A etnomusicologia das terras baixas da América do Sul inclui algumas das descrições mais antigas do mundo sobre a “música primitiva”. Entre elas, está a do viajante francês Jean de Léry, mundialmente célebre e datada de 1578, sobre canções dos tupinambá do Rio de Janeiro. A referida etnomusicologia não conheceu, porém, desenvolvimento moderno comparável, mesmo que de longe, àquele que teve como campos de estudos a África subsaariana, a América do Norte e o sudeste asiático. Durante os últimos vinte anos, porém, detentora de forte marca internacional, pois produzida em vários países, ela tem passado por um crescimento extremamente significativo, com forte perspectiva de continuidade, especialmente no Brasil.
Entre nós, ela tem sido produzida tipicamente em núcleos de pesquisa de programas de pós-graduação em antropologia, o da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desempenhando papel pioneiro e de liderança nos planos nacional e internacional. Trata-se, o Musa, de um dos grupos mais produtivos do mundo na área acadêmica em estudo, tendo como tema geral de investigação a antropologia das artes na América Latina e no Caribe, compreendendo as sociedades nacionais da região e as indígenas das terras baixas da América do Sul. O Musa é formado por estudantes de graduação e pós-graduação e por professores e pesquisadores predominantemente da UFSC, mas também da Universidade do Estado de Santa Catarina e da Universidade Federal do Amazonas. Note-se que dez dos trinta membros do grupo dedicam-se à pesquisa na área em análise. Embora a cobertura etnográfica disponível sobre o assunto ainda seja pequena, ela já permite o estabelecimento de um perfil geral da música na região, fundamental para a projeção de pesquisas futuras. A seguir, apresento algumas das características dessa música.
A sua primeira característica refere-se ao próprio papel que ela desempenha na cadeia intersemiótica do ritual na região, apontando para o sentido geral de tradução. Trata-se de um papel estratégico, originalmente levantado em áreas bem diferentes e afastadas umas das outras das terras baixas, por antropólogos trabalhando de maneira independente: na Amazônia peruana, entre os Amuesha, falantes de uma língua Aruaque, por Richard Smith, em 1977; e no Alto Xingu, por mim mesmo, em 1976, entre os xinguanos Tupi-Guarani Kamayurá. Smith caracteriza o papel da música no ritual Amuesha como o de centro integrador dos discursos, que costura a unidade de expressão a partir da diversidade existente entre os referidos discursos. Segundo ele, a música é o lugar centrípeto para onde convergem os discursos visuais, olfativos e de outros canais que compõem os ritos. A partir daí, esse lugar passa a ser centrífugo, recompondo a diversidade discursiva ritual.
De forma similar, o caso kamayurá estabelece a música como um sistema pivot que intermedeia, no rito, os universos das artes verbais (mito, poesia) em relação àqueles das expressões plástico-visuais (grafismo, pintura corporal e outras) e coreológicas (dança, teatro). Integração de um lado, intermediação de outro, tais são os sentidos que, a partir dessas fontes dos 1970, tipificam o papel da música na cadeia intersemiótica do ritual na região.
Os estudos de Ellen Basso publicados nos anos 1980, sobre os xinguanos de língua Caribe, Kalapálo, são compatíveis com os dois acima. De acordo com os mesmos, a natureza da performance ritual entre esses índios é musical, daí o importante conceito de ritual musical, com a música constituindo a chave da performance, desencadeando-a. Também dos anos 1980, as investigações de Angelika Gebhart-Sayer, sobre os Shipibo-Conibo, da selva peruana e falantes de uma língua Pano, levam adiante todos esses nexos. De acordo com essas pesquisas, entre a música e os desenhos visuais a relação é de tradução, no ritual xamânico desse povo, sendo as canções a tradução sonora de motivos pictóricos. Um sentido próximo a esse, segundo David Guss, existe entre os Caribe Yekuana da Venezuela, envolvendo a confecção de cestaria e o canto.
A segunda característica da música na região ora em estudo é a sequencialidade. Ela marca a organização musical dos rituais no plano intercancional, constituído pela articulação entre as respectivas canções (peças instrumentais ou voco-instrumentais) componentes. Recordo que Ellen Basso identifica os ritos Kalapálo como musicais por entender que é através da performance musical que a comunicação é neles fabricada. No contexto dessa identificação, a sequencialidade explicita-se pelo fato de os repertórios musicais da região organizarem-se em sequências (ou sequências de sequências) de cânticos (sejam eles canções ou vinhetas) e/ou de peças instrumentais ou voco-instrumentais. Essa sequencialidade no plano intercancional – cujo tipo de organização evoca a da suíte ocidental – foi primeiramente descrita por mim entre os Kamayurá, no final dos 1980. Posteriormente, ela foi estudada em outros grupos da região, como os Aruaque Kulina do Acre, os Tucano Yepamasa do Alto Rio Negro, os Aruaque xinguanos Wauja, os Guarani do sul e do centro-oeste brasileiros, os Caribe Arara do Pará, os Kalankó de Alagoas e outros. É minha hipótese de trabalho que a sequencialidade é um dos rationales da organização dos rituais da região no plano intercancional.
No caso kamayurá por mim pesquisado, a sequencialidade assume uma elaboração extremamente complexa e sofisticada, seguindo um padrão que chamo de estrutura sequencial, de grande interesse do ponto de vista cognitivo e que sugiro ser muito espalhado nas terras baixas, estando na base de seus rituais de longa duração. Note-se que nesses ritos os preliminares podem estar a anos de distância de sua execução propriamente dita. A estrutura sequencial é simultaneamente um relato (algo como uma “história”) e um programa ( “estrutura”) de composição de sequências (de cânticos canções e vinhetas e de sequências de cânticos), administrando os processos de repetição e diferenciação, tendo os cânticos como unidades de processamento. Daí resultam três tipos de sucessões: progressões, regressões e estagnações, que constituem, respectivamente, os tempos “futuro”, “passado” e “presente”. No primeiro caso, a seta do tempo dirige-se para frente, no segundo ela indo para trás. No último caso, a seta é cancelada, o que não significa que o tempo, ele mesmo, sofra igual manipulação.
A terceira marca da música na região – marca que chamo de estrutura núcleo-periferia – caracteriza os tipos de relação existente entre os indivíduos e grupos de executantes formadores dos conjuntos musical-coreográficos. Esta característica não é puramente musical, sendo ligada à dança, em última instância. Partindo dos meus estudos sobre a música e a dança xinguanas, pode-se dizer que a relação entre os indivíduos e grupos de executantes constituintes dos conjuntos musical-coreográficos na região é no mínimo complexa, não se reduzindo, por exemplo, aos dois termos sucessivos e alternantes da forma antifonal (solo e coro), tão comum em várias partes do planeta, como a África subsaariana e o Ocidente.
A estrutura núcleo-periferia constitui-se da relação – em sucessão e/ou simultaneidade – entre o núcleo e a periferia. O primeiro é ocupado por um ou uma solista e seus ajudantes e aprendizes, o segundo pelos demais executantes (masculinos e/ou femininos). No núcleo – integrado por adultos maduros – o mestre (ou a mestra) entra sozinho com o começo de cada canção, vinheta, peça instrumental ou voco-instrumental, ao final do que é seguido pelos ajudantes e aprendizes, que o repetem em heterofonia. O núcleo canta tipicamente canções, intermediadas por vinhetas, que são configurações músico-linguísticas geralmente onomatopaicas com alto grau de estabilidade. A periferia, por outro lado – integrada por adultos jovens, adolescentes e crianças –, emite onomatopeias com maior ou menor grau de estabilidade e/ou as improvisa, constituindo-se em um amplo tecido polifônico. O núcleo e a periferia são irredutíveis entre si, sua relação evocando aquela vigente entre os gêmeos nas sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul. Trata-se, a relação, de uma dualidade assimétrica, explicitando-se pelo fato de que ambos – núcleo e periferia – dramatizam à sua maneira os mitos que estão na base dos ritos. Essa característica da música na região é também muito espalhada, espraiando-se do noroeste e nordeste amazônicos até o sul das terras baixas; do nordeste brasileiro até o sudeste e o sudoeste da Amazônia, passando por muitas sub-regiões do interior amazônico.
A quarta característica aponta o processo predominante na região de composição de peças musicais: a variação. Nesse, o material temático, exposto no começo das peças, é elaborado através de procedimentos como os de repetição, aumentação, diminuição, transposição, retrogradação e outros, as transformações resultantes guardando as características essenciais daquele material. Essa característica é muito disseminada na área. Os estudos detalhados, meus entre os Kamayurá, e de Acácio Camargo Piedade e Maria Ignez Cruz Mello entre os Wauja, lançam luz sobre como o processo de variação está na base da composição musical em nível intracancional entre os índios xinguanos. Por outro lado, consolidando análises suas anteriores, Maria Ignez Cruz Mello demonstra, em 2005, como parte dos repertórios masculino e feminino Wauja, tipicamente os das chamadas “flautas sagradas” e os do ritual feminino do Amurikumã, são variantes entre si, tudo se passando entre esses índios como se as mulheres cantassem transposições vocais das músicas das flautas em foco; os homens, por outro lado, executando à flauta as músicas femininas vocais. O processo de variação atravessa aqui os gêneros musicais e “sexuais”.
A situação atual das pesquisas sobre a música nas terras baixas da América do Sul – tema típico e não especial da etnologia regional – é extremamente promissora, como se pôde ver. Embora a cobertura etnográfica disponível seja ainda pequena, mas de forma alguma irrelevante, ela torna possível, conforme visto, o levantamento de características da música na região, passo básico para a projeção de pesquisas futuras. Tal o momento que vive essa área de estudos, sendo assim de grande importância que os acadêmicos e suas instituições a tomem como tão importante como as demais do campo disciplinar, neste sentido direcionando para ela os recursos necessários.
Rafael José de Menezes Bastos é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe, o MUSA (veja www.musa.ufsc.br ). Pesquisador do CNPq. Contatos: rafael@cfh.ufsc.br ou rafael.bastos@pesquisador.cnpq.br.
|