Em vários trechos de suas Investigações filosóficas, Ludwig Wittgenstein se dedica a refletir sobre a dor. O tema central em torno do qual o filósofo se debate é a linguagem, e uma das questões em debate é a capacidade de entendimento entre os seres humanos. Wittgenstein elabora em seus aforismos inquietações referentes ao modo como uma palavra é enunciada e ao modo como é recebida pelo outro. Precursor de discussões contemporâneas da lingüística sobre a polissemia, e de debates da antropologia sobre a alteridade, o filósofo elaborou, nesse livro produzido sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, na década de 40, uma aproximação das relações entre a linguagem e a dor.
Uma das linhas de pensamento adotadas consiste em pensar a dor a partir de sua inserção na vida privada. Se eu tenho uma dor, e manifesto ao outro, posso ter a expectativa de que ele compreenda o que se passa em meu interior. A palavra “dor” cumpriria um papel conector, permitindo que o outro reconhecesse o que se passa dentro de mim. No entanto, explica Wittgenstein, a palavra “dor” não equivale a um grito. Ao gritar, manifestamos uma sensação, a partir de uma vivência imediata. Usar a palavra “dor” consiste em tentar substituir a manifestação imediata por uma referência abstrata.
Em uma série de aforismos, a partir do 244, Wittgenstein encontra na reflexão sobre a palavra “dor” um núcleo crucial para interrogar os limites de nossa reflexão sobre a linguagem. Existem vivências que poderiam, em princípio, ser partilhadas de maneira equivalente por diferentes seres humanos. No entanto, a essa expectativa se opõe a percepção de ser incompreendido pelos outros. O que se passa dentro do sujeito, em alguma medida, é inacessível ao outro. Se os homens partilham palavras convencionais, por que os mal-entendidos são comuns? Em sua dinâmica interrogativa, fragmentária e voltada criticamente para seus próprios fundamentos, a escrita de Wittgenstein elabora, em torno da palavra “dor”, a perturbação resultante do antagonismo entre a necessidade de integração com o outro e a vertigem do isolamento. Para vivências amenas e superficiais, somos capazes de criar taxonomias, e ensinar crianças a organizar suas relações com o mundo. Para o sofrimento interno, as sensações imprecisas, as palavras parecem escapar às suas finalidades sociais.
No aforismo 302, Wittgenstein afirma “Se precisamos representar-nos a dor dos outros segundo o modelo de nossa própria dor, então isto não é uma coisa fácil: pois devo representar-me dores que não sinto, segundo dores que sinto.” Essa dificuldade pode suscitar uma projeção, em que não consigo compreender o outro fora dos parâmetros de minha própria vivência. Se ainda não passei pela vivência de uma sensação, o conceito abstrato que a designa não evoca lembranças suficientes para identificar o que se passa com o outro.
Mais do que isso, o aforismo evoca a questão da especificidade do momento presente. Se o sujeito não vivencia nenhuma dor de imediato, a escuta da palavra “dor” da parte do outro pode ter atribuído um sentido muito diferente do esperado pelo outro. Pode ou não haver empatia. Pode ou não ser concedida atenção. O sujeito pode priorizar a si mesmo na orientação de seus interesses, de modo que seu grau de empatia com o outro pode variar, dependendo das suas próprias dores.
As contribuições da literatura romântica ao tema antecedem historicamente as reflexões de Wittgenstein. Em escritores como Keats e Leopardi, a valorização da melancolia era crucial para a constituição do sujeito. A percepção da distância entre a finitude humana e o infinito do universo motiva a dor. A configuração estética da ironia, em que mortalidade e eternidade se confrontam, é a condição em que o sofrimento se encontra com o sublime.
A construção teórica do inconsciente em Freud envolveu uma articulação entre a linguagem e o sofrimento. Nos sonhos, nos lapsos, em sintomas são manifestos elementos recalcados, que nos instabilizam e nos constituem. Com os traumas se delimitam contornos do ego. O emprego da linguagem é condicionado por essa dinâmica, contrariando a imagem segura do cogito cartesiano. No romantismo e na psicanálise encontramos reflexões importantes sobre as relações entre dor e linguagem, mais do que isso, sobre usos de linguagem que nascem da dor.
A Segunda Guerra Mundial, arena em que o desentendimento entre os homens toma a proporção de genocídio e catástrofe, é o horizonte histórico dos estudos de Wittgenstein. Se o assunto aparecia nos românticos e em Freud, em Wittgenstein a relação entre dor e linguagem ganha uma nova escala de repercussão.
À luz das Investigações filosóficas é acentuado o interesse pelos numerosos exemplos apresentados por Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros, de problemas contemporâneos ligados à violência. A autora reúne casos de fotografias e reportagens de televisão referentes à guerra, e discute em que medida sua exposição desperta apatia, ou conduz à exigência de mais violência. O livro de Sontag está centrado no problema da distinção entre a “minha dor” e a “dor dos outros”, e não se atreve a propor nenhuma conclusão didática, permanecendo no desassossego. Em certo ponto, na página 63 do livro, examinando um exemplo recente, a autora afirma: “o outro, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não alguém (como nós) que também vê”. Com isso, a dor do sujeito é irredutível ao outro.
Se fosse possível generalizar essa observação, poderíamos estabelecer a hipótese de que a relação contemporânea entre a mídia e a violência envolve, em larga medida, uma exigência de reflexão sobre o sofrimento. O maniqueísmo nesse ponto é arriscado. A mídia alega ter função esclarecedora, ser capaz de alertar, e mesmo de mobilizar. Por outro lado, sua presença pode eficientemente produzir condições para fortalecer preconceitos, ódios e ressentimentos coletivos. O problema do entendimento entre os seres humanos, pensado um a um, se articula com a exigência de interpretar, no campo da indústria cultural, as funções regressivas assumidas por segmentos das empresas de comunicação, em contribuição para a barbárie. Em ambos os pontos, é necessário discutir se o desentendimento é constitutivo das relações humanas.
Os conflitos contemporâneos motivam a releitura atenta de Wittgenstein. Debruçado sobre temas como a mentira, o tempo, o espaço, a gramática, a pintura, a música, o filósofo perseguiu com intensidade as relações descontínuas entre linguagem e experiência. Nessa busca, o lugar ocupado pela dor é fundamental. A palavra “dor” não é a dor mesma; os referenciais interiores da palavra para o sujeito se distinguem dos referenciais adotados pelo outro; a confiabilidade limitada na palavra se vincula com uma confiabilidade limitada no outro. Nenhuma convenção social sobre o emprego da linguagem pode evitar que, sentindo dor, o sujeito se sinta incompreendido pelo outro. Como podemos elaborar a partir do aforismo 303, as relações humanas poderiam ser muito diferentes se fosse transparente a relação entre dor e linguagem, se sentíssemos a dor do outro ao ouvi-lo enunciando a palavra “dor”.
Jaime Ginzburg é professor de literatura brasileira da FFLCH – USP e pesquisador do CNPq.
Edições consultadas: SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Os Pensadores, XLVI)
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