, e se liga nos mesmos receptores da maconha, e que vem sendo amplamente utilizado nos últimos 100 anos sem que seu mecanismo de ação fosse totalmente esclarecido, e que é legalizado. Isso não assusta, pois a própria morfina, que hoje é o analgésico padrão de comparação, foi utilizada por mais de 5 mil anos sem que seu mecanismo de ação fosse esclarecido. O que tem que ser considerado no tratamento da dor é que ela apresenta diversas características, como dor visceral, somática, neuropática, e freqüentemente o paciente apresenta mais de um tipo de dor. O detalhe é que cada subtipo de dor deve ser tratado. Dificilmente um único fármaco vai oferecer analgesia ampla e total ao paciente. Precisa haver combinação de fármacos distintos, com mecanismos de ação diferentes para o tratamento da dor em um paciente. Depende do caso. O uso da marijuana para o tratamento da dor seria o uso de apenas mais um fármaco, que não seria milagroso, e talvez fosse até ineficaz. Vamos supor que houvesse com o uso de maconha uma analgesia discreta ou mesmo moderada, porém o grau de “conforto”, “desligamento do meio ambiente” seria mais proeminente que a própria analgesia. Ora, o interesse não é “desligar” o paciente, e sim oferecer analgesia adequada e manter o paciente integrado com a família e com outros ambientes de trabalho ou social. “Desligar” o paciente e ele permanecer com os circuitos da dor ativados resulta em liberação aumentada de hormônios do estresse, o que levaria – falando de modo simplista – a um excesso de trabalho de todos os sistemas do organismo, ou seja, haveria aumento da pressão arterial, sobrecarga cardíaca, diminuição da ventilação pulmonar, entre outras coisas.
ComCiência – Em um dos editoriais publicados no boletim mensal do site Dor On Line, afirma-se que “nós humanizamos os animais quando referimos que eles sentem dor”. A sensação de dor, então, estaria mais associada à percepção e consciência de uma experiência sensorial e emocional desagradável? Como explicar para o público leigo a diferença entre humanos e animais nos processos de transmissão e processamento de experiências sensoriais como uma lesão na perna, por exemplo, que leva tanto os primeiros quanto os últimos a mancar? Lauretti – Qualquer tecido lesado ou machucado resulta em processo inflamatório imediato no local, o qual tem a finalidade de cicatrizar o tecido e restabelecer a função do membro acometido pela lesão. Simultaneamente, ocorrem mensagens que vão do tecido lesado para a espinha ou medula, as quais são processadas, e que sobem em direção ao cérebro, onde em humanos ocorre ligação com o sistema límbico, localizado na região cerebral anterior, e promove ligação com o aprendizado da dor, ou seja, vincula-se às emoções anteriormente sentidas quando o paciente teve dor. Apesar do animal não ter esta ligação emocional evidente, o mesmo sente dor após lesão do tecido e possui reflexo de fuga e aprendizado para evitar atitudes dolorosas.
ComCiência – Além dos aspectos neurológicos e psicológicos, há também um fator cultural na percepção da dor? Lauretti – Assim como existe diferença entre os sexos masculino e feminino em relação à percepção, expressão e tolerância à dor, as diferenças étnicas foram descritas por alguns autores dos Estados Unidos, como Eun-Ok Im em estudo de 2006, sobre diferenças na percepção da dor em pacientes com câncer, enquanto outros autores negaram, como Gil Yosipovitch, em estudo de 2004, sobre o impacto de etnia na dor em cirurgias dermatológicas. Ainda não está bem esclarecida na literatura médica a ligação entre o fator cultural e a percepção da dor.
ComCiência – A senhora pode apresentar um breve histórico da evolução dos estudos da dor e do papel da pesquisa brasileira no cenário internacional nessa área? Lauretti – Essa pergunta demanda uma resposta longa. O certo seria discursar sobre cada área envolvida na dor e suas contribuições. Com certeza, a pesquisa brasileira encontra-se inserida no cenário internacional da evolução do entendimento e pesquisa da dor, tanto na área básica, como na área clínica. Por exemplo, citando nossa instituição, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, estudos sobre processos inflamatórios periféricos e centrais vêm sendo desenvolvidos na área básica, enquanto o uso da terapia multimodal espinhal vem sendo avaliada pelo nosso grupo, na Clínica para o Tratamento da Dor, no Hospital das Clínicas, tanto na dor aguda pós-operatória, como na dor crônica.
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