REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Ortografia - Carlos Vogt
Reportagens
A transformação do mundo pela escrita
Maíra Valle e Alessandra Pancetti
Lusografia: reações à reforma revelam questões sociais
Nivaldo Amstalden
Polêmica em torno da mudança ortográfica não ocorre só no Brasil
Maria Carolina Ramos
A internet e a cultura escrita
Danilo Albergaria
Alfabetização indígena: a escrita revitaliza línguas?
Maria Clara Rabelo
Artigos
Ortografia não é apenas escrever palavras com a grafia correta
Luiz Carlos Cagliari
A língua do povo, a fala do povo
Maria Célia Lima-Hernandes
Espaço literário e seus operadores de ressonância e de captura
Leonardo Pinto de Almeida
Comunicação popular escrita, o certo e o errado
Ilza de Paula Pellegrini
Proler – à guisa de um primeiro balanço
Eliane Pszczol
Manoel de tortografia e desgramática (pequena poética para Manoel de Barros)
Adalberto Müller
Resenha
Letras e memória: uma breve história da escrita
Por Luciano Valente
Entrevista
Raul Drewnick
Entrevistado por Por Nivaldo Amstalden
Poema
Happy hour
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
A língua do povo, a fala do povo
Por Maria Célia Lima-Hernandes
10/11/2009
Nossas preocupações com a língua portuguesa, em especial no que se refere à sua correção gramatical, somente se apresentam quando temos que redigir um texto. Quase ninguém se preocupa com a forma de expressão em situações de língua falada. Apesar de situações de língua falada representarem momentos de pouca preocupação com a língua e com sua correção, é justamente a língua falada a porta de entrada para a maioria das grandes mudanças na língua escrita. Parece um contrasenso? Não é. É justamente a combinação dessa espontaneidade típica das situações cotidianas com o nosso conhecimento de como agir em determinadas situações que constitui fórmula básica para certas mudanças linguísticas.

Dizem os teóricos que a mudança se impõe pela necessidade de inovação por parte do falante. Teria o falante consciência de que uma forma de expressão já está desgastada pelo uso? Ser uma das engrenagens desse grande sistema linguístico é, na verdade, o papel do falante. Muitas das atitudes inovadoras que assume não são pensadas ou planejadas, são muito mais respostas a estímulos interacionais, a contextos comunicativos ou mesmo a regras mais gerais (e não gramaticais) compartilhadas pelo grupo.

Uma dessas regras é aquela que diz “seja relevante”, ou seja, não diga o que não é necessário dizer e o que não é requerido na situação. Atendendo a esse conhecimento sociocultural, numa situação de resposta a uma frase do tipo: “bom dia, como está?”, o falante produz uma resposta baseada em sua compreensão de que se trata de um cumprimento e não de uma pergunta sobre seu estado de saúde ou coisa que o valha. É também mobilizando conhecimentos dessa natureza que aprendemos que é necessário dar uma resposta totalmente completa. Por exemplo, quando nos perguntam “você vai viajar nessas férias?”, sabemos que podemos responder “ãh hã, lógico” ou simplesmente “vou”. Seria totalmente irrelevante dizer: “sim, eu vou viajar nessas férias”, a menos que houvesse uma razão para isso, como a necessidade de ser enfático.

Numa situação interativa espontânea, portanto, contamos com o que o outro sabe para sermos relevantes. Ao mesmo tempo, projetamos o conhecimento de mundo de nosso interlocutor para que sejamos colaborativos, econômicos em palavras e para que nossa fala se torne relevante na situação comunicativa. É o que ocorre quando comentamos com uma pessoa que vamos a um determinado lugar, esperando que essa pessoa saiba inferir o que lá faremos. Do mesmo modo, podemos dizer o que pretendemos fazer para que nosso interlocutor possa inferir para onde estamos indo. Numa sequência: “Vamos comprar pão”, o interlocutor inferirá que iremos à padaria.

Esse jogo de equilíbrio entre inferência e relevância é fundamental para que algumas mudanças gramaticais sejam deflagradas. Foi o que ocorreu com a mutação do verbo “ir”, que passou de verbo de deslocamento espacial para verbo auxiliar de futuro. Vejamos a seguinte sequência:
(1) Vou à padaria comprar pão.
(2) Vou comprar pão.
(3) Vou à padaria.

No primeiro exemplo, as informações entre colchetes são altamente pressupostas (fácil de se deduzir que naquele lugar se realize aquela ação). Então, os falantes, como resposta a uma regra maior de economia e relevância, poderão produzir as sentenças (2) ou (3), mas somente a produção da sentença (2) teria grande impacto na gramática e poderia, dessa forma, provocar uma mudança gramatical. Explicamos. Na sentença (2), encontramos dois verbos sequenciados “vou + comprar”. Na gramática das línguas, uma sequência como essa é compreendida como uma locução verbal ou perífrase verbal, o que significa dizer que o primeiro verbo é auxiliar e que o segundo é um verbo de ação. Então, o verbo “ir”, nesse contexto, passa a ser reanalisado como um verbo auxiliar; ninguém estranhará que essa sequência seja realizada, porque houve uma motivação para essa passagem, ainda que nem todos a interpretem da mesma forma.

Um falante de língua portuguesa com aproximadamente 80 anos poderá interpretar o verbo “ir” nessa sentença como indicando uma “intenção” (vou comprar = pretendo comprar), enquanto um jovem interpretaria como um tempo futuro (vou comprar = comprarei). Essa diferença de respostas nos diz muito sobre o percurso de mudança na língua.

Nas línguas em geral, o tempo futuro tem suas raízes ligadas a uma intenção (que sempre é futura, posterior ao momento da fala). Vários estudos mostram que o desenvolvimento do tempo futuro dos verbos deriva de uma sequência sintática que codifica intenção e volição (escolha ou decisão). Recuemos ao exemplo histórico do português: “hei de vencer”, em que o verbo “haver” claramente indica uma intenção, um desejo. Posteriormente, essa palavra será reanalisada como marca de futuro – “vencerei” (vencer + hei), já despojada de sua letra h.

Quando falamos em mudança linguística, devemos apagar de nossa mente a ideia de que a mudança faz algum uso necessariamente desaparecer. Se alguma palavra ou expressão sofreu algum tipo de alteração, suas funções antigas continuam sendo utilizadas pelos falantes em contextos específicos ou por grupos específicos da sociedade. Assim é que “hei de vencer” (desejo, intenção) e “vou comprar pão” (intenção) continuam existindo enquanto houver pessoas que os interpretem como tal e os utilizem também, mas serão contextos muito pontuais de uso, portanto, não tão frequentes quanto o novo uso desenvolvido. A língua muda, sim, mas o tempo de manutenção de um uso antigo sempre será aquele demandado pela comunidade que o utiliza. Se remanescer apenas na língua escrita, poderá ser considerado arcaísmo.

Procedimento semelhante ocorreu com a reanálise da expressão “risco de vida”, que sofreu em seu interior perdas sintáticas importantes. Essas perdas, no entanto, nunca foram lidas em termos negativos (preconceito linguístico), porque os falantes compartilharam a ideia evolutiva do processo pelo qual a expressão havia passado. Esses falantes foram as engrenagens que colaboraram para o sucesso dessa mudança. Se, no passado, era frequente a realização da expressão “risco de perder a vida”, com o tempo e com sua cristalização em determinados contextos, falantes dispensaram uma parte que consideravam inferível pelos seus interlocutores. Atendendo a uma regra geral da economia e relevância, passaram a dizer apenas “risco de vida”. Vejamos o processo de mudança por que passou a expressão: risco de perder a vida > risco de vida.

Mas eis que o estranhamento ocorreu. Não mais que de repente, algum consultório gramatical de plantão se deu conta de que não fazia sentido ter o risco de algo que era positivo (a vida). Propôs – e foi bem aceito pela mídia em geral – que se alterasse a expressão para: risco de morte. Não se deu conta, porém, de que a língua muda, sim, mas nunca em direção à falta de sentido ou de intercompreensão. O que o consultório gramatical fez foi restabelecer o que já existia no passado, mas que foi suprimido, dada a possibilidade de inferência pelas pessoas. Substituiu, assim, seis por meia dúzia: perder a vida = morte, reanalisando a expressão: risco de perder a vida > risco de morte.

É importante que nos lembremos de que a língua escrita tem um estatuto bastante diferente desse que apresentamos para a língua falada. Na escrita, os recursos de repetição para dirigir a leitura são outros. Também o exercício de não dizer o que supomos que o outro já saiba não pode ser aplicado eficientemente nessa modalidade da língua. A ausência de alguma informação pode ser prejudicial à comunicação. Então, preferimos, na ausência do contexto de produção, escrever de forma mais completa, sem contar com a capacidade inferencial de nosso leitor para preencher essas lacunas.

Também deve-se levar em conta que as mudanças mais sistêmicas e entranhadas na gramática da língua são menos perceptíveis aos falantes em geral. Não seria esperado que um falante (não estudioso da língua) saísse por aí afora prestando atenção no modo como são ditas as coisas muito mais do que nas próprias coisas ditas. Existem, a despeito disso, instâncias da língua que são mais “visíveis” às pessoas (diriam os linguistas: instâncias mais salientes e, por isso mesmo, mais percebidas pelos falantes).

Normalmente, é mais fácil prestar atenção ao som (quando uma mesma palavra é dita de mais de uma forma pelas pessoas, como efeito de seus sotaques, por exemplo), à opção lexical (quando, entre duas possíveis palavras para dizer, escolhemos a que nos parece mais adequada à situação, como é o caso de situações em que empregamos gírias, por exemplo) ou mesmo à grafia de uma palavra (se foi escrita com “z” ou com “s”) do que prestar atenção à sintaxe ou mesmo à morfologia da língua portuguesa.

As instâncias mais salientes da fala (sotaques) ou da escrita (ortografia) obedecem a outras motivações em termos de mudança. Se prestarmos atenção à forma como algumas pessoas de mais idade na cidade de São Paulo pronunciam a consoante “l” em contextos de final de sílaba, notaremos que houve ali uma mudança de articulação do som na boca: enquanto elas dizem “sal” com a língua tocando o céu da boca e com os lábios parcialmente entreabertos, os mais jovens necessariamente arredondariam os lábios como se dissessem “sau”. O que presenciamos no decorrer dos anos na cidade foi a substituição de uma consoante velarizada (que toca o céu da boca) pela semivocalização (surgimento de um ditongo).

Há muitas causas para a mudança da língua, e cada uma demandará um tempo maior ou menor para ser implementada. Algumas das causas que explicam mudanças linguísticas são: o contato entre as duas modalidades de língua (falada ou escrita); aquisição de língua materna pelas crianças; e a interação face-a-face e interpretações decorrentes desse contato.

A ortografia é um caso à parte desses processos de mudança já tratados, porque é exclusivo da língua escrita e dependente, em primeiro plano, da escolarização das pessoas e, em segundo plano, de sua bagagem de leitura (que pode fortalecer sua memória ortográfica). Ademais, uma mudança ortográfica é sempre imposta por algum órgão que decide reformar a escrita da língua por razões que fogem às situações comunicativas primariamente. Trata-se, na verdade, de uma decisão totalmente artificial, discutida numa mesa de negociação.

Essa mudança afeta os usuários da língua em grande medida, pois impede que os escreventes e escritores competentes possam continuar a usufruir de uma habilidade muito desenvolvida que possuem: lançar mão de sua memória ortográfica. Muitos dos usuários da língua que se consideravam sabedores da grafia, hoje podem sentir-se inseguros ao escrever um texto qualquer. O momento vivido é, assim, delicado para todos os que fazem uso da língua escrita em seu cotidiano, mesmo porque o “erro” na língua escrita conduz a um estigma social bastante importante e arraigado na sociedade brasileira.

Pode não justificar, mas torna-se mais compreensível saber que a ortografia tem história bem recente dentro da história da língua portuguesa do Brasil. As primeiras discussões sobre a unificação vão surgir na primeira metade do século XX, o mesmo século em que a maioria dos leitores desta revista nasceu. As tentativas de unificação da ortografia da língua foram várias. Nenhuma obteve sucesso justamente porque não houve iniciativas paralelas que atingissem tão fortemente a escolarização, como foi o caso do mais recente acordo (acompanhado, por exemplo, de ações governamentais exigindo a aplicação imediata da nova ortografia aos livros didáticos distribuídos às escolas básicas). Ainda assim, os ânimos continuam exaltados tanto pela parte portuguesa quanto pela parte brasileira.

Não haverá, naturalmente, fiscais competentes para a vigilância da aplicação das novas regras em todos os canais da mídia brasileira. O povo irá absorvendo aqui e ali, no que julgar mais pertinente e necessário, regras ortográficas unificadas para os países de língua portuguesa. De qualquer modo, devemos nos lembrar: se o povo não usa, a mudança pode não vingar.

O trema e os ditongos abertos têm sido os grandes ícones dessa mudança para os brasileiros. Logo o povo eliminou o trema e tem demonstrado empenho em elidir os acentos agudos dos ditongos abertos também. Talvez possamos falar em mudança ortográfica “em curso”, mas ela somente se efetivará quando toda uma geração automatizar esses novos usos. Talvez ainda possamos falar em mudança de postura precedendo a uma mudança ortográfica...

Olhar para o modo como algumas palavras ficaram registradas na escrita pode ser pista para a grafia de uma época passada. Olhemos, por exemplo, para a grafia da palavra “Bahia”, em que a letra “h” tem a clara função de sinalizar um hiato; ou para o nome do clube de futebol paulistano “Corinthians”, em que temos a representação de um período pseudo-etimológico da ortografia, quando “ph” (pharmácia), “th” e outros grafemas estranhos aparecem como moda de uma escrita bela e modelar, quando influências gregas e latinas deveriam ser explicitadas.

A palavra falada tinha grande peso e valor, como um compromisso assumido, como a honra empenhada. Esse cenário vai mudando. A língua escrita, aos poucos, ganha importância. Atualmente, no mundo de papel, vale mais um documento com fotografia do que a própria pessoa afirmando seu nome. Ainda assim, há ainda contextos em que a língua falada mantém seu estatuto de verdadeira e efetiva, como em situações ritualizadas (casamento, confissão, juramento, promessa etc).

Podemos, então, afirmar que língua escrita e língua falada são duas modalidades da língua que, por atenderem a contextos comunicativos distintos, demonstram comportamentos também distintos. Enquanto a língua falada precisa de redundâncias, repetições, deixando explícitas on line (durante a própria fala) as correções, e de contar com a inferência do interlocutor para completar (e entender) algumas informações que foram suprimidas da cadeia sintática, a língua escrita é mais enxuta, mais objetiva, não revela as correções previamente feitas e exige que todas as informações sejam explicitadas, já que o contexto de produção é ausente. A despeito dessas diferenças, uma afeta a outra continuamente pela dinâmica comunicativa estabelecida entre as pessoas.

Duas são as verdades que devem ser lembradas aqui: 1- não se pode falar em unificação da língua (fala e escrita), mas pode-se falar em unificação ortográfica (língua escrita); 2- não existe mudança linguística que se cumpra sem o envolvimento do povo, que é a engrenagem necessária da dinâmica linguística.

Maria Célia Lima-Hernandes é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e líder do grupo de pesquisa “Mudança gramatical no português – gramaticalização”.

Para saber mais sobre o tema:

Lima-Hernandes, M.C.; Marçalo, M.J.; Micheletti, G.; Martin, V.L.R. (orgs). A língua portuguesa no mundo: I Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa (SIMELP). São Paulo: FFLCH-USP, 2008.