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Artigo
Primatas como modelo experimental para vigilância em saúde, pesquisa e saúde pública
Por Paulo Castro
10/12/2007
A utilização da experimentação animal é essencial para o progresso da ciência, pois inúmeras são as lacunas de conhecimento básico e de produtos tecnológicos que tratam o conjunto de questões de saúde humana e veterinária. Apesar do país já possuir e utilizar-se de diversas abordagens alternativas, como o uso de cultura de células, ou o uso de simulações computacionais, o setor de pesquisa biomédica e biológica ainda não pode prescindir dos procedimentos que utilizam animais de laboratório, tais como testes de cinética ou de toxicidade de novos medicamentos ou produtos imunobiológicos. Há normas internacionais que, inclusive, exigem o teste de vacinas em animais experimentais para garantir qualidade para o uso humano. Pesquisas e estudos realizados com o uso de animais são de extrema importância para a saúde, o desenvolvimento do conhecimento e o bem da sociedade.

Dentre os animais de experimentação, os primatas ocupam um lugar de destaque em relação ao homem. Seu parentesco evolutivo com o ser humano é evidente, tanto pela semelhança anatômica e comportamental como por semelhanças bioquímicas específicas. Devido a essas peculiaridades os primatas servem de sujeitos para estudos comparativos, particularmente, em relação às enfermidades que acometem o homem que, devido à necessidade de se obter conhecimentos mais amplos e para evitar o elevado risco dos experimentos e outros fatores, não podem ser levados a cabo nos seres humanos. Daí a importância dos primatas nas pesquisas anatômicas, comportamentais e, em particular, nas pesquisas biomédicas visando à saúde pública.

No Brasil, o uso nas pesquisas biomédicas de primatas teve início na década de 1920 com os estudos do vírus da febre amarela, juntamente com o Panamá. Desde a década de 1950, vem crescendo a utilização de primatas nas pesquisas biomédicas, desempenhando uma função essencial e estratégica em vários aspectos da investigação biomédica, como as investigações das hepatites infecciosas, do câncer, da leishmaniose e de outras doenças tropicais. Até hoje os primatas de vida livre são utilizados nas investigações e monitoramento das epizootias (doença que acomete grande número de animais da mesma espécie ou de espécies diferentes), em especial da febre amarela.

A relação dos seres humanos com as demais espécies animais é longa, através da história, e envolve uma relação predatória e de simbiose.

Os humanos exploram as outras espécies como fonte de alimento e como força de tração para o trabalho desde os primórdios de sua evolução. Também se valeram de outras espécies para proteção de sua saúde. Edward Jenner testou a sua hipótese da vacinação a partir de seus conhecimentos da doença no gado leiteiro, Louis Pasteur testou a sua teoria da imunização da raiva a partir de macerado do cérebro de um cão raivoso. Robert Kock estabeleceu, de forma cabal e inequívoca, pela primeira vez na história, a relação causal entre um agente microbiológico e uma doença, estudando o carbúnculo que afetava o gado.

Contudo, foi Claude Bernard, por volta de 1865, que em seus estudos de fisiologia lançou os princípios do uso de animais como modelo de estudo e transposição para a fisiologia humana. Seu trabalho "Introdução ao estudo da medicina experimental" procurou estabelecer as regras e os princípios para o estudo experimental da medicina. Ele provocou situações físicas e químicas que resultavam em alterações nos animais semelhantes à de doenças em humanos. Ele enfatizava a aplicabilidade da experimentação animal aos humanos.

O modelo animal é usado virtualmente em todos os campos da pesquisa biológica, nos dias de hoje. A relação entre os humanos e os animais de outras espécies vem ganhando contornos mais definidos e a exploração de outras espécies tem regras e uma ética estabelecida. A indução dos resultados de experimentos em animais para a espécie humana tem critérios claros e objetivos a serem preenchidos e os humanos tomaram consciência de que fazem parte de um conjunto interligado, em que os elos se entrelaçam e sua sobrevivência depende da sobrevivência de todos.

Na visão antropocêntrica de organização de uma escala zoológica, o Homo sapiens (homem) reservou para si o topo da evolução das espécies e criou um erro lingüístico e científico com a distinção entre animais e humanos, como se ele não fosse também um animal. Surge assim a expressão "modelo animal de doença" com a intenção de designar "modelos em animais de doenças da espécie humana". Assim, o conceito de doença animal é aquele cujos mecanismos patológicos são suficientemente similares àqueles de uma doença humana, servindo a doença animal como modelo. A doença animal pode ser tanto induzida, como de ocorrência natural.

No reino animal, os primatas ocupam lugar de uma importância muito especial em relação ao homem. Seu parentesco evolutivo com o ser humano os torna modelos eficazes para estudos comparativos, particularmente pertinentes para as enfermidades do homem que implicam em elevado risco de experimentação.

Daí a importância dos primatas nas pesquisas anatômicas, comportamentais e, em particular, nas pesquisas biomédicas.

Os primatas estão divididos em dois grandes grupos, sejam primatas do Velho Mundo (Ásia e África) e pertencentes ao Novo Mundo (América).

Os primatas do Velho Mundo pertencem à infra-ordem Catarhini (kata = inferior; rhini = nariz) e distinguem-se basicamente do grupo americano pela posição das aberturas nasais, voltadas para baixo, e pela presença de um septo nasal delgado. Possuem 32 dentes; unhas achatadas (nunca em garras); algumas espécies apresentam calosidades ciáticas, de colorido vivo; a cauda, quando presente, não é preênsil.

Os Platyrrhini (platy = largo; rhini = nariz) vivem exclusivamente no continente americano. Distinguem-se das espécies do Velho Mundo por terem o septo nasal largo, o polegar não completamente oponível, a ausência de calos ciáticos e de bolsas jugais, e a dentição, constituída por 32 ou 36 dentes, com 6 pré-molares superiores e 6 inferiores. No conjunto, são de porte menor. Um grupo de espécies possui a cauda preênsil. Exclusivamente arborícolas, não existem espécies adaptadas à vida terrícola. Em geral, habitam terrenos florestados e poucos descem ao solo em busca de água ou alimento, que encontram com facilidade no alto das árvores.

Nos últimos cinqüenta anos tem aumentado, consideravelmente, o uso de primatas neotropicais em investigações biomédicas, alcançando hoje função essencial e estratégica, especialmente nas áreas da etologia, anatomia e fisiologia, além dos estudos nas áreas das ciências da saúde. Mesmo assim, ainda é pouco o conhecimento sobre as potencialidades das espécies de primatas neotropicais como modelos experimentais das pesquisas biomédicas e muito ainda há de se estudar para se ampliar o conhecimento básico da biologia e fisiologia da maioria das espécies.

Os primatas do Novo Mundo ou neotropicais, por sua vez estão divididos em 5 famílias, com 18 gêneros, distribuídos em 110 espécies, totalizando 205 táxons.

O Brasil é um país privilegiado em relação à fauna primatológica, possuindo a maior diversidade de espécies do mundo, atualmente sendo aceitas, de acordo com Rylands et al. (2000), a ocorrência de representantes de todas as 5 famílias de primatas neotropicais, 16 dos 17 gêneros, sendo 2 gêneros, Brachyteles (muriqui) & Leontopithecus (micos-leões) de ocorrência exclusiva no Brasil, totalizando 91 espécies, muitas endêmicas.


Distribuição das espécies de primatas do Novo Mundo por gênero e táxons.

Família Callitrichidae

Espécies

Táxons

Callimico

1

1

Callithrix

6

6

Cebuella

1

2

Leontopithecus

4

4

Mico

14

14

Saguinus

15

33

Sub-total

41

60

Família Cebidae



Cebus

7

33

Saimiri

5

12

Sub-total

12

45

Família Aotidae



Aotus

8

13

Família Pitheciidae



Cacajao

2

6

Callicebus

19

23

Chiropotes

2

4

Pithecia

5

9

Sub-total

28

42

Família Atelidae



Alouatta

8

21

Ateles

6

16

Brachyteles

2

2

Lagothrix

4

5

Oreonax

1

1

Sub-total

21

45

Total - Neotropicais

110

205

Fonte: Raylands et al, 2002.

A utilização das espécies do Novo Mundo, em relação às espécies anteriormente utilizadas de primatas do Velho Mundo, se deve, inicialmente, pelo baixo custo de manutenção em cativeiro e pelo bom índice de reprodução, com espécies como as dos gêneros Callithrix, Mico e Saguinus, que chegam a ter até quatro filhotes por ano. A maioria das espécies é de pequeno e médio porte, requerendo pequenos espaços de manutenção e um custo inferior, se comparados às espécies de grande porte de primatas do Velho Mundo.

A grande demanda desses primatas para as pesquisas biomédicas, levou as instituições de pesquisa a investirem na sua criação em cativeiro, objetivando a reprodução e produção de animais com origem conhecida e sob condições controladas, exigências mínimas para serem utilizadas em pesquisas biomédicas com segurança.

O Centro Nacional de Primatas (Cenp) está localizado no quilômetro 7 da rodovia BR-316, em Ananindeua, município do estado do Pará que compõe a grande Belém. É uma instituição federal subordinada ao Ministério da Saúde, fazendo parte da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS).

A instituição conta atualmente em seu plantel com primatas pertencentes à região amazônica, Mata Atlântica e uma única espécie exótica do Velho Mundo.

A principal missão institucional está centrada em criar e reproduzir primatas em condições controladas, visando o apoio às investigações biomédicas e demais pesquisas nas áreas das ciências médicas e biológicas, apoiando o desenvolvimento da pesquisa no Brasil e no exterior. Secundariamente, o Cenp assegura a conservação de espécies, ameaçadas ou não de extinção, com apoio a programas de conservação das espécies neotropicais de primatas brasileiros.

Dentre as espécies criadas no Cenp, os principais estudos relacionados com as ciências da saúde se voltam às doenças tropicais, como a malária, a leishmaniose, arboviroses, doenças como o câncer, hepatopatias, filarioses, estudos de pesquisa básica nas áreas de neurociências, parasitologia, bacteriologia, odontologia, reprodução e comportamento.

O grande desafio na conservação de primatas está na velocidade com que os ambientes florestais estão sendo destruídos e as dificuldades em se efetivar pesquisas básicas em vida silvestre. Muitas vezes, não se tem tempo de conhecer ou aprofundar conhecimentos sobre a biologia de algumas espécies e a ecologia dos ambientes antes que tenham sido eliminados.

As pesquisas de campo devem ser constantemente ampliadas e estimuladas. Do mesmo modo, os trabalhos em cativeiro tem um papel importante na formulação do conhecimento, contribuindo para a conservação da fauna primatológica brasileira.

Paulo Castro é médico veterinário e atua junto ao Centro Nacional de Primatas.


Referência bibliográfica

RYLANDS, A. B., Schneider, H., Langguth, A. & Mittermeier, R. A. "An assessment of the diversity of new world primates". Neotropical Primates, v. 8, n. 2, p. 61-93, 2000.