“Nenhum
país pode aspirar a ser desenvolvido e independente sem um forte sistema de
educação superior. Num mundo em que o conhecimento sobrepuja os recursos
materiais como fator de desenvolvimento humano, a importância da educação
superior e de suas instituições é cada vez maior. Para que estas possam
desempenhar sua missão educacional, institucional e social, o apoio público é
decisivo”. Esta afirmação, que continua extremamente atual e, da qual, aliás, é
muito difícil discordar, faz parte do texto que acompanha as metas que haviam
sido propostas para a educação superior no Plano Nacional de Educação (PNE)
para o decênio 2001–2010.
Naquele
PNE estavam colocados objetivos que se repetem no plano atual, voltado para o
período de 2011 a
2020, como o aumento da taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e
a taxa líquida para 33% da população na faixa etária de 18 a 24 anos (meta 12); a
elevação do número de mestres e doutores atuando no corpo docente das
instituições de ensino superior (meta 13) e o aumento das matrículas na
pós-graduação stricto sensu (meta 14),
desta vez contando com a possibilidade de fomento ao mestrado pelo
Financiamento Estudantil (Fies) – o que demonstra que o setor privado continua
sendo parte vital no plano do governo para atingir as metas estabelecidas no
novo plano, assim como o era também no antigo. O que foi cumprido do PNE
anterior em relação à educação superior no Brasil e o que se repete nesta nova
versão do documento?
Otaviano
Helene, professor associado da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), autor de
inúmeros textos sobre política educacional publicados em vários jornais
brasileiros e reunidos em um blog, também de sua autoria, afirma categoricamente que as
metas do antigo PNE não só não foram cumpridas como nos afastamos ainda mais de
algumas delas. “Em relação a várias metas, a situação da educação
no país piorou nos últimos dez anos. No que se refere à educação superior, o
que aumentou foi a privatização. O único item do Plano Nacional de Educação
sancionado em 2001 que foi cumprido realmente foi a expansão da pós-graduação.
Mas a meta da expansão da pós-graduação foi cumprida não por causa do PNE. Em
nenhum momento o CNPq, a Capes e a Fapesp, nem a Faperj, nem a Fapemig, para
citar algumas agências de fomento, falaram que precisavam fazer tal ação por
causa do PNE. Essa meta foi cumprida porque ia ser mesmo, pelas decisões das
agências de fomento, sem correlação com o PNE. Fazia parte de outro programa,
estava no departamento de ciência e tecnologia, de formação de quadros para as
universidades” releva Helene.
O professor da USP também chama a
atenção para uma planilha produzida pelo
Ministério da Educação (MEC), intitulada “Previsão do investimento necessário
para cumprir o PNE além do investimento atual de 5% do PIB” e disponível na internet.
Nesse documento, há detalhamentos de como o MEC pretende atingir as metas que
propôs. Em relação à meta 12, que objetiva a elevação da taxa bruta e líquida
de matrícula no nível superior, é possível verificar que o governo propõe um
aumento de cinco milhões de matrículas; entretanto, somente 1,4 milhão será no
setor público, sendo metade no ensino a distância. A meta prevê, portanto,
somente 700 mil novas matrículas no ensino superior presencial, o qual conta
atualmente com seis milhões de matrículas ao ano.
Helene acredita que está se criando
um problema já que, na verdade, planeja-se que a meta seja atingida com uma
pequena participação do setor público no que diz respeito ao ensino presencial.
“Atualmente apenas 25% dos estudantes de ensino superior estão em instituições
públicas presenciais. Segundo a planilha do MEC, apenas 13% das novas vagas vão
corresponder ao ensino público presencial, ou seja, nós estamos andando na
direção errada, porque estamos reduzindo a participação no ensino público
presencial e abrindo um espaço demasiadamente grande para o ensino a distância
e para o ensino privado. São dois passos na direção errada!”, avalia.
O Prouni aumenta a taxa de matrícula?
O
Programa Universidade para Todos (Prouni), criado com grande alarde pelo
governo federal em 2004, também com o objetivo de aumentar o número de
matrículas nas Instituições de Ensino Superior (IES) na faixa etária de 18 a 24 anos e, portanto,
auxiliar no cumprimento da meta recolocada pelo MEC no atual PNE, não tem se
mostrado efetivo e apresenta sérias falhas estruturais. Para Célia Regina
Gonçalves Marinelli, doutora em educação pela Universidade Metodista de
Piracicaba (Unimep) e autora da tese Programa
Universidade para Todos – aspectos da cidadania fragmentada, não se pode
negar que o programa tem forte apelo popular e é um “grande negócio” para as
IES do setor privado, devido à contrapartida das isenções fiscais. “Mas em
termos de justiça social, em relação ao seu propósito de promover inclusão
social pela educação superior de qualidade, não se pode afirmar o mesmo. Considerando
a taxa de matrícula líquida proporcionada pelo programa, podemos considerar que
seu impacto tem sido pouco significativo para o cumprimento da meta do PNE”,
afirma.
Marinelli
diz também que o número de vagas ociosas na graduação, principalmente nas IES
privadas, não para de crescer e que isso aponta as limitações do programa como
política pública. “Ou mesmo sua insuficiência diante do quadro geral das
desigualdades sociais existentes no país”, acrescenta. Além de não auxiliar o
governo no cumprimento das metas propostas, o programa é vulnerável a fraudes e
desvios no processo de seleção dos beneficiários. “São as próprias IES que
acabam escolhendo os beneficiários, os cursos e a quantidade de bolsas a serem
disponibilizadas, mesmo sendo parte diretamente interessada nas contrapartidas
oferecidas pelo governo, o que coloca em xeque a isenção e a transparência que
deve haver no trato com recursos públicos”.
Otaviano
Helene, da USP, acrescenta que a grande maioria das instituições privadas
oferece cursos fracos ou mesmo ruins e que não estão concentrados nas áreas em
que o Brasil mais precisa se desenvolver, mas sim naquelas de maior interesse
econômico para a instituição. “Nenhuma instituição privada dessas
lucrativas vai abrir um curso de medicina no interior do Maranhão ou no
interior do Piauí, por mais que faltem médicos nessas regiões. E assim por
diante: não vai abrir um curso de química complexo, um curso de física complexo,
pois são cursos caros e pouco atraentes para a população. Elas abrem cursos que
são vendáveis, nos locais onde têm clientela. O aluno que está numa IES privada
através do Prouni, fazendo um curso fraco ou mesmo ruim, estaria muito melhor
atendido – ele e o país todo – se estivesse fazendo um curso de qualidade, numa
instituição pública, em área relevante para as necessidades nacionais”,
defende.
O Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior
Elevar a qualidade da educação
superior no país pela ampliação da atuação de mestres e doutores nas instituições
de ensino para, no mínimo, 75% do corpo docente em efetivo exercício, sendo, do
total, 35% doutores: esse é o objetivo explicitado na meta treze do plano. Logo
em seguida, são enumeradas no texto as estratégias que devem ser adotadas pelo
governo para que essa meta seja cumprida. Uma delas aponta a “necessidade de
aperfeiçoamento” no Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes)
para fortalecer as ações de avaliação, regulação e supervisão das IES para que
seus cursos obtenham o aval de qualidade do governo e possam continuar em funcionamento. Segundo
os especialistas entrevistados pela ComCiência,
o Sinaes precisa mesmo de inúmeros aperfeiçoamentos urgentes, ou até mesmo de
uma completa reestruturação.
José Carlos Rothen, professor
do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e pesquisador
na área de história e avaliação da educação superior, lembra que o termo Sinaes
faz referência a três sistemas distintos: o original, o da legislação e da fase
inicial de sua implantação e o dos índices, criado a partir de 2007 e em vigor
atualmente. “No Sinaes dos índices, o todo é compreendido como a soma das partes.
Com certeza, este não tem eficácia na avaliação da educação superior. O seu
resultado, por um lado, resolve de forma simplificada o problema do MEC em
regular o sistema sem muitas dificuldades; por outro, é um instrumento de
ranqueamento que serve apenas para a propaganda das IES”.
Rothen afirma que a solução seria
voltar às discussões de 2004 e 2005, relativas ao primeiro Sinaes, aperfeiçoar
a proposta e, finalmente, implantá-la. “Contando a partir do primeiro ano do
Provão, já perdemos 16 anos de possibilidade de implantar um sistema efetivo de
avaliação. A urgência de mudanças para a educação não nos permite perder tempo
com medição da qualidade da educação por índices. Reitero, temos que voltar às
discussões anteriores para implantar avaliações que realmente ofereçam um
diagnóstico dos problemas e das virtudes para sabermos o que é necessário
fazer”. Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da USP e
especialista em políticas educacionais, acrescenta: “O atual Sinaes não cumpre
as funções de induzir melhoria ou de regulação e o setor privado o encara como
o mínimo a ser feito para permanecer na legalidade”.
Também em relação à meta 13,
Otaviano Helene concorda que seja necessário aumentar o número de mestres e
doutores – principalmente esses últimos – dando aula no ensino superior, mas
que para isso seria necessário uma mudança na legislação atual. “Atualmente a
legislação tolera que uma universidade sequer tenha um doutor em seu corpo
docente. A Lei de Diretrizes e Base (LDB), de 1996, exige que se tenha ao menos
um terço do corpo docente com grau de mestre ou doutor. A palavra ‘ou’
diz claramente que pode ser só mestre. No Brasil, por mais absurdo que possa
ser, é possível uma universidade sem doutor estar de acordo com a LDB. Então, quando
se pretende aumentar o número de doutores no corpo docente, é preciso haver uma
legislação que exija que instituições privadas tenham doutores no seu corpo
docente”.
Já em relação à meta 14, a qual objetiva o aumento
do número de matrículas na pós-graduação stricto
sensu, Helene chama a atenção para o fato de que o PNE não deixa claro como
esse aumento se daria proporcionalmente no setor público e no setor privado.
“Além disso, a meta 14 prevê o Financiamento Estudantil (Fies) para a
realização do mestrado, ou seja, está nas entrelinhas que o governo pretende
beneficiar o setor privado com mais recursos públicos e isso é inaceitável,
pois poucas instituições privadas têm compromisso com a qualidade do ensino e
da pesquisa”.
Marinelli, da Unimep, lembra, ainda, que os desafios colocados para a educação superior passam pela
educação básica. “Não há como ter uma educação superior de qualidade se as
etapas de escolarização precedentes não cumprem seu papel. Não há esquema de
nivelamento que dê conta. Não há expansão em número de vagas e de IES que dê
jeito. A educação superior, por si só, não é capaz de resolver os problemas de
empregabilidade e geração de ciência e tecnologia de que o Brasil necessita”,
conclui.
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