Quem viu o filme Casa da Rússia,
com Sean Connery e Michele Pfeiffer? Numa certa altura, entusiasmado, o
editor inglês que é representado por Sean Connery diz: “Hoje, para
alguém ser uma pessoa decente, precisa ser herói”. É uma frase
fortíssima, que muda toda a história que vai acontecer depois – e que
por isso mesmo eu não vou contar. Mas quer isso dizer que, hoje, para
ser ética, uma pessoa tem que ser heróica? Ficou tão difícil a ética,
assim?
É o que ouvimos quase todo dia. Os brasileiros dão muita importância à
ética. Dividimos o mundo em gente decente e indecente. Quando algo dá
errado, por exemplo, uma política pública, automaticamente se pensa em
roubalheira, não em incompetência.
Mesmo os bandidos falam em ética. Na cadeia, punem sem piedade quem
abusou sexualmente de crianças ou de mulheres. É comum até um criminoso
falar na sua “ética”, nos seus valores.
Também, quando tratamos um serviço, é freqüente a pessoa contratada
explicar por que ela faz tão bem o seu trabalho e, sobretudo, por que
não pratica certas desonestidades que seus colegas (jura ela!) fazem.
Acredite, claro, quem quiser. Mas faz parte do nosso discurso social,
da nossa fala com o outro, afirmar: eu sou ético, num mundo em que o
resto não o é. Eu sou do bem. O mundo está de pernas para o ar, tudo
está errado, mas eu não.
Aqui temos então duas grandes idéias fortes da brasilidade. A primeira
é que as coisas em geral não andam bem. A economia nos aperta, a
sociedade está complicada, até a amizade e o amor estão em crise.
Percebemos bem essa devastação e ela nos incomoda. Mas a segunda idéia
é que eu, pessoalmente, ajo bem. Sou honesto.
Serei herói? Aqui é que estão as coisas. Boa parte do auto-elogio (eu
sou o único decente num mundo de bandidos) é mentira. Basta ver como
termina o serviço do profissional que gabou sua honestidade: tão ruim
quanto o dos outros, ou mesmo pior. Então, parece que o personagem da
Casa da Rússia tem razão: a ética virou artigo raro. Ser ético é
mostrar-se capaz de heroísmo.
Vale a pena então irmos, deste filme recente, baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígona, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.
Antígona é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e
ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda
enterrar um dos sobrinhos com todas as honras – e deixar o corpo do
outro aos abutres. Antígona não aceita isso. Participa do enterro
solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro,
o proscrito.
O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra
ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a
sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir
desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas – sob uma condição só, de
que ela negue o seu ato. Antígona se recusa e é executada.
Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a
ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou
não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A
lei está com ele. Neste caso, o que fazer?
Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava
na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma
farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se
tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia
fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para
salvar o rapaz da morte. O que fazer?
Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para
que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas,
quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento
mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão
foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte:
- Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem
humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos
que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever
todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em
solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que
pode até ser ilegal.
- Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes? continuou ele. Ou
deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos
presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do
outro?
É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia.
É este o heroísmo que Antígona praticou. E ele exige que, às vezes,
estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras,
quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor
mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás,
costuma haver polêmica sobre o chamado “furto por necessidade”, quando
um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.
Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou em um artigo,
o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de
propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o
direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto
de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.
Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard
Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse
um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não
vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os
fundamentos da própria sociedade.
Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os
atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética
e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige
romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de
ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.
Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo
que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da
lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a
cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais
altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser
que a pessoa seja punida, mesmo.
E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes
à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar
as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é,
na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O
que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de
enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.
Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói.
O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos
super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós
enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto –
desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso
lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos
heroísmos pessoais que depende a dignidade humana.
Renato Janine Ribeiro é professor
titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. É autor de "A sociedade
contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil" (2000,
Prêmio Jabuti de 2001) e "A universidade e a vida atual - Fellini
não via filmes" (2003).
Este artigo foi publicado anteriormente na América Online (AOL)
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