10/12/2005
A leitura da obra de Philippe
Ariès nos permite ter contato com uma produção
historiográfica notadamente datada. A primeira
edição brasileira é a tradução de
uma versão francesa de 1973, um resumo do estudo original
publicado em 1960. Esta versão de 1973 ganhou também o
acréscimo de um prefácio do autor, no qual ele traz um
balanço das repercussões e críticas que seu
trabalho despertou.
A década
de 1960 foi um período de consolidação do chamado
movimento da "História Nova", corrente que é apontada por
alguns como responsável por uma "revolução
francesa da historiografia", devido ao fato de propor novos objetos,
novos métodos e novas linguagens na escrita da história.
Entre essas inovações, está a abertura para o
estudo do cotidiano dos "homens comuns" e de temas até
então reservados à antropologia, como a
alimentação, corpo, o mito, a morte etc. A historiografia
ganha obras que trabalham com uma multiplicidade de documentos (fotos,
diários, músicas etc.) e usam a linguagem narrativa.
Composta essencialmente por historiadores franceses, seus
princípios estão enraizados no trabalho de historiadores
como Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, responsáveis
pela desconstrução da história positivista no
século XIX. Trata-se de um percurso paralelo ao trilhado pelas
inovações na tradição
historiográfica marxista, cujo maior nome talvez seja o do
historiador inglês Edward Thompson.
Aproximadamente
no final da década de 60, a "história nova" ganha uma
pluralidade de tendências, entre as quais está aquela que
se denomina história das mentalidades, voltada para as
sensibilidades e para elucidar diferentes visões de mundo e
conceituações presentes em diferentes períodos
históricos, na qual Philippe Ariès situa sua obra. No
prefácio da edição de 1973, ele aponta alguns dos
princípios que norteiam sua interpretação: "A
história das mentalidades é sempre, quer o admita ou
não, uma história comparativa e regressiva. Partimos
necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje,
como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado - com a
condição de, a seguir, considerar o modelo novo,
construído com o auxílio de dados do passado, como uma
segunda origem, e descer novamente até o presente, modificando a
imagem ingênua que tínhamos no início" (p.26)
A partir desses
pressupostos, o estudo de Ariès possui dois fios condutores: o
primeiro é a constatação de que a ausência
do sentido de “infância”, tal como um estágio
específico do desenvolvimento do ser humano, até o fim da
Idade Média, abre as portas para uma interpretação
das chamadas “sociedades tradicionais” ocidentais. O
segundo é que este mesmo processo de definição da
infância como um período distinto da vida adulta
também abre as portas para uma análise do novo lugar
assumido pela criança e pela família nas sociedades
modernas. Sua obra foi precursora, portanto, de um novo campo que ficou
conhecido como “história da infância” e gerou
diversos trabalhos subseqüentes.
A
constituição desse novo conceito de infância
está na transição dos séculos XVII para o
XVIII, quando ela passa ser definida como um período de
ingenuidade e fragilidade do ser humano, que deve receber todos os
incentivos possíveis para sua felicidade. O início do
processo de mudança, por sua vez, nos fins da Idade
Média, tem como marca o ato de mimar e paparicar as
crianças, vistas como meio de entretenimento dos adultos
(especialmente da elite), hábito criticado por Montaigne
(1533-1592) e outros escritores da época. A morte também
passa a ser recebida com dor e abatimento. Já no século
XVII, as perspectivas transitam para o campo da moral, sob forte
influência de um movimento promovido por Igrejas, leis e pelo
Estado, onde a educação ganha terreno: trata-se de uma
instrumento que surge para colocar a criança "em seu devido
lugar”, assim como se fez com os loucos, as prostitutas e os
pobres. Embora com uma função disciplinadora, a escola
não nasce com uma definição de idade
específica para a criança ingressá-la. Isto porque
os referenciais não eram o envelhecimento (ou amadurecimento) do
corpo. A ciência moderna ainda não havia triunfado e
educação nascia, portanto, com uma função
prática, ora de disciplinar, ora de proporcionar conhecimentos
técnicos, que posteriormente configuram uma escola para a elite
e outra para o povo.
A análise
feita por Áries, portanto, destaca-se por fornecer elementos
para problematizarmos a infância em uma sociedade que, desde a
conclusão da obra, apresenta um individualismo acentuado. Muitas
vezes nos deparamos com crianças (e, mais recentemente,
adolescentes) que são vistos como projeções de
expectativas dos pais ou que são protegidos ou mimados,
reinventando o hábito de fins da Idade Média. Os perigos
e conseqüências desta situação podem, sem
dúvida, serem melhor compreendidos a partir das reflexões
presentes em História
Social da Criança e da Família.
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